Grande Entrevista, Revista História JN

Entrevista com Raquel Varela, Revista História JN, Dezembro de 2018.

“Temos um governo de esquerda, mas não dos trabalhadores”

 

Texto de Pedro Olavo Simões

Fotos de Orlando Almeida / Global Imagens

Entramos numa casa com vida, logo as bicicletas pousadas atrás da porta o sugerem, e passamos à cozinha, onde Raquel Varela prepara um revigorante café coado em filtro de papel, influência do marido brasileiro. Nos armários dessa divisão, vemos um retrato de Karl Marx fazendo o V de vitória, que não fez na realidade, mas também um quimérico D. Quixote e autocolantes vários, de sindicatos, de lutas laborais, de contestação à guerra. Na sala, onde decorre a conversa, a historiadora tem livros, imagens do povo no 25 de Abril, aconchego. Um piano vertical sugere sonoridades serenas, mas também festivas. O pianista é um dos filhos, mas também ela, admite, vai resgatando aos dedos o que aprendeu quando jovem, encontrando ali forma de se libertar. Faltou a ousadia de lhe pedirmos que tocasse, ficou a entrevista sem banda sonora.

Li ontem uma entrevista do psicólogo e académico canadiano Jordan B. Peterson, em que este afirmava que as universidades estão cheias de radicais de esquerda. A Raquel Varela é uma radical de esquerda?

Acho muito perigosa a ideia, que se tem generalizado, de que estamos perante o perigo dos radicalismos. Lembra-me o Estado Novo, quando se referia aos movimentos de libertação e à oposição à ditadura como subversivos. Essa noção não tem qualquer sustentabilidade histórica, porque apoia-se na ideia de que a democracia é o fim da história e de que, opostas à democracia, há duas ideologias totalitárias. O totalitarismo é uma análise interessante sobre o período da década de 30, particularmente na comparação entre a Alemanha e a União Soviética, mas essa comparação é limitada. Diz que os regimes hitleriano e estalinista são ditaduras, e é verdade, mas, do ponto de vista do Estado, os estados nazi, americano ou inglês eram capitalistas. Ou seja, do ponto de vista do regime podemos comparar a União Soviética com a Alemanha nazi, mas do ponto de vista do Estado podemos comparar a Alemanha nazi com os EUA ou a Inglaterra. Estarmos a reduzir sociedades extremamente complexas a uma palavrinha, para meter tudo no mesmo saco, não tem substância histórica nem permite analisar a realidade.

Porquê?

Primeiro, não nos permite analisar que a Revolução Russa foi uma enorme esperança para a humanidade, mas o seu isolamento, num país atrasado, levou à degeneração do estalinismo, indefensável como projeto civilizacional. Mas, o nazismo não é obra de um louco. É o desespero da burguesia alemã face à crise de 29, tanto que Hitler é apoiado pelas grandes empresas alemãs, como a Volkswagen ou a IG Farben. Também podemos fazer outro tipo de comparações. Ao mesmo tempo que, na URSS, se estava a dar a coletivização forçada estalinista, estava-se a dar a destruição total dos pequenos camponeses pelo colapso do crédito bancário nos Estados Unidos. Sou e sempre fui ideologicamente opositora à ditadura de Estaline. Acho que esta, aliás, ergueu-se contra a revolução bolchevique, O Estaline manda matar praticamente todos os membros do comité central do partido bolchevique. Agora, isso não pode ser desvinculado de compreender o que se passava no mundo. Estaline também não é, ele próprio, um louco. É o isolamento da Revolução Russa. Essa é que é a explicação essencial, pelo que não se pode acusar a revolução desse processo. Precisamos de conceitos mais complexos para analisar as questões.

A ditadura, para o fascismo ou para o comunismo, surge como desvio da ideologia ou é inerente à própria ideologia?

É uma pergunta muito interessante. Eu tenho refletido sobre isso muito tempo. As ideologias não têm pés, quem lhes dá pés é a história, e a história é feita por homens. Portanto, qualquer ideologia corre o risco de ser utilizada pondo em causa a liberdade, ou a igualdade, ou princípios fundamentais da humanidade.

O risco de tropeçar na natureza humana?

Já lá vou. Mas não quero esquecer isto: não podemos, a partir daí, equalizar as ideologias, porque a ideologia fascista, objetivamente, é um projeto político de uma parte da sociedade contra a outra, que pressupõe a eliminação desta, e a ideologia socialista é de igualdade e de liberdade. Os riscos que todos corremos, na sociedade, não podem eliminar as diferenças entre ideologias. A natureza humana é uma boa questão. Os historiadores gostam de acreditar que não existe natureza humana, só existe história e nós fazemos da história o que queremos. Não acho que seja bem assim. Faz parte da natureza humana a realização de necessidades básicas. Antes de sermos homens, somos animais e, quando a nossa sobrevivência é ameaçada, temos comportamentos que remetem à brutalidade, com o intuito de sobreviver. Um animal ameaçado ou entra em pânico, e não se mexe, ou foge, ou então ataca. Por isso é que não pode haver socialismo na escassez. O socialismo pressupõe abundância.

Daí o fracasso da experiência soviética?

Sem dúvida. Para mim, esse fracasso deve-se não à natureza humana, mas à natureza histórica da União Soviética. Lenine disse-o: “Coube-nos o infortúnio de tomar o país no país mais atrasado”. É fácil de perceber que sem a revolução alemã, sem o domínio de máquinas ou de cientistas, que pudessem produzir em grande quantidade, não havia como alimentar as pessoas, como cuidar das pessoas. Os socialistas tinham projetos maravilhosos, de emancipação feminina, de amor livre, lavandarias coletivas… As lavandarias, a certa altura, era um buraco, no chão, aberto no gelo, para lavar, porque não havia máquinas, não havia meios…

Marx pensou o socialismo como decorrência do esgotamento do capitalismo, e a Rússia nem chegou a entrar no capitalismo…

E a única maneira de lá chegar era com as forças produtivas, – máquinas, cientistas, saber – dos países centrais. Há uma conversa de Trotsky com um elemento do comité central do partido bolchevique, em que este diz: “Camarada, nós já temos socialismo, só nos faltam as vacas para alimentar as crianças”. E Trotsky responde: “Sem vacas não há socialismo”. Temos de alimentar as crianças para podermos dizer que há socialismo. Mas também é preciso perceber por que é que a revolução alemã é um falhanço, porque a teoria do totalitarismo não explica nada. A social-democracia apoiou os governos bonapartistas antes da ascensão de Hitler ao poder. Não apoiou Hitler, mas apoiou os governos bonapartistas, já semiditatoriais, entre eles o que vai levar à nomeação do próprio Hitler. Porquê? Porque a social-democracia tinha mais medo da revolução. A política do terceiro período da União Soviética, da classe contra classe, é um desastre. Mas não se pode esquecer, hoje, quando se fala dos populismos e da ascensão da extrema-direita, que o financiamento de Hitler veio, direta e conhecidamente, das grandes empresas alemãs, que preferiram o suicídio da II Guerra Mundial, para evitar uma Revolução Russa no seu país. É como agora dizer que a culpa do Bolsonaro é do Lula. Não, o Bolsonaro está apoiado por grandes empresas brasileiras, independentemente da culpa que o PT tenha tido, que teve.

Alguém me dizia, há tempos, que as pessoas sacrificam a democracia pela segurança. Esse é o ambiente que está agora a facilitar a afirmação dessas figuras messiânicas?

Perigosíssimas, não é? Por que é que elas existem? Por uma multiplicidade de fatores. A instabilidade, o medo do desemprego… Os nossos problemas são muito graves, mesmo em sociedades estáveis e de grande desenvolvimento. Gerir uma sociedade é uma coisa muito complexa. Por isso é que há um desenvolvimento técnico, até, da própria política. Não é só porque os políticos se tornaram burocratas que vivem apartados dos representados. É porque é complicado gerir uma sociedade, e as pessoas tendem a colocar nas mãos dos outros coisas que elas sentem que não podem resolver. Hoje, temos problemas gravíssimos, como o desemprego ou a falta de mobilidade social. Em 1945, o capitalismo oferecia às pessoas uma época de grande expansão e desenvolvimento . Evidentemente, isso não aconteceu, porque o capitalismo está em permanente crise cardíaca. O maior banco do mundo e a maior empresa do mundo faliram em 2008. Não foi só o socialismo real que faliu. O neoliberalismo faliu. Hoje em dia, nós não teríamos sistema capitalista no mundo se não tivesse sido injetado dinheiro público no sistema financeiro. As pessoas sentem a vida ameaçada, o futuro ameaçado, o futuro dos filhos… Depois, há uma intensificação do trabalho absolutamente brutal, nos países ocidentais, que leva as pessoas a viver sistematicamente em horas extraordinárias, a trabalhar por três, a não ter autonomia, a serem permanentemente vigiadas, inclusive nas profissões intelectualizadas, sem segurança no emprego…

Em nome da produtividade?

É um mito que a insegurança no emprego aumente a produtividade. As pessoas têm medo de inovar quando estão inseguras, desmotivam-se. A cooperação é muito melhor do que a competição para o desenvolvimento da sociedade. Essas questões auxiliam estes movimentos populistas, mas também porque não há uma esquerda com um programa alternativo claro. A esquerda está reduzida a um programa neoliberal de esquerda. O neoliberalismo de direita oferece muita austeridade, o neoliberalismo de esquerda oferece um bocadinho menos austeridade. E a extrema-direita vem dizer: “Nós não temos nenhum plano para a sociedade, mas vamos salvar uma parte das pessoas contra as outras”. Mas há mais do que isso. Por exemplo, a defesa eterna do assistencialismo por parte da esquerda é um erro. As pessoas querem emprego, não querem subsídio de desemprego, e os trabalhadores ficam raivosos, invejosos, quando sentem que estão a pagar impostos para quem não trabalha. Quem não trabalha devem ser crianças, idosos e pessoas doentes. O trabalho que existe deve ser distribuído pela sociedade. Há um sentido de justiça na distribuição do trabalho. Não podemos estar permanentemente a defender a assistência social, até porque a assistência social , no curto prazo, alivia a pobreza, mas aumenta-a no longo prazo, pois não contribui para diminuir as desigualdades sociais. O que contribui para isso é o emprego com direitos.

Em que difere ser de esquerda hoje e há cem anos?

É completamente diferente. Na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864, os imigrantes que chegavam eram impedidos de furar greves ou de fazer dumping sobre outros trabalhadores, mas a associação defendia a quotização comum, de greve, dos que ganhavam mais, para que os imigrantes e os estrangeiros que ganhavam menos passassem a ter os mesmos direitos. Neste momento, o que temos é um apelo social-democrata à livre circulação, que é dumping. O trabalhador vai para outro país, ganhar metade, e chamam a isso direitos humanos. Obviamente que os que lá estão sentem o seu emprego ameaçado. O que é que a direita diz? “Não vêm para aqui, porque são gente inferior”. Isso é a extrema-direita. A esquerda social-democrata diz: “Vêm, sim senhor, porque nós somos muito a favor dos direitos humanos”. Essas não são soluções universais. A solução universal é dizer o seguinte: queremos que os trabalhadores imigrantes sejam como nós, por isso mesmo, nós, que ganhamos mais, vamo-nos quotizar e vamos fazer uma greve para que eles se tornem fixos, connosco, e tenham os mesmos direitos. Um contrato único europeu bem remunerado. É a única forma de impedir a ascensão da extrema-direita.

Num mundo perfeito seria assim, mas não estaremos outra vez a tropeçar na natureza humana?

Mas isso acontece e aconteceu, na história, muitas vezes. Aqui, mais do que natureza humana, eu acho que é fraqueza política. Hoje, os trabalhadores da Volkswagen, na Alemanha, têm capacidade para defender melhor do que ninguém os direitos dos trabalhadores da Volkswagen em Portugal, no Brasil, na Índia… Veja-se a greve dos estivadores. Eles são precários, e os fixos estão a ajudar os precários e a defendê-los, porque têm consciência política e sentido estratégico.

Não haverá, também, uma mudança de esquemas mentais facilitadora dos populismos? Vivemos numa época em que, em espaços de “convivência” como as redes sociais, proliferam opiniões pouco ponderadas, de condenações sumárias e de fake news, como se viu no Brasil.

É mais complexo. Também temos grandes movimentos sociais progressistas, democráticos, a ascender e com grandes reflexos nas redes sociais, como o Podemos, o Jeremy Corbyn ou o Bernie Sanders. Aliás, nos Estados Unidos, só o Sanders está em condições de derrotar o Trump. Quanto ao Brasil, não sei se não é um caso particular. Estamos a falar de mais de metade da população iletrada, oficialmente, e aí a manipulação é mais fácil. O Brasil não tem uma televisão pública que seja de referência, há muito tempo que os jornalistas estão nas mãos de meia dúzia de grupos privados, não há uma estrutura educativa racional… As fake news combatem-se com três coisas: educação, cultura e bom jornalismo. Agora, fala-se do fact checking. É o que os jornalistas bons fizeram a vida inteira, só que fazem antes de publicar a notícia, não é depois. Mas, para isso, é preciso dar trabalho protegido aos jornalistas. O jornalista, se tiver tempo para fazer investigação, consegue dar notícias que são depois um exemplo e que levam as pessoas a evitar as fake news.

O medo propaga-se mais depressa do que a esperança?

Um e outro propagam-se rapidamente. Antes da derrota das primaveras árabes, vimos as pessoas com entusiasmo no mundo inteiro. O Occupy Wall Street, o 15.M, em Espanha… O mundo parecia, a partir das primaveras árabes, ter acreditado que havia uma reação progressista, de massas, à crise de 2008. A verdade é que essa reação ficou isolada. Ao fim de poucos meses, as guerras civis levaram à ascensão de grupos fundamentalistas medievais, na Síria, na Líbia, no Egito… Aí, o medo propagou-se muito rápido, mas, antes, também a esperança se tinha propagado muito depressa. Como isso foi um momento de esperança tão grande para tanta gente! E como nós, agora, ficámos horrorizados com o Bolsonaro. O medo e a esperança propagam-se consoante a realidade. As pessoas têm razão para ter medo. Um homem que se propõe eliminar a oposição!… Ultrapassou-se tudo o que é razoável e aceitável na vida civilizada. Mas a função dos intelectuais não é tornar o medo convincente, mas a esperança possível. Temos obrigação de, em vez de estar sempre a partilhar as coisas horrorosas que o Bolsonaro diz, começarmos a partilhar o que podemos fazer para que os bolsonaros deste mundo não cheguem ao poder.

Até que ponto Portugal está a salvo destes fenómenos? A memória ainda fresca da ditadura joga a nosso favor?

Ao contrário de Espanha, onde houve uma transição e onde foram amnistiados torturadores e ditadores, nós passámos pelo processo contrário. Fizemos justiça aos que morreram e sofreram durante 48 anos de ditadura, e as pessoas que o fizeram estão vivas. Pelo menos por mais uma década, creio, estaremos livres de um processo semelhante. Eternamente livres, não, enquanto não criarmos soluções alternativas. E há o momento tabu em que ninguém quer falar. Toda a gente fala das redes sociais, mas ninguém fala do colete de forças que é a União Europeia, que diz que nós temos de utilizar a maioria dos nossos impostos para pagar juros da dívida pública. Porque nós não podemos ter saúde, educação, bem-estar e trabalho enquanto fizermos isto. Para mim, a primeira leitura que temos de fazer da ascensão dos populismos é que eles representam o falhanço do neoliberalismo. O neoliberalismo passou a usar os impostos – contra os quais se situava, em teoria – para pagar os esquemas financeiros. Isso leva à desagregação da sociedade e é a primeira causa do populismo e da ascensão da extrema direita.

A União Europeia faliu, enquanto projeto político, ou nunca o chegou a ser?

O Estado de bem-estar social foi o projeto mais bem sucedido da Europa do pós-guerra, mas a UE é muito mais tardia do que isso e já não é o Estado social, mas a assistência social. Já é o fim dos serviços públicos universais e cada vez mais o cuidado dos pobres, não o cuidado de todos. A União Europeia vem associada à crise do Estado social e ao aumento da assistência social. Vem associada ao dumping de trabalho, na Europa. Temos um sistema de dumping em que os trabalhadores saem da Lisnave e vão três meses para a Holanda trabalhar, e depois voltam. Um sistema de dumping a funcionar à escala europeia. E a UE é, ainda, um projeto financeiro, assente num fundo de estabilização europeia. A Alemanha, para fazer face à crise da reunificação, emprestou dinheiro a juros baixos, e um dia esse castelo de cartas caiu. Caiu em 2008, e o que a Alemanha disse foi: “Vocês, agora, vão sofrer até à última gota e vão pagar todo o dinheiro que nós emprestámos sem ter condições para emprestar”. Portanto, a UE faliu como projeto de unidade entre os europeus.

É um espaço dividido?

Tem os europeus do Sul contra os do Norte, os pobres contra os ricos, as classes médias permanentemente ameaçadas… Sendo socialista, acho que a questão da pequena propriedade merece muita reflexão, porque temos vários países do mundo onde a ligação das pessoas à sua pequena terra, etc. tem de ser garantida, numa transição de uma sociedade capitalista a socialista. Não é expropriando as pessoas que se resolve essa questão. Quanto às grande empresas, não tenho dúvida nenhuma, devem ser expropriadas sem indemnização. As grandes empresas devem ser públicas. Mas, hoje em dia, a classe média, num sistema capitalista, tem uma arma permanentemente apontada à cabeça, que é: “Eu vou perder o meu emprego, eu vou perder a minha casa”. Tem a sua propriedade permanentemente ameaçada, Inclusive com medidas estatais inacreditáveis, que acabaram por ter curso neste país, sem reação. Aí, eu falhei as minhas análises, porque pensei que ia haver mais reação. As pessoas chegaram a ter 10% do seu salário direto cortado (e 25%  do seu salário indireto) e não reagiram, ou, melhor, reagiram emigrando ou indo para a pré-reforma ou para a reforma.

A eventual desintegração da UE não terá como consequência o advento dos nacionalismos?

É possível que, antes de podermos celebrar uma Europa internacionalista unida, tenhamos de enfrentar a ascensão dos nacionalismos, a partir do colapso do neoliberalismo como projeto. Mas o nacionalismo não é uma alternativa, porque a União Europeia é um projeto competititvo e de dumping que não se combate com mais nação. Combate-se com mais internacionalismo, com mais Europa. Precisamos de uma Europa em que as pessoas ganhem todas o mesmo, não uma Europa em que os portugueses estejam contra os alemães e os suecos contra os ingleses. Os nacionalismos são a receita para a guerra, e nós já tivemos duas, na Europa. Precisamos de uma superação da UE, e superação significa negação, filosoficamente falando, mas não podemos voltar a um mítico passado, que aliás é impossível. Veja-se o Brexit. Eles não conseguem nem ir para a frente nem voltar para trás, porque o verdadeiro projeto de bem-estar inglês é um projeto de rutura com a UE, mas também com o capitalismo. Querem ficar no capitalismo, mantendo o melhor do capitalismo e evitando o pior. Querem lucros gigantescos sem colapso financeiro de bancas, querem liberalismo dos mercados sem entrar em concorrência com a Alemanha. Querem o seu e o seu contrário ao mesmo tempo, e isso é impossível.

Usa muito, e até no título de um livro, a referência à Revolução de 1974-75, em Portugal. Ao não alargar a cronologia até à aprovação da Constituição, em 1976, não estará a referir-se mais a um projeto programático do que a um processo histórico?

Não. A revolução é um processo, e a contra-revolução também o é. E a contra-revolução começa, de facto, no 25 de Novembro. Acho curioso que agora lhe chamem normalização democrática, uma coisa super-ideológica. Até o Sousa Franco, no seu livro, dirigido pelo Mattoso, chama, e bem, contra-revolução. É uma forma de pôr fim à revolução, e o 25 de Novembro vai prender mais de cem oficiais revolucionários e passar compulsivamente à reserva os soldados. O 25 de Novembro acaba com a revolução nos quartéis, com a dualidade de poderes nos quartéis, e isso vai ser determinante para, depois, acabar com a revolução nas outras áreas, nos direitos sociais, na reforma agrária, depois, já nos anos 80, no sistema financeiro, depois, também já nos anos 80, com a unidade do Serviço Nacional de Saúde… A revolução portuguesa começa a acabar a 25 de novembro de 1975.

A Constituição não faz parte do processo?

A Constituição é o pacto social já da contra-revolução. “Vocês não tomaram o poder, e nós negociamos aqui o Estado social”. Não há dualidade de poder. Já não há poder das comissões de trabalhadores, de moradores, de soldados… A Constituição, no seu texto original, é uma espécie de tréguas. Portugal vai para a Europa e vai ser capitalista, mas com um capitalismo regulado. Mas tampouco esse texto original da Constituição vigora, já não vigora, muito menos o real. O real é que mais de 50% da força de trabalho portuguesa é efetivamente precária. Mesmo os que têm contratos fixos ,mas que já estão sob a nova lei aprovada em 2012-2013, podem ser despedidos a qualquer momento, porque o teto das indemnizações passou a 12 meses. A realidade é que vivemos no meio de uma selva laboral, em que o Estado social está sob permanente ameaça.

A minha pergunta, há pouco, prendia-se com o facto de outros setores quererem a revolução, no sentido de anular a ditadura e promover a democratização, sem pretenderem o socialismo.

Há vários projetos revolucionários e há vários projetos contra-revolucionários. Não é só um lado ou outro. O PCP, que eu estudei, não tinha um projeto revolucionário de tomada do poder. Tinha um projeto de capitalismo regulado com direitos sociais. Portugal estava na esfera da NATO, isso tinha sido acordado com a União Soviética, no pós-guerra, em Ialta e Potsdam, e o Cunhal era fiel a isso. Mas, ao mesmo tempo, queria amplos direitos sociais para os trabalhadores. O PS defendia um capitalismo mais a la social-democracia de Willy Brandt, que é um capitalismo com menos intervenção estatal ainda do que o PCP. A extrema-esquerda tinha vários projetos revolucionários, de tomada do poder e derrube do capitalismo, mas eram muito pouco unificados entre eles, tanto que teve pouca capacidade de resposta no 25 de Novembro. Na contra-revolução, o PCP estava contra a revolução no sentido de tomada do poder, como também estava o PS. Aliás, o PS é a principal organização civil do 25 de Novembro. Mas, depois, ainda havia projetos contra-revolucionários, embora completamente minoritários, contra a democracia, e esses também foram derrotados. O projeto que venceu foi o do capitalismo liberal democrático regulado. Mas há sempre mais do que um projeto programático. Mesmo no campo da revolução socialista havia vários. Havia os tipos da auto-gestão, do controlo operário, da revolução mais centrada em Portugal, mais internacionalista…

O PCP foi ultrapassado pela extrema-esquerda?

Claramente. Na minha tese de doutoramento cito um texto do Saramago muito pouco conhecido, porque se fala sistematicamente nas questões dos despedimentos do DN, quando verdadeiramente o Saramago é um dos homens que criticam pela esquerda o PCP, em setembro de 1975, defendendo que o partido devia ter uma posição revolucionária junto dos trabalhadores e não uma posição de conciliação com o Grupo dos Nove. Aliás, até à queda do muro de Berlim, o Cunhal não acha que o 25 de Novembro seja a contra-revolução. Ele considera que é um golpe irresponsável de extrema-esquerda e que esses oficiais foram finalmente afastados do poder, e o PCP sente-se beneficiado com isso, porque pode recuperar o seu acordo com o chamado Grupo dos Nove. Só a partir de 1989 é que Cunhal vai dizer que o 25 de Novembro é um golpe contra-revolucionário do PS. Até lá, ele defende-o como um golpe correto para afastar a sua esquerda. Mas uma parte da esquerda que então o Cunhal quis afastar também estava dentro do PCP e não apenas fora, na extrema-esquerda. Há oficiais revolucionários dentro do PCP que não concordam com a política de cooperação entre o PC e o PS.

O que levou o PC a romper com eles.

A começar pelo Vasco Gonçalves. O PC deixou cair o Vasco Gonçalves, claramente. O PC nunca apoiou o V Governo. E depois deixa cair outros. O PC tem, nitidamente, a opinião de que não se pode tomar o poder, pois Portugal é da esfera da NATO.

Na introdução à sua recente “Breve História da Europa”, aponta a “a proletarização de largas camadas médias” com a viragem para o século XXI. É um retrocesso civilizacional?

É. Faz parte da natureza humana a segurança, a estabilidade. Nós inventámos o trabalho, como género, para evitarmos a insegurança. Não queríamos estar dependentes de pragas agrícolas ou de grandes intempéries, e, por isso, o trabalho é o que nos liberta da incerteza. Mas, agora, tornou-se o foco da incerteza permanente. As pessoas têm medo de trabalhar porque têm medo de ser despedidas, têm medo do assédio moral, estão em permanente competição com o colega do lado. Somos avaliados a ver quem é que consegue destruir o colega do lado e não quem é que consegue construir com o colega do lado. E largas camadas da população – em Portugal é mais de metade da força de trabalho – estão na insegurança que coloca em perigo todos os nossos projetos de vida, de amor, de viver junto, de criatividade, de comprar uma casa… Tudo isso está em causa no mundo ocidental. O pleno emprego é um valor civilizacional. Não significa que as pessoas estão a vida toda no mesmo emprego, mas que têm direito ao emprego. Não podem ficar desempregadas.

Como se garante isso?

Continuamos a ter uma sociedade baseada no lucro e não na riqueza. O lucro é um custo sistemático. Fala-se no custo do salário, mas o salário não é um custo. O trabalhador, quando produz, produz mais do que é suficiente para pagar o seu trabalho. Eu produzo e, ao final de três, quatro, cinco dias paguei o meu próprio salário. A partir daí, estou a produzir para outro. O lucro é um custo para a sociedade. Se eu tiver um médico a trabalhar 12 horas, ele vai operar menos pessoas do que dois médicos a trabalhar seis horas cada um. Só que com o médico de 12 horas eu tenho mais lucro, porque só paguei a um, enquanto com dois a trabalhar seis horas cada um produzi mais riqueza, porque curei mais pessoas. Precisamos de uma gestão pública democrática e de contas abertas. Temos de saber onde é que o dinheiro é gasto e como é que ele é gasto e como as pessoas são tratadas nos seus locais de trabalho. Isso tem de ser um valor primordial. Pagando a dívida pública, não é possível ter emprego decente.

A solução é não pagar?

A dívida pública deve ser suspensa e deve haver uma renegociação. Digo mais: a dívida pública deve ser suspensa, deve-se fazer uma auditoria à dívida, durante esse período, para evitar fuga de capitais, nacionalizar o sistema bancário e financeiro, salvando, até 50, 100 mil euros, os depósitos, e, a partir daí, tem de se alocar todo o investimento público ao bem-estar dos que aqui vivem. Isso vai dar-nos problemas? Vai, mas menos do que continuar a pagar a dívida pública.

O Estado social está tão morto como alguns querem fazer crer?

Não sei se não estará até mais… O Estado social é perfeitamente sustentável. Nós fizemos um livro, e ele nunca foi contestado por ninguém, que é “Quem Paga o Estado Social em Portugal”. Utilizámos o modelo de cálculo dos impostos (quanto é que as pessoas entregam e quanto recebem) e verificámos que as pessoas entregam mais ao Estado do que recebem. O problema é que, efetivamente, o dinheiro não vai para o Estado social. Desde logo vai para a dívida pública, mas também vão 1500 milhões para as parcerias público-privadas, as subcontratações são incontroláveis, agora temos as cativações… O problema é que o Estado social está realmente em crise, mas o Estado social é a base da civilização. Como é que ousamos pensar que podemos viver numa sociedade sem saúde, sem educação? Impossível. Não podemos, de forma civilizada.

Temos um governo de esquerda em Portugal?

Temos, mas não temos um governo que defenda os trabalhadores. Temos um governo de esquerda do ponto de vista da ideologia, digamos, progressista… Aquilo que é essencial nas leis laborais, em Portugal, não se alterou nada, pelo contrário. A divergência do nosso rendimento médio com a UE agravou-se, nos últimos anos, a intensificação do trabalho agravou-se, a falta de investimento em tecnologia, capacidade instalada, agravou-se, e os trabalhadores cada vez trabalham mais, com mais responsabilidades, com mais tarefas, recebendo menos. Nós temos quatro tipos de salário: nominal, real, relativo e social. O salário social é a qualidade dos serviços públicos. Está pior. O salário nominal vai subindo muito pouco, quando sobe. O salário real cai, porque todo o custo de vida está mais alto, não só na habitação mas em tudo. E o salário relativo, então, nem se fala, que é “quanto é que eu trabalho face ao que eu produzo?”: dizem os dados oficiais que toda a produtividade é baseada não em termos mais trabalhadores ou mais investimento, mas em termos menos trabalhadores, ou seja, onde havia dois há agora um, a fazer o trabalho de dois. É um governo de esquerda, mas não é um governo dos trabalhadores.

A dita “geringonça” não funciona assim tão bem?

Não, e eu acho que o cálculo eleitoral do Bloco e do PCP pode ter sido benéfico a curto prazo, para agradar ao seu eleitorado, mas a médio prazo as políticas de direita chegam quando não há políticas de esquerda para os trabalhadores. Então, não vale a pena estar sempre a agitar o papão da direita para apoiar um governo que, de facto, como diz o Perry Anderson, é um governo neoliberal de esquerda. A geringonça é isto.

Há questões em que a vemos ter posições algo dissonantes com o mainstream da sua área ideológica. É o caso, por exemplo, da oposição que tem manifestado ao movimento #metoo. Gostava que explanasse essa sua opinião.

Sou completamente contra o #metoo. Não aceito que em nome da defesa de um bem superior, a igualdade, se promova a destruição do bom nome e o fim da presunção de inocência. Como é que o #metoo nasce? Com o Partido Democrático, nos EUA, dividido entre uma ala esquerda, pró-Bernie Sanders, e uma ala direita, pró-Hillary Clinton. E a ala direita não tem nenhuma divergência com Trump face à economia e à política militar. Portanto, a diferença que tem com Trump é por este ser um misógino, o que é verdade. Portanto, a tal ala direita acentuou toda a sua política aí. E pegou nos jornais que influencia, abrindo-os às denúncias de mulheres. Nas de Hollywood eu não me revejo minimamente. Uma mulher que é alvo de assédio durante 20 anos e tira fotografias na passadeira vermelha com o assediador, e ao final de 20 anos é que vem apresentar queixa, pôs em causa, por falta de coragem, milhares de mulheres que, por questões financeiras, nunca podem denunciar o seu assediador. É o caso de mulheres pobres, dependentes, por exemplo, do dono da fábrica ou do capataz, etc. No #metoo há um problema moral sério. Estas mulheres, de facto, aproveitam-se da questão de igualdade de género para uma atitude que é subir na vida em Hollywood. A segunda questão, imensamente mais grave, é que isto pressupõe que se pode vir para um jornal destruir o nome de um homem, sendo ele inocente ou culpado. E nos Estados Unidos começaram a fazer-se julgamentos sumários. Os homens são denunciados e são despedidos, os seus quadros são retirados, os seus livros não são publicados, os seus filmes… Isto parece-me uma coisa de queima de bruxas medieval, e não podemos aceitar esses métodos. Como disse há pouco, todas as ideologias podem conter em si pequenos monstros. A liberdade é um valor muito bonito, mas que temos de defender a toda a hora, porque a toda a hora está posta em perigo e, às vezes, os monstros estão dentro de nós. A ideia de que, para defender a vítima, podemos abdicar de princípios é perigosíssima.

E acaba por não se atacar o problema?

Até porque o problema da desigualdade de género vai continuar a existir. Vejam-se os operários da Auto-Europa, ou os estivadores, que trabalham 16 horas, nos turnos. É óbvio que é a mulher que vai cuidar dos filhos, ou são eles que, ao final de dois turnos, chegam a casa e vão cuidar dos filhos? Já nem conseguem cuidar de si próprios. Quantas vezes é a própria mulher a dizer ao marido para fazer horas extraordinárias, porque ele ganha mais a fazê-las do que se for a mulher? Obviamente que é a mulher que fica em casa a assumir as tarefas domésticas. O Marx dizia que a religião é o ópio do povo, mas – e a parte seguinte nunca é citada – também é o  reflexo da insegurança humana. Depois da crítica de Deus, temos de fazer a crítica da Terra, e não é por andarmos para aí a espalhar o ateísmo como se fôssemos padres do ateísmo que as pessoas vão deixar de ser religiosas. As pessoas deixam de ser religiosas quando deixarem de ter medo. Para deixarem de ter medo, têm de ter uma vida decente, aqui. Não é no Céu, mas na Terra. Obviamente que não é por andarmos atrás dos homens a gritar “machistas” que vamos resolver  alguma coisa. Temos de resolver os problemas que estão a montante da desigualdade.

Este movimento tem muito a ver com a realidade e mentalidade dos Estados Unidos, não lhe parece?

Acarreta coisas que me parecem de um grande puritanismo – nisso, sim, os norte-americanos são um must – que é: as pessoas já não podem fazer piadas sobre nada, os humoristas não podem fazer piadas, os escritores não podem escrever… A realidade é complexa. Às vezes, dizemos parvoíces, às vezes dizemos coisas machistas, há piropos que são galanteios e outros que são boçais… Vamos proibir toda a gente de falar? Isto é que me parece uma coisa estalinista e macarthista, totalitária. As pessoas, daqui a bocado, não podem livremente falar, porque se tem de estar a contentar uma data de pessoas que têm medo das palavras. Eu não passo a ser machista porque conto uma anedota machista. Até posso ser menos machista se criar à minha volta formas efetivas de igualdade.

Provavelmente, gastam-se energias a mais em questões distantes da resolução dos problemas?

Claro, mas como este governo da geringonça não resolve nenhum dos problemas essenciais, tem os médicos contra eles, têm os professores contra eles, os operários, a função pública, vai-se entretendo com touradas e mitologia…

Parece-lhe um folclore esta polémica das touradas?

Claro que é! O António Costa e o Manuel Alegre já escreveram não sei quantas cartas sobre as touradas. Eu não gosto de touradas, não vou às touradas, penso que isso deve ser discutido envolvendo todos os interessados, mas não é com políticas de ódio, como estes defensores dos animais têm, que se vai resolver o assunto. Depois, tem de se distinguir o que é a tourada da garraiada, das festas populares, há lugares onde só se usa uma corda, outros onde se tira um lenço dos cornos do touro… Isso é diferente de espetar e matar o touro. Envolver tudo no mesmo parece-me uma coisa fundamentalista. Aliás, acho o animalismo uma ideologia perigosíssima.

O animalismo de que fala toca cada vez maiores franjas da sociedade, e vê-se, por vezes uma promoção do bem-estar animal que retira aos animais a sua própria natureza. Concorda?

É proporcional à falta de bem-estar das pessoas. As pessoas são mais infelizes e vivem com mais medo, e depois defendem-se coisas para os animais que são completamente descabidas. Quantas vezes é que estas pessoas defensoras dos animais não os têm presos em apartamentos, capados, a comer rações duvidosas, etc.? Criou-se um fundamentalismo, em torno desta questão, que é reflexo do isolamento e do narcisismo social. Nós precisamos de mais relações humanas, mas as relações humanas são difíceis, porque são entre iguais. Quando estamos em família, o outro tem vontade própria. Um cão, ou um gato, não tem. É um pau-mandado. São relações de poder que temos com os animais. As pessoas têm de aprender a relacionar-se, não é deixar de se relacionar com humanos e passar a relacionar-se com cães. Como diz o Coimbra de Matos num livro que nós fizemos, que se chama “Do medo à esperança”, a seguir à relação com os cães vem com as coisas. Daqui a bocado, a paixão das pessoas é pelas coisas!…

Recentrando na História: que acha dos pedidos de desculpa pelo passado?

Não gosto. A História não é um tribunal. A história é o que foi. Nós temos de investigar, escrever, compreender, analisar. Eu não vou mudar o passado. Por que é que eu tenho de saber história? Porque quero mudar o futuro. O futuro nós mudamos e temos modelos ideológicos claros sobre o futuro. Esses pedidos de desculpa vêm na sequência da invasão das universidades pelos setores pós-modernos, que andam todos a discutir os símbolos, os discursos, em vez de estudar história. Isso é um problema muito sério, porque precisamos de quem mergulhe nos documentos e explique o passado e queira mudar o futuro. Não de quem, para manter os seus lugares privilegiados nas universidades, ande só a estudar as palavras, o discurso, o símbolo, quando o que temos é uma imensa insuficiência de conhecimento do passado. Essa é uma tarefa infinitamente mais importante para os historiadores, hoje.

A expressão “politicamente correto” faz, para si, algum sentido?

Chama-se politicamente correto à censura, e eu sou contra a censura, de tudo e de qualquer coisa. Portugal tem pouca tradição de polémica e tem uma elite muito reduzida, paroquial, que em geral tem dificuldade em viver com o contraditório. Todos os dias construímos debates, nos campos científico e político, entre pessoas que pensam da mesma maneira. Temos dificuldade em confrontar-nos com pessoas que pensam de forma diferente, e é fundamental esse debate ser feito com sinceridade, sem cedências do ponto de vista da verdade, mas com educação. Agora, a censura não. Que é isso, de facto, que esses setores andam a defender. Hoje, 90% do “Gato Fedorento” seria considerado politicamente incorreto e é divertidíssimo. Aliás, acho que o Gato Fedorento, a gozar com o machismo, contribui mais para o fim do machismo do que a proibição de as pessoas falarem. Nem sei como é que aqui chegámos. Mas tem algum mal? Por que é que as pessoas não falam abertamente o que pensam e não brincam e se divertem… Portanto, penso que essa é uma expressão falsa, um eufemismo para quem, de facto, defende a censura porque não quer ser confrontado com opiniões diferentes das suas.

Tomou posição na questão do museu dos Descobrimentos? Que está em causa: um nome? Um projeto?

O que está em causa é que o museu dos Descobrimentos vai envolver muito dinheiro, e há uma disputa em torno do grupo de historiadores que vai assumir esse projeto, muito apetecível. Há uma polémica entre setores mais conservadores, ligados à mitologia da expansão, e os pós-modernos, ligados a esta visão de uma espécie de sofrimento presente, permanente, pelo passado. Acho que o museu dos Descobrimentos pode chamar-se assim ou ter outro nome qualquer. Os historiadores da área devem discutir qual será. Mas o que se deve mesmo discutir é o conteúdo, e o conteúdo tanto é o da escravatura como o do imenso impulso científico. Um museu não é um memorial. Tem de dar a verdade histórica, que combinou momentos de imensa brutalidade com momentos de grandes avanços científicos. O avanço científico não vir agarrado à brutalidade é o que eu desejo para o futuro, mas, no período da expansão, o que aconteceu não foi isso. Mais do que a disputa de lugares, tem de haver aqui uma disputa de nós estudarmos o máximo de história, preenchermos imensas lacunas que estão por estudar e termos um museu onde as pessoas percebam aquela época, as suas misérias e as suas grandezas. Ou alguém tem dúvida de que os escravos iam no porão, numa situação inqualificável? E alguém tem dúvida de que nós tivemos alguns dos melhores matemáticos e que os homens que partiam para o mar partiam por necessidade, mas também por coragem? Isso faz tudo parte da história.

Abdicar dessa complexidade é pôr a história ao serviço da ideologia?

Exatamente! Ao querermos transformar a história numa emoção sobre o passado não estamos a fazer história, estamos a fazer ideologia. E isso tudo, como disse e reitero, tem a ver com o interesse de determinados grupos universitários nesse projeto futuro, que tem muito dinheiro público.

 

“Em Portugal

não se debate francamente”

 

 Fale-nos de si. Como é que a história aparece na sua vida?

Nós nunca somos bons juízes em causa própria. Eu sempre adorei história, e o meu pai, embora sendo engenheiro florestal, tinha todos os livros de história em casa. A minha mãe e o meu pai sempre me tentaram explicar tudo na sua dimensão histórica. Isto está aqui, mas dantes estava ali. A minha mãe teve um papel muito grande na minha escolha como cientista, embora só me tenha apercebido mais tarde, porque ela é cientista, ela é de genética florestal, e desde pequena ela levava-me com ela para as conferências. Então, passei a minha adolescência a visitar as cidades da Europa nas conferências, com ela, e acho que esse ambiente me influenciou. Por outro lado, a minha mãe é uma mulher de uma curiosidade extrema. Está sempre a perguntar porquê. E nunca nos deixou de explicar porquê e sempre nos levou a perguntar porquê. A verdade é que também tive uma professora, no ensino secundário – que, aliás, apresentou o livro, nós fartámo-nos de chorar abraçadas – , que era uma mulher de uma imensa sabedoria, um dos grandes professores que este país teve, Ana Paula Torres, e eu adorava as aulas. Depois, entrei para História, mas o meu pai queria que eu fosse para Direito. Então fiquei um ano a viajar e, depois, entrei para Direito em Coimbra e detestei. Detestei. É o termo exato. No terceiro ano, ganhei coragem, disse aos meus pais que não iria mais para a Faculdade de Direito e fui para a Alemanha trabalhar como empregada de mesa, porque eles também disseram que se eu mudasse de curso deixariam de me dar dinheiro. Passado quase um ano, voltei e entrei para o curso de História. Tive as melhores notas do ano, e eles voltaram a financiar-me os estudos, com a promessa de que eu teria as melhores notas. E tive: terminei o curso com as melhores notas da faculdade, na área, o que me permitiu ir diretamente para doutoramento quando terminei a licenciatura.

Fez a licenciatura onde?

No ISCTE, e o doutoramento no ISCTE, com co-orientação da Universidade Autónoma de Madrid, e depois fiz o pós-doutoramento no Instituto de Amesterdão, de História social, e aí já foi abrir o caminho para a História social.

Seria absurdo perguntar-lhe onde é que estava no 25 de Abril, porque não estava, mas o 25 de Abril está claramente em si. Que relação é essa?

O meu marido é professor de Teoria Crítica e diz que é aquilo que mais define a minha personalidade. Não sei se é verdade, por isso é que o citei a ele. Acho que sim, que o 25 de Abril me ensinou a gostar das pessoas, da humanidade. Eu tive a sorte de ter optado por estudar um período em que as pessoas foram muito grandes, muito bonitas, foram maiores do que si próprias. Talvez muitas destas pessoas tivesse sido imensamente cobardes, até ao dia 24 de abril, mas no dia 25 e nos dias seguintes foram muito corajosas. Então, as pessoas tiveram atitudes de uma imensa generosidade, coragem. Elas, quando mudaram o país e o mundo, mudaram-se a si próprias. E isso apaixonou-me. Compreendi aí que as pessoas contêm em si a miséria e a grandeza, e que eu queria estudar os períodos de grandeza, e os seus períodos de grandeza são as revoluções.

Longe vai o tempo em que escreveu pequenas biografias de D. Pedro IV e Fernão de Magalhães. Andava então a apalpar terreno historiográfico?

Foram os meus primeiros livrinhos! Ainda escrevi esses livros no fim do curso. Estava mesmo a terminar o curso e já estava centrada no período da História contemporânea, e da História social, A partir do momento em que entrei para o doutoramento, percebi que queria fazer História social, História contemporânea, História do trabalho e História da Europa, mas tudo contemporânea, é a área em que eu me especializei e pela qual sou apaixonada.

Não liga, nem como lazer, a outras cronologias?

Não. De lazer, eu ligo muito ao romance. Leio muita literatura, mas a História que me ocupa é a História contemporânea, ou seja, o pós-Revolução Francesa.

Solicitações frequentes dos media e a sua presença assídua em debates televisivos fazem de si uma espécie de pop-star da historiografia?

Não sei!… Eu fico muito feliz, digo-lhe isto assim do fundo do coração: às vezes, vou na rua e as pessoas mais simples – noutro dia, um senhor que é bombeiro, estivadores, operários, pessoas reformadas – vêm ter comigo, com o meu livro na mão, e a conversar porque o leram. Eu já fiz estes últimos livros, os não académicos, claramente para que pudessem ser lidos por toda a gente. Não simplificando a história, mas garantindo que a história era acessível a toda a gente. Daí a minha aposta na divulgação da história. A “Breve História da Europa” e a “História do Povo na Revolução Portuguesa” já foram escritas a pensar: eu quero que pessoas que não são historiadores leiam este livro, gostem e compreendam.

Essa criação de laços com o público, num sentido vasto, pode ser importante para uma efetiva democratização (ou massificação) da historiografia. Concorda?

Concordo inteiramente e acho que é uma obrigação nossa, porque a sociedade investiu muito em nós, para estudarmos, e temos obrigação de devolver isso. Adoro quando as pessoas me ensinam coisas muito difíceis para eu compreender. Por exemplo, eu não sei nada de neurologia, mas estou a ler os livros do Oliver Sacks e sinto que ele me apresentou um mundo que, para mim, é muito difícil, porque eu não sou neurologista. Então, eu acho que a divulgação científica é um compromisso, uma devolução democrática do que nos dão quando investem em nós para estudarmos e investigarmos.

Portugal tardava muito em apanhar esse barco, pelo menos no campo da historiografia. Se formos a França, por exemplo, vemos que um dos medievalistas mais importantes da sua geração, Georges Duby, era também um caso ímpar de popularidade, pois era em simultâneo um grande divulgador, em livros ou na televisão. Ainda há resistências no meio académico português?

Não lhe sei dizer. Eu acho que a divulgação científica é uma arte difícil, porque, por exemplo, o tempo que eu levo a investigar, às vezes, não é maior do que o tempo que eu levo a pensar como é que eu vou tornar aquilo acessível. Os artigos científicos têm uma escrita em que nós estamos muito mais submersos, facilmente. Portanto, a divulgação obriga-nos a um trabalho extra, mas eu acho que esse trabalho extra é obrigatório. E Portugal é mais atrasado, desse ponto de vista. Eu agora vou  começar um programa no CCB em que vou entrevistar outros historiadores, sobre história. Vai chamar-se “Conversas com história” e o objetivo é justamente esse: democratizar a história a a historiografia. Do ponto de vista da televisão, nós podíamos fazer muito mais.

Tarda-se a dar o passo seguinte, embora algumas coisas já tenham sido feitas na televisão, por exemplo por Fernando Rosas.

Exatamente. Ainda por cima, se for bem feito, as pessoas adoram, porque as pessoas gostam muito de história. As pessoas conversam comigo todos os dias, na rua, sobre questões de história. Há uma curiosidade muito grande de perceber que nós nem sempre fomos assim. Inerente à história está a ideia da transformação. A ideia de que podemos mudar é maravilhosa.

Há tempos, a propósito de uma pequena polémica, escreveu que o seu mais recente trabalho é “lido, pela sua escrita de divulgação científica, por académicos e operários, especialistas e leigos”. Preocupa-se em criar um estilo próprio ou teme transformar a história num género literário?

Não temo. Quanto melhor eu conseguir escrever a história, quanto mais recursos eu conseguir utilizar para se tornar agradável de ler, mais isso dignifica a história. O que nós devíamos era ter mais tempo para escrever ainda melhor, de forma mais agradável, mais musical.

Isso do género literário tem a ver com uma certa tradição anglo saxónica…

Claro, que é maravilhosa. Os historiadores anglo-saxónicos são absolutamente exemplares, desse ponto de vista.

Há dias, numa entrevista, Vasco Pulido Valente, não a criticando de facto, referiu-se a si, profissionalmente, em termos bastante duros. Consegue lidar bem com essas situações?

Consigo, mas gosto muito mais, por exemplo, do ambiente científico da Holanda. O meu orientador de pós-doutoramento, que agora é meu amigo e colega (trabalhamos juntos num projeto que eu coordeno de história dos operários navais), há pouco tempo, entregou-me um texto e disse: “Lê. Este tipo deu cabo de mim”. “Cabo de mim”, no sentido dos argumentos. É a tradição anglo-saxónica de debate franco, Mas em Portugal não se debate francamente. Ofende-se. Como se foge do debate franco de ideias, fazem-se ataques ad hominem, ataques pessoais, e eu creio que isso é fruto do nosso atraso, de que também faz parte o subdesenvolvimento científico.

Uma outra polémica em que se viu envolvida, não com um historiador mas com um jornalista, aquando da publicação do seu livro sobre o PCP, remete para outra questão. A de os setores ideológicos terem, chamemos-lhes assim, os seus “historiadores de bandeira”, com os quais (ou contra os quais) acenam. Suponho que a direita lhe acene, por exemplo, com Rui Ramos. É assim?

O Rui Ramos é um dos poucos historiadores de direita que há em Portugal, e eu fiz um grande capítulo a questionar, com argumentos, penso eu que bastante sólidos, a visão dele sobre o 25 de Abril, no livro dele da História de Portugal. Obviamente que esse setor todo à volta dele não gostou muito e reagiu dessa forma. Sim, há essa tendência. Acima de tudo, há uma tendência nas pessoas, que eu não sei de onde é que vem, virá da sua fragilidade, para ter medo do contraditório. As vezes, até pessoas de esquerda me perguntam: então aceitaste falar para uma câmara do CDS, ou para a Maçonaria, ou uma associação de empresários, ou o PS… E eu digo que aceito falar para qualquer pessoa que me convide, tirando fascistas. Com fascistas não existe diálogo, porque pressupõe a eliminação do outro. Eu não concordo nada com a visão do Rui Ramos e estou disposta a sentar-me em frente a ele e a dizer-lhe porquê. Isso, em Portugal, teme-se, porque os intelectuais são poucos, são frágeis, estão muito dependentes das universidades, as universidades têm um esquema de grande precariedade, os jornais são poucos… É uma orientação fundamental na minha vida, inclusive na minha vida pessoal: eu sou de conversas muito francas. Ter medo das conversas não nos diminui os problemas, aumenta-os.

Como faz para separar as suas posições, como cidadã interventiva, do que é o seu trabalho enquanto historiadora?

Eu escolho assuntos pelos quais estou apaixonada, pois só assim sei trabalhar bem, mas não escolho assuntos aos quais tenha resistências emocionais, digamos assim. Há assuntos pelos quais eu não tenho simpatia, portanto evito-os, porque o meu desgosto poderia influenciar a qualidade do trabalho. Acho que consigo distinguir o trigo do joio, e a paixão é fundamental para eu fazer um bom trabalho. Os nossos ressentimentos não são bons guias de trabalho.

Cito-a: “Sempre à procura (…) dos iludidos, trabalhadores, revoluções, dirigentes revolucionários e sindicais”. É isso?

É. Eu procuro os assuntos pelos quais tenha paixão, admiração. Isso não significa cegueira. Por exemplo, eu não tenho nenhum tipo de obreirismo. Acho que os trabalhadores são frequentemente ignorantes, agem contra os seus interesses e tomam decisões erradas. E, aliás, só trabalho com os sindicatos com os quais tenho carta branca para dizê-lo. Faço assessoria e trabalho com vários sindicatos e ordens profissionais, mas na base da total franqueza. Eu posso estar errada, e estou disposta a ser convencida de que estou errada. O que eu não posso é ser proibida de dizer o que eu vou dizer, e, inclusive, isso serve ainda mais para aqueles que estão próximos de mim.

Considera-se também uma iludida, ou uma sonhadora?

Ai, sonhadora eu sou. A nossa relação com a história é como o amor. É uma aposta estratégica. A nossa relação com o futuro é uma aposta estratégica. Nós, quando nos casamos, é para toda a vida, e temos de estar realmente convencidos de que aquela pessoa é a melhor, a que nos faz mais felizes, é um amor de perdição. E o futuro também tem de ser de perdição, no sentido de paixão. Aí, sim, é uma questão de fé, ao contrário do passado. A nossa relação com o futuro é uma relação emotiva. Eu não sei, de facto, se vai haver, no meu tempo de vida, uma revolução socialista, não sei se a haver uma revolução socialista ela vai ser capaz de fazer uma transição em que se assegure efetivamente a liberdade e a igualdade. Sei que o vou defender, nunca vou ceder um milímetro na questão da liberdade e da igualdade, as duas juntas. Não aceito o que se passou na União Soviética, do ponto de vista da restrição das liberdades, mas isso tem um lado de emoção, fé, crença. É uma aposta, digamos assim. É uma possibilidade. Não é uma certeza. Mas sem essa possibilidade como é que nós vivemos? Como é que nós vivemos pensando que isto vai dar mal? Como vivemos sem paixão e entusiasmo?

A história é a sua ferramenta para mudar o mundo?

Sem qualquer dúvida. A minha compreensão do passado é absolutamente essencial para eu transformar o presente.

Quais são as suas grandes referências historiográficas? As pisadas que segue?

É difícil. A maioria dos autores que tiveram influência no meu trabalho, da revolução portuguesa, são estrangeiros, e eu não quero estar a dizer uns e a deixar outros de lado. Falaria mais em correntes. Eu tenho muita simpatia pela escola dos “Annales”, pela sua capacidade de olhar a totalidade da sociedade. Sou marxista, e é preciso esclarecê-lo, pelo que o marxismo tem de antidogmático, inovador, e por compreender a essência dos problemas e a essência transformadora e dinâmica das questões. Exatamente o contrário do dogmatismo e da doutrina. É a capacidade de compreender o movimento contraditório da realidade, e tenho muita inspiração na História Global do Trabalho, que partiu do Instituto de Amesterdão:  percebermo-nos, nós, inseridos no quadro do sistema-mundo.

A história pode ser feita com protagonistas, ou não há melhor protagonista do que o coletivo?

É sempre uma combinação entre lideranças e coletivo. Não se pense que os dirigentes não têm um papel determinante na história, porque têm. Generais sem tropas não fazem exércitos, mas exércitos sem generais não vão a lado nenhum.

Do Medo à Esperança, entrevista Visão

mw-680

Entrevista conjunta que demos à Visão

Um psicanalista, uma historiadora, várias horas de tertúlia. No divã do consultório estiveram os portugueses e a sua história de vida. Desses meses resultou um livro e uma proposta simples: as grandes mudanças resultam da capacidade de insurgir-se e de ações simples, mas continuadas no tempo. António Coimbra de Matos e de Raquel Varela defendem que isto se faz à escala coletiva, e começa em cada um de nós.

Tão diferentes e, imagine-se, tão iguais. Ela dedica-se a investigar a história do trabalho e dos conflitos sociais. Ele, pioneiro no estudo e promoção da saúde mental infantil e juvenil, analisa pessoas há décadas.Nascidos com praticamente meio século (49 anos) de diferença, une-os a força de vontade para ir ao fundo das questões e fazer alguma coisa a seguir a isso. Move-os a capacidade de intervir na comunidade, local e global. Com várias obras científicas publicadas e vários textos e palestras dirigidos ao público em geral, Raquel e António decidiram percorrer e esmiuçar, a dois e face-a-face, os trilhos que conduzem às vulnerabilidades e forças da Nação. Conhecidos por dizerem o que entendem sem atender ao politicamente correto, ou seja, sem papas na língua, pensaram, fizeram e o resultado está no livro Do Medo À Esperança (Bertrand Ed., 181 págs., €15,50). Estivémos à conversa com eles no mesmo gabinete onde eles se encontraram durante os primeiros meses deste ano e, ao longo de uma hora (o tempo de uma sessão clínica), os autores falaram da arte do encontro, da capacidade de cooperar e do conflito criativo, que não podemos temer se quisermos resgatar a esperança e viver o presente com outro ânimo e propósito. E sim, é possível. Saiba como.

Querem contar como foi o ponto de partida para esta viagem a dois?

António Coimbra de Matos – Conhecemo-nos há três anos, num congresso organizado pelo Dr Mendes Pedro, em Coimbra. Fomono-nos encontrando e um dia surgiu a ideia de escrever um livro a quatro mãos. Sim, quatro, porque usamos o teclado do computador!

Raquel Varela – Cada um de nós tem uma visão particular da História, no registo individual e no coletivo. Quisemos transpor para livro estas conversas e fazer pontes, para refazer o passado e transformar o futuro.

“Quem tem cu tem medo”. Afirmam que ter medo é acomodar-se ao status quo. O medo tem classe social?

RV – Também tem, sim. Há medos saudáveis, como o medo de ser despedido, por exemplo. o problema é quando se fica paralisado, incapaz de reagir, com inibição da ação, para usar a expressão lapidar do António. Na Guerra Colonial, por exemplo, podia haver medo, mas uns manifestavam-se contra, outros desertavam e outros que ficaram mortos de medo e acabaram por morrer lá. Porque não reagiram.

ACM – O medo manifesta-se na relação: teme-se o social, o outro. Nas sociedades hierárquicas, com maior pressão para a submissão, o medo é maior.

Há já quem ironize com o culto da meditação, que está para a economia dos mercados como o paracetamol para as dores de cabeça… uma droga para manter a serenidade sem partir a loiça

RV – É uma proposta orientada para o indivíduo. Porém, só os outros nos salvam de nós próprios: Penso em ti, logo existo (título de obra de Coimbra de Matos). Não é fazendo yoga ou práticas meditativas que um problema vai deixar de nos magoar. Se me colocarem a trabalhar por turnos às seis da manhã e eu não puder estar com os filhos, é normal que eu não esteja bem. As pessoas têm razões para não estar bem.

Porém, houve alturas em que estivemos pior, como diz o professor nas suas aulas e palestras.

ACM – Sim, as sociedades têm evoluído para melhor, apesar de recuos vários. Houve um percurso ascendente e agora estamos a atravessar uma curva funda, pelo binómio de Schäuble: austeridade por um lado, não ser lamechas e aguentar com beatitude por outro.
O que pensam do lema “faz a paz e não a guerra”, ou a revolta, já agora?

ACM – Ficar quieto é que não resolve nada!

RV – Se não reagirmos a uma situação violenta, estamos a violentar-nos. Um grupo de pessoas pode ter medo e ser o elo mais fraco mas se se unir consegue operar mudança à escala global.Veja o caso da fábrica que parou a construção de motores de arranque no Brasil e paralizou toda a General Motors.

As relações estão enfraquecidas porque os cidadãos têm medo?

ACM – Vivemos numa sociedade enganadora e sofisticada, em que as coisas se fazem às escondidas. Há uma aparente horizontalidade, a maior parte das pessoas até se trata por tu, mas por trás existem hierarquias rígidas. É a reverência ao comandante, ao chefe, ao professor catedrático.

Não estamos numa sociedade paritária, como mostra o estudo da FFMS, Portugal Desigual.

RV – O incrível, no meio disto tudo, é que ainda encontramos flores. Vou a escolas públicas e vejo professores a fazerem exposições, muitas vezes conseguidas ao final da noite, depois de um dia esgotante, porque acumulam o trabalho dos administrativos que foram despedidos e conseguem gerir os comportamentos insolentes de alunos que têm mau ambiente familiar e em que um terço dos pais estão desempregados. Ou seja, as pessoas têm coisas muito boas dentro delas para dar.

Convite Do Medo a Esperanca

Ainda não percebi porque se fica enredado no medo, sem imaginar ou criar outro cenário.

ACM – É mais fácil lidar com um medo visível, uma ditadura militar, do que com um medo invisível. É o caso da economia de mercado, um simulacro assente em dinheiro falso e não na produção de bens e serviços.

RV – As sociedades estão numa transição história: o novo ainda não é, mas o velho já não é. Das associações mutualistas e de sociedades agrárias familiares passou-se para sociedades urbanas onde todo o bem-estar coletivo foi colocado na mão do Estado, que está a desagregar-se. Cada vez se conta menos com o partido e o sindicato, que antes tinham funções sociais protetoras.

E não foi sempre um pouco assim, ao longo da História?

(os dois, em uníssono) Não!

ACM – Houve as sociedades da Idade Média, da culpa e do castigo. As do princípio do século XX, marcadas pela depressão e pela vergonha, veja os suicídios ameaçados e os concretizados por não conseguir estar à altura, por não ser suficientemente bom para entrar na faculdade, num concurso para emprego. Agora estamos num período de total solidão, o medo de ficar desamparado. Na família, na escola, nas instituições. Se nos zangarmos com alguém, desligamos.

Descontinuam-se as relações pessoais?

ACM – Adelgaçam-se. Nas sociedades atuais a espessura dos laços afetivos é muito menor, as ligações são mais ténues e diluídas, o que facilita o desenvolvimento das psicoses.

RV – Há presos que veem mais sol do que as crianças, li num estudo, porque ficam a brincar sozinhas num quarto. Damos por adquirido que um divórcio excecional é aquele em que as pessoas ficam amigas. É normal que as pessoas recebam mais flores na morte do que em vida.

Como chegámos aqui, ao sentimento de impotência e ao clássico “quem espera desespera”?

ACM – Essa era a posição do Freud, a de que as coisas vêm do próprio umbigo. Mas as coisas vêm do ambiente. Se temos um ambiente que não responde, perdemos a esperança. Isto penetra as próprias famílias. O interesse dos pais pelos filhos é menor, o que interessa aos filhos passa-lhes ao lado, querem é que eles não lhes deem problemas e tenham resultados. É a sociedade do lucro.

Sai-se do contentamento descontente pela via do desassossego? Da desobediência?

ACM – Só há uma forma de lidar contra a opressão, que é a insurreição.

RV – E a insurreição pode ser é um ato de força contra a violência. Quando dizemos “não”…

ACM (interrompe) – Olhe, a propósito disso: num congresso realizado lá fora, se uma pessoa defende uma ideia diferente ou discorda isso é normal, mas se for cá, é logo apelidada de agressiva.

RV – As pessoas não se afirmam. O violento é o que acontece depois: os cochichos e calúnias nos locais de trabalho… Quem se sente mais vivo não é quem tem um trabalho melhor ou ganha mais, é quem reage e assume responsabilidades. Querem, levantam-se e fazem. Já os que só se queixam…

ACM – Sofrer não é bom, é masoquismo.

No livro centram-se na importância do amor, a semente da esperança. Podem explicar melhor?

ACM – Há que olhar em frente sem se focar nas causas dos problemas e criar algo novo, com menos hierarquias e cadeias de comando e mais cooperação. Sem fugir ao conflito nem alimentar a luta.

RV – É mudando o ambiente que nos mudamos a nós próprios. Pensar menos e agir mais muda a forma como pensamos. Eu não amo alguém porque o digo, mas porque chego a casa e em vez de ficar catatónica no sofá a ver televisão sugiro dar um passeio à beira-rio e digo “vamos conversar”. E porque ao sábado, mesmo cansada, digo aos meus filhos “vamos andar de skate e comer um gelado, em vez de ficar no sofá.”

ACM – O amor não se diz. Faz-se!

RV – (ri-se e acrescenta) Não é por acaso que se diz “fazer amor”.

Contudo, referem que os casais levam vidas divididas e se gerem como num local de trabalho.

RV – O problema é esse. Não resolvem as questões laborais no local de trabalho e levam-nas para casa. Os meus colegas não têm de infernizar-me a vida porque tiveram uma avaliação chata, ou o marido ou o filho, têm que resolver com a hierarquia, com quem manda, têm que enfrentar o touro! As pessoas ainda têm muito medo de errar, de falhar… este livro, por exemplo: podia ter dado errado? Podia. O nosso país já foi cobarde, atrasado e medroso e transformou-se com a democracia. As pessoas mudaram com a mudança que fizeram. Também podem ter retrocedido a partir daí, porque as pessoas estão, mas não são.

Pergunto, de novo, como se cria ou restaura a esperança quando tudo arde? E até foi um ano de muitos incêndios…

RV – Dou-lhe um exemplo. Colocaram parquímetros na minha rua. Eu coloquei um papel nas caixas de correio do bairro de Paço de Arcos e pedi uma reunião com todos. Eles foram, incluindo o administrador dos parquímetros, votámos contra a medida. O administrador foi despedido e a câmara de Oeiras retirou os parquímetros. E ainda se resolveram outros problemas! E digo-lhe mais: o padre Martins, conhecido por ser o padre vermelho da Madeira, acabou com a confissão e explicou-me porquê: “Então as pessoas não se encontram nem falam e vêm-me fazer queixa do vizinho? Que falem directamente com Deus!” Dizem que quem tem medo compra um cão. Eu defendo: quem tem medo, constrói uma relação! O problema é que as pessoas não se encontram. Se eu sair com um cão, falam comigo, se sair com os filhos já não.

E porque há o medo de relacionar-se, de envolver-se?

RV – É a primeira vez na História que temos uma sociedade maioritariamente urbana, igualdade entre homens e mulheres. Será que hoje os homens ainda continuam à procura de uma mãe? Se calhar não, há um desejo de mais e de melhor e a receptividade ao livro mostra isso.

ACM – Nós somos aquilo que vivemos. Neste momento, somos flexíveis e transformáveis.

RV – Conheço um psiquiatra e psicanalista famoso nas Astúrias, onde existem 20 mil pessoas em consultas de saúde mental. Ele defende que os problemas mentais não aumentaram. Aumentaram, sim, os problemas sociais. “Quando chegam e me dizem que estão desempregados eu respondo ‘Não precisa de mim, precisa é de uma comissão de trabalhadores’, e não de um psiquiatra.” Isso não se resolve com comprimidos.

Mas continua a ser a solução mais à mão, além do futebol, da religião, do fado. E da comida…

RV – Tenho um amigo que explica isso muito bem: em tempos de alienação, os instintos vêm ao de cima. Quando a coisa mais importante que temos no nosso dia não é criar, amar, construir, inventar, mas comer, dormir, é porque estamos desumanizados. O que muda isto é programar encontros, fazer coisas, meia hora por dia, relacionar-se no bairro, com a família e as pessoas próximas. Problemas complexos pedem soluções complexas, mas há coisas que estão ao alcance de todos e fazem a diferença na vida de cada um.

ACM – As pessoas têm uma grande capacidade para observar, reflectir e investigar. No fundo é isto que cada um pode fazer e que chega a ser mais importante do que ir à procura de uma resposta nos livros, no psiquiatra, no mestre, no pai. E lembro: criar implica sempre uma relação a dois, complementar e insaturada.

Ou seja?

ACM – Uma relação onde há lugar para as diferenças e um espaço aberto para criar coisas novas, senão entra-se na rotina. A rotina mata. Há que acreditar nos recursos próprios, sem medo de aprender com o erro. De falhar melhor.

Por fim, como dar a volta ao medo e iniciar mudanças, aqui e agora mesmo? Sem desesperar?

RV – Ocorre-me o que diz uma amiga minha, que já pensou no epitáfio: “Só estou aqui obrigada!” (risos) Correu mal um namoro? Não vá a correr comprar um cão. A primeira greve não funcionou? A próxima correrá melhor, embora cometa outros erros, porque nada é perfeito.

ACM – Outra forma de dizer isso é: “Insista, porque o melhor amor é o próximo!” Perante o desconhecido, temos medo, desejo e fascínio. E é preciso não esquecer que quando somos mais doentes temos mais medo. Quando temos mais saúde fascinamo-nos mais.

Entrevista JN

A entrevista completa que dei ao Jornal de Negócios a Anabela Mota Ribeiro.
Anabela Mota Ribeiro: “Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena: “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós”. O que deseja para os seus filhos, para o país, no novo ciclo que se anuncia?
Raquel Varela: Que eles vivam num mundo em que a igualdade, fraternidade e liberdade não sejam palavras pronunciadas por poderes que as estrangulam. Que eles saibam lutar com compromisso – ou seja, fazendo realmente acções, trabalho, assumindo responsabilidades e não apenas lamentando-se – e com coragem por um mundo assim. Porque não há nenhum direito “adquirido”, foram todos conquistados.
AMR: Acredita deveras que será um novo ciclo? Parecemos exauridos. Como encontrar/alimentar a garra dos dias inaugurais? Estamos atados no “a gente vai levando”, de uma canção brasileira?
RV: Ainda vivemos com partidos e sindicatos do pacto social. A sociedade europeia não olha para o que se passa na economia como palco de um conflito social mas ainda como um acordo, o que nasceu do pós-guerra, que implicava subida de lucros e salários. Hoje isso é impossível: ou sobem uns ou outros. Sem resistência social organizada não vai haver nada a não ser mais declínio da vida das pessoas comuns e do país. Lembrei-me de outra música brasileira: “Quem sabe faz a hora não espera acontecer”.Não é necessário ser revolucionário ou ter um conhecimento complexo da produção da sociedade, basta ter bom senso e honestidade para ver a anarquia da produção em que vivemos. Em 2008 ruiu a ideia do capitalismo regulado, como diz um colega britânico, descobriram os mais ingénuos que não há um vampiro vegetariano. Caótico, desperdiça recursos, queima capitais – o que significa formar um médico durante 14 anos e depois convidá-lo a que emigre? Hoje debate-se se um pobre é alguém que vive com 2 dólares por dia! Pobreza no século XXI não devia ser não comer, mas não ler jornais e livros e não tocar um instrumento musical. Estamos com medidas da pobreza semelhantes às da Idade Média, quando a enxada era o meio de produção privilegiado? A população, de forma unânime, acha indecente não haver um Estado Social. Em toda a Europa, até os conservadores são obrigados a defender em palavras o Estado Social. A maioria da população também sente, com brutalidade, a imobilização da capacidade produtiva propositada (desemprego); sente a asfixia fiscal, as “papeletas da ladroeira” como se dizia na revolta da Maria da Fonte; sente portanto um Estado que suga impostos e não devolve quase nada a não ser formas de controlo, e hoje a maior forma de controlo não é imediatamente a força repressiva mas a máquina fiscal. Brinco dizendo que quando houver uma revolução a população não irá para a sede da polícia política, como é comum nas revoluções, mas para as Finanças! Mas eu sou uma optimista. Como disse Friedrich Hebbel, citado por Antonio Gramsci: «À juventude censura-se amiúde acreditar que o mundo começa apenas com ela. Mas os velhos acreditam ainda mais piamente que o mundo finda com eles. O que é pior?»
AMR: Assistimos à erupção de casos de violência no país. Vizinhos desavindos, maridos a matar mulheres, pessoas a perder a paciência. Muita gente pobre. No fio – como se dizia – de um tecido puído. Vai rebentar? Que rebentamento?
RV: Não sei se a violência aumentou ou não, as estatísticas e a comunicação social não dão conta da realidade e da complexidade da violência. Mas bateu-se no fundo? Ainda não! Ainda há pais a suportar o desemprego dos filhos, há emigração, que expulsa população e serve parar retirar pressão da panela – muitos descontentes saem do país e mandam divisas. E há programas assistencialistas que evitam as filas da sopa dos pobres. Mas tudo isto é muito frágil e está atingir os seus limites: os pais a ficar sem dinheiro, a emigração já não é factor determinante de mobilidade social e a proletarização dos sectores médios; o médico que passa a ser um empregado com o tempo todo controlado numa multinacional (um hospital privado), por exemplo, tudo isto cria condições para os limites económicos e sociais se aproximarem.As sociedades mudam por reformas ou revoluções. Nas sociedades agrárias, dispersas, muito atrasadas, a miséria não tem automaticamente uma tradução em processos revolucionários, mas isso é, a meu ver, impossível em sociedades urbanas, proletarizadas (no sentido em que as pessoas vivem de vender a sua força de trabalho, seja um professor ou um estivador), escolarizadas, onde as expectativas são mais altas, e com razão. Ou seja, o comum das pessoas hoje não acha que ser pobre é uma fatalidade, um destino, e que a economia é uma entidade sagrada, natural, inevitável. Compreendem, mesmo que não consigam explicá-lo de forma complexa, que se há taxas de remuneração de parcerias público-privadas de 14%, e 25% de desempregados, não é porque “não há dinheiro” mas porque a massa salarial voa de um lado (trabalho e pequenas empresas) para o outro (algumas empresas protegidas pelo Estado). O fenómeno da burocratização e da corrupção (corrupção legal e ilegal, vamos chamar-lhe assim, ou seja, usar o Estado para benefício privado, esteja ou não tipificado na lei como corrupção), tudo isso são formas de um processo geral de declínio, em que é impossível explicar a uma criança de 10 anos porque há pessoas a dormir na rua e 700 mil casas vazias em fundos imobiliários, que nem impostos pagam.
AMR: Desemprego, Sócrates, a enorme disparidade na leitura dos números: estes são os grandes temas desta campanha eleitoral? Quais deveriam ser, na sua opinião, os grandes temas em discussão?

RV: O pleno emprego e a moratória sobre a dívida pública – com o que se sabe hoje desta dívida e com o que sabemos da contabilidade do Estado Social (ele é todo auto sustentado) a dívida não pode ser alocada a quem vive do salário; ela deve ser suspensa, fazer-se uma auditoria. Não suspender a dívida – na verdade, um negócio, uma renda fixa – é suspender a justiça social. Sem pleno emprego não há produção correta no país (a produtividade irá cair porque as pessoas estão exaustas e ganham mal), não há sustentabilidade do Estado Social e das pensões. Se era possível em 1975 por que não é hoje, que temos muito maior evolução tecnológica e científica?
AMR: Como é que Portugal pode ser mais competitivo, crescer mais, acumular mais capital? O mais provável é que não haja resposta para isto. Mas isso é aceitar que somos um país que «não se governa nem se deixa governar», como disse um general romano dos Lusitanos. Que emenda?
RV: Há uma armadilha séria: defender mais investimento público é indiferente hoje, se não questionarmos o que produzimos, para quem e como. O que é do Estado não é necessariamente público. Defendemos investimento público na saúde pública ou investimento público na transferência do SNS para a saúde privada por via da ADSE? Investimento em abstracto não quer dizer nada. Se eu não invisto em universidades que pagam bem a professores e transformo os investigadores em captadores de divisas/projectos, sem tempo para formar alunos, vou ter maus professores no ensino secundário e primário, alunos cada vez mais mal formados, que hoje já podem ser adultos e estar a formar outros alunos… Mas remunero com esse cortes a renda fixa que são os juros da dívida pública. Investimento dizendo que cada um produz melhor e mais barato determinado produto é o que enche o país de eucaliptos; se tivéssemos castanheiros éramos mais ricos, mas tínhamos menos lucro e rotatividade do capital. A competitividade a que alude a economia mainstream é a dos baixos salários, com mais ou menos investimento público. E essa “competitividade” não tem nenhum interesse para a maioria da população – empobrece o país, destrói e esvai a força de trabalho. A competitividade da EDP significa a exportação da energia que produzimos, as casa geladas das pessoas que não têm como pagar a electricidade, carregada de taxas, as subcontratações da EDP criaram uma miríade de pequenas empresas que não conseguem sustentar a segurança social e a medida de sucesso é a remuneração de dividendos no final ao CEO, accionistas e administração? Se investirmos num aluno durante 20 anos vamos produzir muito mais riqueza do que pagando uma taxa da EDP.
AMR: Estas palavras (empobrecimento, pobres) podem ser reconduzidas a uma disputa político-partidária, e todos se lembram das palavras do primeiro-ministro quando começou a austeridade (a de que tínhamos que empobrecer). Mas a questão foi concreta na vida de muitas pessoas. Pessoalmente, aprendeu a viver com menos?
RV: As políticas de recuperação dos ativos falidos em 2007-2008 são, da direita à esquerda, designadas como «austeridade», e a «saída da crise» é retórica usada por todos, ocultando que desde 2009 uma parte minoritária suspirava de alívio porque teria saído da crise em que entrara em 2007 e 2008 (a banca e os ativos falidos de grandes empresas) e outra parte da população, maioritária, quem vive do trabalho, e as pequenas e médias empresas, entrou nessa crise. O dinheiro não se evaporou, saiu de um lado para o outro. Portugal tem hoje mais 50% de pobres. Aprender é uma qualidade, não devemos aprender a viver com menos, devemos assustar-nos com a resignação – se as pessoas aceitam isso, então temos de preocupar-nos. A resignação não é uma qualidade, é espelho de uma sociedade ideologicamente doente.
Jornal de Negócios, 2 de Outubro de 2015

fotografia

“Não havia trabalhadores suficientes na máquina de guerra Nazi”

Há um ano na Áustria encontrei-me com o meu colega Gerhard Baumgartner, historiador e diretor do Centro de Documentação da Resistência Austríaca. A conversa, à volta de um riesling num dos mais antigos hotéis de Linz, cidade preferida de Hitler, foi gravada nesta entrevista. Foi uma das mais interessantes conversas de que tenho memória, da verdadeira causa dos campos de extremínio nazi – falta de alimentos para os trabalhadores forçados, judeus e não só -, à invenção das fronteiras e do passaporte. Um diálogo de passado e presente e, por isso, de futuro sobre a Europa.

Publicada na Revista Rubra nº 21, tradução de Guilherme Lopes.

GerRV

Raquel Varela: De onde vêm os roma?

Gerhard Baumgartner: Tanto quanto sabemos vieram do Centro Norte da Índia, e só o sabemos através da linguística (existem muito poucos registros, que começam há cerca de 1500 anos atrás). O que inicia essa migração não é claro, mas sabemos por onde eles passaram enquanto grupo porque adquiriram diferentes palavras de diferentes línguas do Afeganistão, da Pérsia, do Império Bizantino, daí as muitas palavras gregas e arménias, e por volta do ano 1000 já estão em Constantinopla, hoje Istambul, e é de lá que começa a migração para a Europa.

Uma possível explicação para esta migração para a Europa é a retirada dos exércitos das cruzadas durante o abandono dos Estados Cristãos, no que é hoje a Palestina. Eles terão acompanhado esse lento processo e quando atingem o lado noroeste dos Alpes, por volta dos sécs. XIV e XV, esses grupos passaram a chamar-se de sinti. Os grupos do noroeste da Europa, os roma e os sinti, são fortemente influenciados pelo Alemão, pelo Francês…

RV: Estes grupos foram sempre grupos viajantes?

GB: Não sabemos. Temos alguns registos de quando chegaram e de quando foram acolhidos pelas cidades. Podemos ver que as cidades não gostam deles, mas é muito difícil interpretar este processo, dado que é muito fácil interpretar incorrectamente a realidade social por detrás de um documento. O status deles é, a meu ver, semelhante ao dos judeus: o governante mantém sob a sua protecção pequenos grupos que servem uma determinada função, sendo-lhes atribuído um estatuto especial por parte do imperador, rei ou arquiduque, e, em troca, eles tomam conta das suas finanças, por exemplo. A situação dos roma parece ser um pouco essa.

Temos os relatos de quando eles chegam às chamadas cidades livres e estas são obrigadas a aceitá-los. Estas cidades não eram famosas pela sua hospitalidade para com os imigrantes, pelo que deve ter havido uma boa razão para acolherem os roma. Estas cidades queixam-se de terem de gastar dinheiro neles, mas sabemos que muitos desses primeiros grupos tinham “cartas de protecção” de imperadores, reis, etc., portanto, houve alguma razão para que fossem aceites no sistema. O sistema feudal não é um que incentive grandes grupos de pessoas, especialmente pessoas armadas, a viajar sem rumo.

A segunda onda, se lhe quisermos chamar assim, é a daqueles a quem chamamos roma, que mais tarde viriam a ser chamados de ciganos da Europa de Leste, e estes vêm com os exércitos turcos dos séc. XV e XVI.

RV: Eram mercenários no exército turco?

GB: Encontramos grupos roma conforme o Império Otomano vai aumentando. Eles tinham alguma função, não temos a certeza qual seria, mas de certeza que estaria relacionada com algum conhecimento especializado: forjar armas é certamente uma delas, já que eles eram ferreiros e armeiros.

Assim, uma das razões pelas quais foram tão bem recebidos pode ter a ver com a tecnologia das armas de fogo que teria vindo do Oriente para o Ocidente, e os grandes sucessos do Império Otomano têm certamente a ver com o desenvolvimento das armas de fogo, desenvolvimento que demorou, ao resto do Ocidente, cem a duzentos anos a apanhar. Ao que parece alguns grupos roma teriam desempenhado um papel nisso, embora este não seja muito claro.

RV: O que é que eles têm feito nos últimos seiscentos anos? Quais as suas relações com a produção?

GB: Bem, sabemos que eles foram mercenários na Europa Ocidental até o séc. XVIII e que, muito bruscamente, perdem esse estatuto. E uma vez que estavam armados, rapidamente descem ao nível de ladrões, assaltantes, e são perseguidos nessa qualidade.

Na Europa de Leste, eles acabam, por vezes, na escravatura, às vezes, a trabalhar nas minas como servos endividados. Noutras cidades turcas, encontramo-los em guildas de produção especializada, muitas vezes enquanto ferreiros, mas também noutro tipo de comércios. Esta situação manteve-se estável até que, no séc. XVIII, as minas começam a ir à falência por já não serem tão rentáveis e muitas dessas pessoas recuperam a liberdade na Europa de Leste, começando, outra vez, a viajar, procurando onde viver.

RV: Eles não se tinham mantido em movimento durante este tempo?

GB: Não tanto quanto antes. Alguns deles sim, mas a maioria não, pelo que, na segunda metade do séc. XVIII, inicia-se uma espécie de migração secundária. O problema é que, quando eles se estabelecem em novos locais, às vezes, à força, não lhes é dada qualquer terra, pelo que as comunidades têm de os receber. É-lhes permitido construir casas e trabalhar na terra, sendo que as casas lhes pertencem, mas não os campos. Tinham-se tornado uma espécie de lumpenproletariat agrícola e é assim que se mantêm até à Segunda Guerra Mundial.

RV: Durante esses 600 anos, alguns tinham-se tornado proprietários, certo?

GB: Exacto. O primeiro problema é que temos uma certa imagem do que é um rom, uma imagem que surge com o Romantismo. O segundo problema é que temos muito pouca pesquisa histórica sobre estes grupos. Dificilmente se encontra um livro centrado nos roma no séc. XV e que se baseie em fontes da altura, pelo que há muito trabalho de adivinhação e pouco trabalho em que a base sejam relatos da altura. Há muito pouco que sabemos sobre eles no séc. XVIII, mas, aparentemente, era possível encontrar os roma em todos os sectores da sociedade, alguns tendo sido elevados ao estatuto nobiliário.

Esta constatação não se conforma com a imagem estereotipada duma população despreocupada, que vive sem quaisquer tipos de laços sociais. O problema é que, no séc. XIX, o Romantismo estava a projectar nos roma as relações sociais opostas àquelas que estavam a surgir naquele tempo. De repente surge esta imagem de pessoas que não têm de trabalhar regularmente, de acordo com horários, que têm um apetite sexual selvagem, etc. Os constrangimentos da moralidade sexual burguesa não se lhes aplicavam.

Mas tudo isto são invenções! É interessante olhar para fotografias do início do século, onde se podem ver roma numa série de papéis sociais inseridos na sociedade, em cidades, enquanto que, nas fotografias do final do séc. XIX, eles estão sempre no campo, sem que sejam visíveis quaisquer ligações com a sociedade ou outros indivíduos.

RV: Mas não achas que esta descrição dos Roma tem a ver com o facto deles não possuírem terras em que trabalhar?

GB: Não, eu não penso na questão assim. O aspecto interessante sobre essa representação é que é uma marginalização visual que não tem qualquer correspondência com a realidade. Sabemos que, no final do séc. XIX, a maioria dos roma, mais de 90%, trabalham nos campos, e só uma minoria vive e viaja em carroças, e, no entanto, é essa minoria, que seria cerca de 7%, que determina todas as representações nos séc. XIX e XX, e isso tem a ver com a fotografia.

A fotografia é inventada no séc. XIX e um grupo de fotógrafos romeno, que tem uma ligação muito boa com Paris, começa a vender fotografias que se tornam alvo de coleccionismo. Há três temas que podem ser vendidos: as famílias reais, os assassinos e suas execuções, e os roma, os “nobres selvagens da Europa”. É uma espécie de orientalização, se quisermos colocar as coisas nesses termos. E é então que toda a gente começa a pintar imagens, até Van Gogh produziu um quadro de duas carroças ciganas, etc., apesar da grande variedade de famílias roma completamente integradas.

RV: Podes falar sobre as leis e regulamentos no que toca à cidadania?

GB: Havia algumas leis e regulamentos que tinham a ver com a cidadania, mas a sua aplicação era inexistente. A ideia de cidadania era completamente diferente do que é hoje: eles eram subalternos (em alemão Untergebener), sujeitos do Rei, não cidadãos. Com o surgimento dos Estados Laborais isso muda e durante muito tempo não há uma prática clara de como alguém se pode tornar cidadão deste ou daquele país, não há uma resposta para a pergunta “o que acontece se eu mudar de um país para o outro?”. Em 1860 podias, se tivesses dinheiro, entrar num barco em Odessa e mudar-te para Paris, Londres ou Viena, e se tivesses propriedade ou negócios nesse novo país, eras, para efeitos práticos, um residente de lá, sendo autorizado a votar, assumindo houvesse eleições lá. Não havia documentos pessoais, no sentido moderno, e as pessoas só precisavam de passaportes, porque eles funcionavam como autorizações para sair de algum sítio, não para entrar em algum lado.

RV: Mas a possibilidade de mobilidade era bastante reduzida devido à falta de transporte e de educação.

GB: Sim, era. Outro aspecto interessante é que temos grupos compostos principalmente de roma de origem romena a serem libertados do trabalho escravo nas décadas de 1870 e 1880, e a chegarem à Europa Ocidental muito rapidamente. Por volta do final do século, quando os sistemas dos Estados se estão a apertar, há grupos a serem empurrados da Alemanha para a França, para a Bélgica, e a serem empurrados de volta. A princípio não parece muito sério, uma vez que existem várias fotografias dos roma a brincar com os funcionários das fronteiras, colocando apenas a cabeça para lá da fronteira para os provocar, mas isto altera-se ao longo do tempo.

Conforme nos aproximamos da guerra, quando há um maior controlo sobre a movimentação de pessoas, a França apresenta o primeiro documento moderno para “vagabundos”, que consiste numa fotografia e impressões digitais, em 1912, chamado de carte anthropométrique. Este documento é destinado a todos os “povos viajantes”, como lhes chamam, e o que é apresentado como uma medida contra os elementos duvidosos da sociedade é o que se torna padrão para toda a população, cem anos mais tarde.

Esta ideia espalha-se muito rapidamente por toda a Europa nos anos da Guerra de Inverno, e o registro pela Interpol acaba a desempenhar um papel crucial na perseguição dos roma pelos Nazis. Um rom que tivesse sido registado pela polícia nos anos da Guerra do Inverno, enquanto tal viria a ser perseguido, deportado e morto. Se não tivesse sido registado, tinha uma boa hipótese de escapar.

RV: Os Nazis utilizaram os registos da Interpol para as outras pessoas?

GB: Sim, usaram os registos para toda a população. A Interpol foi fundada em Viena em 1923 e, em 1938, Reinhard Heydrich, um dos generais das SS, torna-se o chefe da Interpol Europeia, e todos os arquivos são trasladados de Viena para Berlim. Curiosamente, a maioria dos Estados não parou a sua colaboração com a Interpol durante a Segunda Guerra Mundial. Os suíços continuaram a trabalhar com os alemães e o facto dos judeus terem um “J” carimbado nos seus passaportes (de Jude, judeu) tem a ver com a Interpol. Os suíços insistiram para que os judeus alemães tivessem o “J” no seu passaporte para que pudessem recusar os refugiados judeus que tentassem entrar na Suíça.

RV: Porque é que os roma e os sinti foram perseguidos pelos Nazis durante a Segunda Guerra Mundial?

GB: Para além dos judeus, eles são o segundo grupo que aquela ideologia racista classificou como não sendo pertencentes à Europa, pelo que os conceitos de determinismo social e eugenia social lhes eram aplicáveis. Em segundo lugar, a “vadiagem” funcionava como um marcador de um defeito genético, era considerado o traço que realmente mostrava que aquele indivíduo é socialmente deficiente, um criminoso regular, uma prostituta. Os roma eram, então, considerados “trabalhadores tímidos” por razões genéticas.

E há também o problema dos roma na Europa Central e de Leste terem sido empurrados para o desemprego com o regresso dos anteriores trabalhadores agrícolas às suas aldeias de origem, especialmente durante os anos da Guerra de Inverno. A mortalidade infantil disparou para 50%: estavam simplesmente a morrer de fome e, uma vez que não havia Estado Social e cabia à sempre a comunidade cuidar de seus pobres, as comunidades começaram a fazer campanha para livrar-se dos roma.

O que as SS fazem é criar campos de concentração e grandes fábricas dentro destes, pondo-os a funcionar como um sistema auto-sustentado. No entanto, os roma que são deportados das aldeias são os que são capazes de trabalhar, e as aldeias, que se queixavam de terem de os sustentar, vêem, então, os últimos roma capazes de trabalhar a ser levados, aumentando em espiral os custos para as aldeias, o que só iria terminar após a deportação de todos os roma e sinti. É possível ver que nas primeiras deportações, em 1938-39, foram os jovens e fortes a ser enviados para a Alemanha para trabalhar; em 1941-1943, foi a vez das crianças e dos idosos a serem deportados para a Polónia para serem mortos.

RV: Não havia trabalhadores suficientes na máquina de guerra Nazi?

GB: Não, não eram suficientes. Com o rearmamento, o mercado de trabalho na Alemanha foi completamente esvaziado. Os roma estavam a ser deportados para os campos de concentração, porque as SS precisavam de força de trabalho. Nem todos estavam desempregados e foram levados de seus locais de trabalho e arrastados para os campos de concentração, porque as SS tinham estabelecido empresas nos campos e precisavam de pessoas para trabalhar lá. Mais tarde, os Nazis viriam a matar todos os que tinham de alimentar, quando se aperceberam que não havia comida suficiente para toda a população do Terceiro Reich, em 1942-43.

RV: E consideras que a Solução Final também teve a ver com essas necessidades?

GB: Claro. Há duas teorias sobre o Holocausto: uma é a teoria intencionalista, que diz que os Nazis sempre tiveram a intenção de matar cada judeu; a outra é uma espécie de visão funcionalista do Holocausto, e eu acho que se pode provar que tem muito a ver com esta. A decisão de matar os judeus em grande número é tomada no momento em que os Nazis são informados pelos seus economistas que é necessário matar vários milhões de pessoas para que seja possível garantir a distribuição e consumo de carne pelos alemães. A decisão é tomada na famosa Conferência de Wannsee, onde a conclusão a que chegam é que se alguém tem que morrer, então, que sejam os judeus. A partir desse momento deixa de interessar se eles produziam um milhão de coisas para o exército alemão… havia demasiadas bocas para alimentar.

RV: E esta solução inclui os roma. Quantos foram assassinados?

GB: As estimativas variam de 250.000 a 500.000.

RV: E quantos há hoje?

GB: Não sabemos. O problema é que não existem boas estatísticas para esta análise. Em 2004, as estimativas máximas das ONG’s era de cerca de 6-8 milhões, enquanto que hoje as estimativas andam pelos 16 milhões. Isto é demograficamente impossível! Não há nenhuma forma de uma população de 6 milhões crescer para 16 milhões em dez anos. Todas as mulheres capazes de procriar teriam de o estar a fazer como máquinas.

RV: Mas é isso que tem sido dito na televisão. Eu julgo que essa ideia dos roma terem imensas crianças está relacionada com os programas sociais, que têm vindo a aumentar na Europa nas últimas décadas.

GB: Isso é verdade. Estas populações mostram, após a Segunda Guerra Mundial, as mesmas dinâmicas sociais que as populações das favelas da América do Sul. Há uma série de semelhanças. Por que é que estes números crescem tão rapidamente? Bem, eles não são suportados por qualquer análise estatística decente, mas esta é uma situação em que todos os envolvidos neste jogo de números saem a ganhar. As ONG’s na Europa Central tornam-se mais importantes, porque passam a representar um grupo maior; os governos da Europa Central também saem a ganhar, porque quanto maior é a sua população sinti, mais dinheiro vindo de Bruxelas recebem para apoio do seu Estado Social.

RV: Achas que os programas de assistência social tiveram como consequência a criação de um lumpenproletariado que vive deles?

GB: Não, mas isso é uma questão muito complicada. Acho que o que está a acontecer na Europa Central é a etnicização da pobreza. Há um excelente trabalho de investigação feito por dois sociólogos, Ladányi e Szelényi, que cobriu a República Checa, a Eslováquia, a Hungria, a Roménia, com excepção da Bulgária.

Os roma vivem normalmente em guetos claramente demarcados nas cidades. O que fizeram em todos os outros quatro países foi perguntarem às pessoas se se identificavam como roma, centenas deles em cada país, e depois perguntaram aos chamados “peritos sociais” à sua volta, professores, polícias, assistentes sociais, administradores públicos, quem eram os roma da sua área. O interessante é que a sobreposição, em todos esses países, foi de apenas 50%. Metade das pessoas que se identificam como roma não é reconhecida como tal, porque não é suficientemente “pura” de acordo com essas agências; e metade das pessoas que são reconhecidas ou consideradas como roma pelos peritos sociais não é rom, é simplesmente pobre. Isto é o que eu chamo de etnicização da pobreza, i.e., quando a pobreza começa a ser considerada uma característica de um grupo étnico. Todos os pobres são, automaticamente, considerados roma. Como é que alguém prova que não é rom? A maneira mais segura é participar num grupo ou milícia abertamente anti-rom assim que seja ameaçado com uma descida para um nível baixo da sociedade.

Grécia, abrir caminhos

Ontem a caminho da Grécia, saída de Frankfurt, por cima do assento no avião estava o sinal EXIT e o comandante falava no altifalante: “em Atenas está um dia lindo, e assim vai ficar nos próximos dias”. A comissão internacional da auditoria à dívida grega provou que esta é ilegítima, e não deve ser reconhecida – trata-se de um obscuro negócio de salvação da banca privada e de rebuscados mecanismos financeiros que envolvem paraísos ficais como o Luxemburgo. Não foi a casa de 80 metros quadrados com uma bela varanda que a Stela e o Georgos compraram com 30 anos de trabalho que fez a dívida pública grega. Ontem foram buscar-me ao aeroporto, já passava da meia-noite – tenho um carinho por eles que não cabe nos abraços que trocamos. Chegámos a casa, tive casas onde não me sentia tão em casa como nesta, e a Stela tinha feito uma salada de folhas de videira e beringelas; hoje pela manhã tinha na varanda sumo de frutas, melancia, figos, como ela se lembrava que os figos e as azeitonas gregas são para mim incomparáveis, tomates com manjericão e pão torrado com café grego. Ela agora está lá dentro, cozeu um polvo com manjericão, vinagre e oregãos frescos e está a grelhar beringelas como nós grelhamos pimentos, até a pela ficar preta e sair. Trouxe-lhe conservas de cavala, bacalhau, patê de javali, pasteis de nata…É a nossa União Europeia: javali por oregãos, café por cavala marinada. Tsirpas disse que ia ser um general na guerra e a meio ajoelhou-se – hoje vou abraçar o meu amigo Georgos, dirigente do sindicato dos estivadores do porto de Pireus, a quem Tsirpas jurou que não ia privatizar o porto, e sem honra, assinou a rendição, sem batalha, mesmo depois de um referendo que lhe deu não dez ou vinte por cento, que por poucos que fossem podiam estar certos, mas sessenta!…A Stela nem ouve a palavra Syrisa sem abrir os olhos com algum desprezo, difícil na doçura da sua expressão. Está desempregada, o marido, meu querido amigo Georgos, é médico nefrologista com 35 anos de carreira – ganha 1600 euros e os dois filhos estiverem um ano desempregados: ela oftalmologista, ele engenheiro mecânico. Mas, porque não vão eles para a Alemanha emigrar? Porque a nossa Europa é a das pessoas: mercadorias emigram, filhos criam-se com amor, não é para os ver no skype a mandarem divisas para salvar os activos financeiros dos armadores gregos e da banca alemã.

Vem destes ventos um general, Anibal, cartaginense, em 248 a.c., que um dia lhe disseram “não há caminho para atravessar a montanha”. E ele gritou: “quando não há, abre-se!”. Temos que abrir caminho a outra Europa, mas deixar de carregar na bagagem o peso insuportável dos cobardes, porque com eles cada vez que andamos para a frente caímos ladeira abaixo.
Vou estar estes dias na Grécia, tentarei enviar vídeos com entrevistas, análise social e histórica, um olhar sobre a cultura, porque nem só de política vive o Homem, o que conseguir se os meios técnicos não falharem. Dias 17 a 19 estarei numa conferência internacional de investigadores sobre a crise econômica mundial. Darei conta do que conseguir. Agora vou comer salada de beringelas assadas.

Economia “Verde”

Entrevista que dei à Rede Brasil Atual

“Esse discurso [ambientalista] implica gigantescas massas dos orçamentos públicos para a ‘economia verde’, que não tem nada de verde. Sou coordenadora de um estudo internacional sobre os operários navais, e o grande objetivo do sindicato internacional que organiza esses trabalhadores é subsídios para a ‘reconversão verde’ dos navios. Isso é uma fraude”, diz.
Não há ‘reconversão verde’ nenhuma dos navios, o que há é uma gigantesca alocação de recursos públicos no setor privado.
“Sob esse discurso, temos assistido a coisas absurdas como, por exemplo, a privatização dos resíduos sólidos das cidades, o uso de energias renováveis de uma forma que levam a um gasto ainda maior de combustíveis fósseis, ou monoculturas para produção de combustíveis renováveis que acabam agravando o problema da produção de alimentos, criando dependência alimentar.”
Para Raquel Varela, um programa “verde” verdadeiramente progressista teria de lidar, principalmente, com a reforma agrária e o regime de propriedade no campo. “Não há ambientalismo sério, digno desse nome, que não coloque em discussão o regime de propriedade. A contínua expulsão de trabalhadores do campo para a cidade, e a contínua exploração capitalista do campo, levam necessariamente aos latifúndios e à monocultura. Em Portugal, isso ocorre por exemplo com a plantação de eucalipto para fazer pasta de papel. Então os ambientalistas são capazes de defender que não se derrube a mata nativa, mas ninguém questiona o regime de propriedade que torna os proprietários de terras, grandes e pequenos, dependentes dos preços fixados pelas empresas, que operam em monopólio”, ressalta.
O resto da entrevista em acesso no link

Entrevista Sindicato Enfermeiros Portugueses.

Raquel Varela é historiadora e investigadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, onde coordena o Grupo de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais, e do Instituto Internacional de História Social. É presidente da Associação Internacional Strikes and Social Conflicts.

No livro Quem Paga o Estado Social em Portugal?, que serviu para desfazer algumas mensagens proferidas pelo Governo, dedica o prefácio aos enfermeiros e médicos pela luta em torno do Serviço Nacional de Saúde. Quer especificar um pouco?

Dedicámos o Quem Paga o Estado Social em Portugal aos médicos, aos enfermeiros e também aos professores, porque consideramos serem pilares essenciais do Estado social. Entendemos que o Estado social, antes de mais nada, é aquilo que permite os padrões civilizacionais que temos e que se veem não só na enorme melhoria das taxas de mortalidade infantil, de esperança média de vida, etc., mas também no desenvolvimento social e cultural do País.

Afirmámos, como resultado de um estudo colectivo que nunca foi contestado cientificamente, que “não há qualquer verdade em dizer que os trabalhadores portugueses têm uma dívida ao Estado e que o Serviço Nacional de Saúde, ou a Segurança Social (as pensões), ou a Educação têm que sofrer cortes”. Afirmámos e reafirmo. No âmbito da investigação que concretizámos fizemos a contabilidade de tudo aquilo que os trabalhadores pagam para o Estado social (funções sociais do Estado) e tudo o que recebem, a partir de números oficiais, e chegámos à conclusão de que há superavit, ou seja, as pessoas pagam mais do que recebem em Educação, em Saúde, em Segurança Social, em Desporto e em Lazer. Até hoje ninguém desmentiu. O estudo foi publicado há mais de um ano e transporta para Portugal o modelo utilizado nos Estados Unidos e em outros países da OCDE para calcular as funções sociais do Estado. Portanto, sobre isto não há qualquer dúvida: aquilo a que os Portugueses estão a ser sujeitos é um roubo! Não tem outro nome e tem consequências de barbárie social, nomeadamente se tivermos em conta tudo o que vamos ouvindo como o aumento brutal dos índices de pobreza, de fome… Índices que, normalmente, caracterizam os países que nós achávamos (e achamos) atrasados.

A Segurança Social é ou não sustentável?

É totalmente sustentável. Mais uma vez, até é superavitária. É o único item do Orçamento de Estado que nunca teve problemas de deficit. O que se passa é que é permanentemente descapitalizada, ou seja, o seu dinheiro é usado para tudo e, cada vez mais, para remunerar os diversos capitais, através das PPP, dos juros da dívida pública, etc.

Mas importa dizer que a Segurança Social só é sustentável se olharmos de outra forma para o trabalho. Portugal tem 5,5 milhões de portugueses ativos e 2,5 milhões de pensionistas por velhice. Medina Carreira fala frequentemente, alterando as variáveis, que temos 1,2 trabalhadores por cada reformado. Não é verdade! O que se passa é que Medina Carreira retira dessa equação os desempregados, que são 1 milhão e 400 mil, e coloca outro tipo de pensionistas, para chegar àquela conclusão. Na verdade, nós temos mais de 2 trabalhadores por cada reformado por velhice. Portanto, não temos um problema demográfico. Pelo contrário, o aumento da esperança média de vida e a possibilidade de os nossos pais e avós viverem mais é uma excelente notícia.

Esta sociedade produz uma riqueza social coletiva de 170 mil milhões de euros, o nosso PIB e é hoje muito maior e nós somos muito mais produtivos do que quando foram criados os sistemas de Segurança Social. Cada trabalhador é cinco vezes mais produtivo do que era em 1961. O sistema de segurança social universal é criado a partir de 1974-75, quando éramos menos produtivos e era sustentável. Como podia não o ser hoje? Os contribuintes estabeleceram um contrato com o Estado. É totalmente ilegítimo e imoral rompê-lo, e não é necessário cortar pensões!

Metade da população ativa, em Portugal, ou é precária ou está desempregada, o que significa que não desconta para a Segurança Social. Como é possível aguentar aqueles que estão reformados se temos relações laborais típicas de países periféricos? Em Portugal, 80% dos trabalhadores por conta de outrem ganha menos de 900 € líquidos; temos 1 milhão e 400 mil desempregados, quase 3 milhões de pobres sem transferências sociais, 10% dos portugueses que trabalham não conseguem chegar ao fim do mês com dinheiro. A Europa já criou um conceito para isto, chamam-se os working poor, ou seja, aqueles que com um salário não conseguem alimentar-se e chegar ao final do mês e, portanto, têm de acumular um segundo salário ou dirigir-se às instituições de caridade, muitas vezes organizada pelo Estado, como são exemplo as cantinas sociais, que são a nova “sopa dos pobres” regulada pelo Estado.

 

Lucro e riqueza significam o mesmo?

Lucro e riqueza não são a mesma coisa. Por exemplo, nós temos enfermeiros a emigrar mas que nos custaram muito a formar, a quem pagámos, colectivamente, e ainda bem, a sua formação. Mas os enfermeiros estão a emigrar, ou seja, houve um custo na sua formação mas a riqueza que estão a produzir vai para outro país. Se em vez do número de enfermeiros que temos (e o governo ainda quer despedir mais…) tivéssemos mais, a consequência seria ter mais pessoas a serem tratadas e cuidadas (isto é, mais riqueza mas menos capital nas mãos de privados, porque esse investimento em força de trabalho vai por exemplo para negócios privados). E, sobretudo, tínhamos um aumento da produtividade do trabalho dos enfermeiros. Neste momento temos enfermeiros permanentemente a fazer turnos – e esse é o objetivo do governo para muitas profissões, o de não contratar pessoas –, obrigando as que mantêm o seu posto de trabalho a fazer turnos sobre turnos, com graves consequências para a sua saúde. Claro que as pessoas aceitam fazer estes turnos porque têm salários muito baixos. Um enfermeiro é uma profissão muito qualificada, exigente, de risco, que implica uma grande responsabilidade e que ganha, se não estou em erro, durante 10/15/20 anos, 1200 € brutos, julgo que é por volta disto. É um salário que lhe dá para pagar a casa, alimentar os filhos, se os tiver, e pouco mais. Estamos a falar de um salário de mera reprodução da força de trabalho.

Aumento dos horários significa aumento da produtividade?

Não, pelo contrário! As pessoas não trabalham mais quando estão de serviço 8 horas em vez de 7. O aumento da produtividade em Portugal tem sido conseguido através da descida do custo unitário do trabalho porque as pessoas trabalham mais horas e ganham menos. Essa é a aposta do governo. É o padrão chinês, o padrão latino-americano… É o padrão de “a força de trabalho leva-se à exaustão”. Uma boa parte destas pessoas, a trabalhar turnos sobre turnos, horas sobre horas, 8, 9 ou 10 horas, não sei se chegarão aos 65 anos. Isto vai ter consequências!

E há ou não dinheiro? Essa é sempre a pergunta. Como é que podemos ter pleno emprego? Como vamos pagar a mais enfermeiros? Como vamos aumentar o salário dos enfermeiros e reduzir-lhes o horário de trabalho? Essa equação é possível, na nossa opinião, pondo em causa as rendas fixas do capital que vivem à conta, literalmente, do orçamento público, nomeadamente do SNS.

Temos um país onde metade do financiamento dos hospitais privados decorre dos subsistemas públicos. Por exemplo, temos uma queda de 9% nas análises no serviço público e um aumento de 12% nas análises pagas pelo serviço público aos privados. Portanto, temos um SNS que não é colocado em causa diretamente, mas é-o indiretamente, pela permanente subcontratualização, terceirização, às vezes escamoteada, às vezes nem por isso, de subsídios ao privado. Tudo isto põe em causa o SNS e torna incompatível pagar decentemente aos enfermeiros. Pior do que isso, à medida que se subcontratualizam os serviços ao privado, rapidamente as pessoas podem chegar à conclusão de que mais vale ir ao privado do que ao público. Por exemplo, neste momento, quem tem regimes subvencionados gasta aparentemente menos (claro que gasta mais porque pagou com os seus impostos), mas no imediato sai-lhe mais barato ir ao Hospital da Luz do que a um hospital público. Isto é descapitalização do SNS, também do ponto de vista dos recursos humanos. Ou seja, vai ser muito fácil para este governo dizer: “Não precisamos de tantos enfermeiros no SNS e portanto despedimo-los e acabamos com o contrato de trabalho que os protegia no serviço público porque os utentes estão a ir para o serviço privado”. Tudo isto é altamente inteligente. Não é por acaso que a Siemens Medical Caree outras grandes consultoras internacionais têm planos de gestão e de privatização dos serviços públicos que incluem todos estes mecanismos. O Banco Mundial tem relatórios onde aconselha isto. Há centenas de investigadores pelo mundo a pensar: “Como é que se privatizam os serviços nacionais de saúde e como é que se faz lucro com a saúde das pessoas?” Como é que, com a desgraça de uns, outros ganham?” Mas, do ponto de vista civilizacional, social e humano, isto é uma autêntica tragédia para nós.

 

No livro A Segurança Social é Sustentável, com o subtítulo “Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal”, retratamos o país a partir do trabalho e só uma parte é sobre a Segurança Social. Tudo o resto são estudos sobre o trabalho.

Fala-se muito, hoje, em pequenos empresários. Decorrente dos estudos, entendemos que esta parte substancial do País que aparece como «pequenos empresários» não o é. Na verdade são trabalhadores. É o típico caso das empresas de eletricidade, telecomunicações e outras que foram permanentemente chamando os seus trabalhadores, despedindo-os, possibilitando reformas antecipadas, e/ou convidando muitos dos que seus trabalhadores a criarem a sua própria empresa… Aquilo a que agora chamam empreendedorismo!

Para criar a sua empresa ficam com uma dívida ao banco. O capital (dinheiro) circula nessa pequena empresa, mas não se acumula aí, mas na grande empresa de que eles dependem. As ditas pequenas empresas são totalmente dependentes da grande e, portanto, quando a grande está parada são as pequenas que aguentam todos os custos da paragem de produção. Na verdade, estes pequenos empresários apenas conseguem pagar a sua Segurança Social, os instrumentos e os meios de trabalho, todos os custos associados ao trabalho e o salário, o seu e o do seu trabalhador (se tiverem). Do nosso ponto de vista são trabalhadores, não são pequenos empresários.

Claro que nós ainda temos alguns típicos pequenos empresários, ou seja, pessoas que tinham alguma independência. Eu penso que a tendência é para desaparecerem. Esmagados pelo aumento das rendas e pelo IVA, tendem a diminuir até pelo aparecimento dos centros comerciais. Claro que os centros comerciais têm outro esquema ligado à acumulação, à grande empresa, porque os donos são os grandes grupos económicos portugueses, Belmiro de Azevedo, Amorim e outros.

Estamos a regressar ao século XIX?

Eu gosto sempre de ter cuidado com essas comparações, porque o argumento “nós estamos a regressar ao século XIX” não é muito rigoroso do ponto de vista histórico. Porquê? Há semelhanças óbvias. No sentido em que, paulatinamente, põe-se fim ao direito ao trabalho, conquistado no 25 de Abril. Essa é a grande característica do pacto social pós 25 de Abril: o direito ao trabalho. A pessoa tem direito a trabalhar e a ter segurança no trabalho. E, de facto, isso nunca tinha existido até aí. Portanto, o que existia para a maioria da força de trabalho era aquilo a que hoje se chama precarização. Nem creio que se deva chamar este nome. O que existia era o trabalhador à peça, o trabalhador ao domicílio, o trabalhador sazonal e o trabalhador que era chamado à produção quando a havia e depois era expulso. Agora, curiosamente, o que temos é uma situação pior atenuada pelo gigantesco processo de caridade que aguenta esta força de trabalho. E é pior porque o número de proletários, no sentido clássico do termo, aumentou muito. Não só aumentou a população ativa, mas aumentou o peso relativo das pessoas que não têm nada para vender a não ser a sua força de trabalho física e psíquica. Não era assim no passado! Isto é um processo que se inicia sobretudo a partir dos anos 60. Claro que as pessoas às vezes não associam o conceito de um enfermeiro, de um médico ou de um professor a um proletário, como estou aqui a usar, ou seja, alguém que não tem nada para vender a não ser a sua força de trabalho e depende disso para viver. É disso que falamos quando nos referimos ao processo de proletarização. Eu penso, com toda a sinceridade, que um enfermeiro é um proletário. Agora o termo precário é um termo moderno que na realidade significa regressão social. Hoje um licenciado filho de um enfermeiro não tem a expectativa de ter emprego ou de ter uma vida melhor que a dos pais. Pelo contrário, a sua expectativa é ter uma vida pior que a dos pais porque as relações laborais são piores.

 

No seu livro afirma “Portugal teve até há pouco tempo um dos melhores serviços de saúde do mundo”. Já não temos?

Vou arriscar dizer uma coisa, e deixo na mão dos médicos e enfermeiros a resposta a esta pergunta: nós ainda temos um Serviço Nacional de Saúde?

Tenho muitas dúvidas em relação a isto e acho que esta pergunta tem de ser feita pelas pessoas. Uma coisa é existir um SNS no papel, outra coisa é existirem idosos que vivem na região da Grande Lisboa, com mais de 65 anos, dos quais 30% deixaram de ir aos cuidados de saúde porque não têm dinheiro para o transporte. Nós temos cerca de 13% dos idosos que não conseguem comprar medicamentos; temos sistematicamente um desvio de recursos do setor público para o setor privado. Como é que se justifica que médicos que estão no setor público não garantam o fim das “listas de espera” e esses mesmos médicos operem no setor privado? Não estou a dizer que a culpa é dos médicos porque, mais uma vez, acho que os salários dos médicos e enfermeiros, no serviço público, deveriam ser muito melhores e terem exclusividade; não deveria haver nenhum tipo de subvenções públicas ao setor privado. Quem quer ir à saúde privada, vai. Mas paga! E nós garantimos uma saúde de excelência no setor público, o que significa garantir bons salários aos profissionais de saúde.

O que eu verifico cada vez mais como historiadora do trabalho é que a saúde no sistema capitalista trata sobretudo da manutenção da força do trabalho. Mas as pessoas idosas, reformadas e com doenças crónicas estão a ter (várias notícias o indicam e a estatística que acabei de citar) restrições no acesso aos cuidados de saúde. Ou seja, aqueles que já não são produtivos, apesar de terem contribuído imenso para a riqueza social do País, estão a ter cuidados de saúde restringidos. Isto do ponto de vista social é bárbaro. Estamos a falar de uma degradação imensa da qualidade de vida que na minha opinião terá impacto, mais cedo ou mais tarde, não só na taxa do bem-estar da população, da saúde social e psíquica, mas também ao nível da esperança média de vida. Porque veja: eu no outro dia falava com uma médica nutricionista e citei-lhe o estudo da Lancet, publicado no ano passado, que atribui às medidas de austeridade um aumento de 10% na morte dos idosos por infeções respiratórias. E ela levanta a hipótese de fome. «Fome?», interroguei. E ela repetiu: «Sim, fome!» Porque há fome específica e fome calórica, ou seja, há pessoas que consomem calorias suficientes para estar vivas mas não consomem nutrientes para ter um sistema imunitário forte e resistente. E essa questão da alimentação é central na saúde, a montante destas de que estamos a falar, mas central.

E fugindo um bocadinho à questão do SNS para a questão da fome, questiono: as pessoas têm verdadeiramente acesso aos melhores cuidados de saúde, à melhor forma de se manterem vivas e com qualidade de saúde que nós, como sociedade podemos, hoje, no século XXI, com tanta produção agrícola, com tanta produção científica, dar-lhes?

Eu acho que esta é uma questão fundamental, civilizacional.

 

No livro é dito que a produtividade da gestão empresarial é mais baixa que nos hospitais geridos pelo SNS?

No Quem Paga o Estado Social? fizemos essa contabilidade e constatámos que houve uma perda de produtividade de 0,5 a 1,5% nos hospitais públicos com gestão empresarial. E creio que se compreende, porque é suposto estes darem lucro em vez de prestarem um serviço. Porque racionalização e racionamento não são o mesmo. Racionalização produtiva é algo muito correto. Se a racionalização produtiva tem o fim de produzir riqueza – ou seja, nós vamos aqui ver como é que tratamos as pessoas sem desperdício e sem consumos inúteis –, isso é correto. O problema é que num sistema virado para o lucro a racionalização transforma-se em racionamento. Às vezes até se transforma no contrário! Por exemplo quando numa ida a um hospital privado são pedidos 8 exames, porque são todos pagos pela ADSE, e metade dos quais podiam não ser precisos. Ou se a opção é a compra de uma máquina de TAC da Siemens ou da GE que custa meio milhão de euros, sendo que 300 mil são certificações pagas pelo Estado, ao invés de se comprar uma outra por 1/3 do preço que faria exatamente o mesmo serviço.

 

Qual tem sido o papel dos profissionais na maior ou menor mercantilização dos serviços públicos?

Há uma investigadora britânica, Ursula Huws, que tem estudado como na globalização capitalista é cada vez mais difícil mercantilizar a saúde e a educação. E a razão que aponta é que um mecânico sabe que o seu automóvel é uma mercadoria. Um médico ou professor têm dificuldade em lidar com o seu doente ou o seu aluno como um valor de troca, como uma mera mercadoria – mercadoria educação ou mercadoria manutenção, saúde. E olham-nas como valores de uso, como seres humanos que precisam de ser educados e tratados. E portanto é muito difícil convencer aqueles profissionais. Todo o processo de privatização e mercantilização da saúde dos Serviços Nacionais de Saúde tem lidado com resistências inconscientes. Há diretivas para a escola, mas os professores não as aplicam bem assim, ou há diretivas para os hospitais que os profissionais de saúde consideram que não estão bem assim e dão a volta ao assunto. Isso tem obrigado todas essas instituições, como o Banco Mundial, etc, a procurar todos estes esquemas como o pacote de cuidados que o SNS pode prestar para ultrapassar aquilo que são resistências inconscientes dos profissionais, no fundo a diminuir a qualidade dos serviços prestados. E uma das situações graves para que esta investigadora aponta é a diferença introduzida no mundo anglo-saxónico entre health e care, ou seja, cada vez mais os serviços públicos de saúde providenciam health, que é uma manutenção básica dessa mercadoria força de trabalho, mas tudo o que tem a ver com cuidados que eu não sei qual é o termo que cá se usa, se são cuidados continuados ou paliativos, portanto tudo o que tem a ver com a não-força de trabalho – pessoas que já estão reformadas ou pessoas com doenças crónicas ou doenças terminais, tudo isso sai da área do health, passa para a área do care e é totalmente privatizado. Claro que isto não é feito repentinamente, ou seja, primeiro dizem que o SNS continua a financiar o dito care – doentes com cancro ou doença terminal vão para uma dita instituição privada e o SNS continua, durante um período, a pagar, até diminuir a resistência social e então é totalmente privatizado. Esta é mais uma das formas para destruir o SNS.

Estão a restringir a saúde, a dividir a saúde e, ou os Portugueses reagem massivamente a esta regressão social ou mais vale não viver num país assim. Um país que assiste passivamente a os seus idosos não terem acesso aos cuidados ou ousar dizer-se à pessoa que como tem um cancro terminal paga para ter acesso aos cuidados porque o governo assim o considera, se chegamos a este ponto, então já nada vale a pena.

Vale a pena lutar?

Em Portugal, por causa da vigência do pacto social (os trabalhadores abdicam de luta estratégicas contra o Estado e o capitalismo e em troca têm certos direitos sociais), criou-se a ideia de que basta haver uma pequena greve, às vezes uma grande greve geral, e os patrões ou o governo cedem, negoceiam. Ou então que os sindicatos conseguem reverter grande parte das injustiças pela via judicial. Isso acabou, creio. 2008 marca o fim do pacto social em Portugal. Não há cedências quase nenhumas, mesmo com 3 greves gerais. Por isso há que reinventar o conflito social se se quer manter níveis básicos de vida com qualidade e não ser reduzido a um estado vegetativo e a um salário de reprodução biológica (comer, trabalhar ou chorar no desemprego). As formas actuais de luta são de um modelo de trabalho – fixo, protegido, em que não se podia ser despedido de qualquer maneira –, que já não existe.

É normal que quando se chama um plenário de trabalhadores precários eles não vão porque têm medo de ser despedidos. Não é porque aceitam a vida miserável que têm ou porque são cobardes. É normal as greves não terem adesão também, mas não só, porque não há fundos de greve.

Os trabalhadores estão convencidos de que são mais fracos porque perderam direitos, mas eu estou convencida de que, de certa forma, os laços económicos potenciam formas de luta mais fortes – há uma fraqueza no modelo flexível, que é que cada vez mais trabalhadores estão ligados numa cadeia produtiva. Dou alguns exemplos:

Como se lutava no século XIX? Por exemplo, havia organização clandestina de greves de precários (chamados então trabalhadores à peça). Organização de uma greve de forma clandestina em que na hora de parar param todos, sem que se possa apontar culpados e fazer despedimentos. Greve no local de trabalho de braços caídos, com prévia organização clandestina, era outra forma. A maior federação sindical dos trabalhadores do ramo automóvel dos EUA nasceu de uma greve organizada clandestinamente na Ford –também contra o governo de Roosevelt –, nos anos 30.

Pode-se parar um sector chave – por exemplo, maquinistas – fazendo um fundo de greve colectivo de outros trabalhadores do país que reverte para quem entra em greve e enfrenta, em nome de todos, o poder patronal. Assim pára-se todo o país sem que as pessoas percam o salário porque cada um terá de contribuir muito pouco para um fundo de greve colectivo e como os transportes são um sector chave, toda a produção fica questionada. Os enfermeiros podem parar um sector – que recebe os doentes no sector informático, por exemplo – e fazer um fundo de greve para pagar a esse sector. Não sei, diria: inventem! (risos) O que não pode é haver um suicídio colectivo. Greves de solidariedade, greves que mobilizam as populações locais – a família, o bairro; greves com ocupação do local de trabalho quando há despedimentos, como no 25 de abril, outro exemplo. No passado lutou-se e venceu-se, quando não havia direitos, lutou-se sob ditaduras, como é que agora não se luta?

Depois há um problema geral de comunicação – as organizações de trabalhadores lamentam que não têm acesso à comunicação social, mas veem-se poucos esforços no sentido de construírem comunicação social de massas alternativa. Os jornais partidários são em geral muito panfletários, não têm estudos sérios. Uma pergunta: não seria normal a CGTP ter uma TV por cabo, plural, aberta a todos os sectores de trabalhadores? Ou haver cooperativas de informação? Não sei se é esta a solução, mas sei que na viragem do século XIX para o século XX, em Portugal havia mais de 600 jornais do movimento operário – agora há o lamento de que a comunicação social paga pelos patrões não lhes deixa espaço…que é o mesmo que lamentar que o limão é ácido ou que a chuva molha.

Acredito que as pessoas podem reagir. Por isso não me fui embora e recusei agora sair do país, na verdade recusei ficar lá fora onde ia ganhar mais, mas ia também perder noutras coisas, claro. O meu caso pessoal é irrelevante, mas só o fiz porque acho que não temos pela frente décadas de regressão social irreversíveis – se achasse ou se vier a achar que temos algumas décadas de miséria e aceitação desta tirania económica, vou-me embora. Mas hoje acredito que as pessoas podem reagir e têm capacidade para reagir como tiveram no 25 de abril. Somos muito mais educados e cultos, temos 1 milhão e 300 mil licenciados em Portugal, mais de 30 mil doutorados, temos um país muito mais urbano e temos padrões de desenvolvimento que apontam para que as pessoas não tolerem isto. As sociedades mais agrárias e menos educadas tendem a não ir para situações revolucionárias ou de erupção social tão facilmente. Também temos menos forte o escape da emigração (a Europa quase toda tem massas gigantes de desempregados) e um congelamento da mobilidade social – são válvulas de escape que tendem a diminuir.

Por outro lado, acho que esta força de trabalho está muito fragilizada do ponto de vista organizativo e que até pode ter dificuldade de acreditar em si própria.

É verdade que tem uma força social muito grande por outras razões, nomeadamente porque nós vivemos num modelo “just in time”, ou seja, a ligação à economia é muito forte. Hoje em dia um grupo de enfermeiros que pare o setor dos hospitais pára virtualmente o País, porque o País não aguenta hospitais parados. Ou os estivadores que fazem greve param toda a cadeia porque nós estamos permanentemente dependentes de mercadorias que chegam diariamente. E portanto eu penso que há aqui uma força social e por outro lado estamos muito mais internacionalizados, globalizados, os protestos tendem a ser repetitivos no bom sentido da palavra, ou seja, o exemplo de um protesto num país tende a passar para outro país. E portanto penso que tudo isso são fatores que nos devem deixar otimistas e acreditar que a população chegará a uma posição de força e não deixará isto avançar.

Mas também é possível haver uma regressão social histórica durante uma ou duas gerações até que as pessoas achem que é intolerável e reajam.

Como caracteriza a organização dos trabalhadores?

A organização sindical e política é um grande desafio e é o calcanhar de Aquiles do movimento social. Nos últimos três anos greves gerais e manifestações demonstraram que há uma força social de grande resistência, ou seja, as pessoas acham realmente intolerável, por exemplo, não haver um Serviço Nacional de Saúde. A média dos Portugueses acredita no SNS, acredita na educação pública, acredita no valor das reformas e no contrato social. Mas a debilidade organizativa, não só do ponto de vista sindical mas também do ponto de vista político, parece-me óbvia. Eu creio que há uma falha óbvia resultante de que as organizações dos trabalhadores não conseguiram dar resposta à precarização da força de trabalho e ao desemprego. Não há organização neste sector e estamos a falar de metade da força de trabalho. Por outro lado, há esta permanente heterogeneidade dos setores dos trabalhadores, ou seja, a ideia de que o médico é privilegiado, que o estivador ganha muito, que o enfermeiro quer fazer muitos turnos, etc, ou seja, há uma permanente competição em vez de solidariedade entre os trabalhadores, quando é óbvio que qualquer português devia pensar em se solidarizar com o enfermeiro, com o professor, com o médico, com o estivador porque isto é uma cadeia produtiva que funciona como um só.

E falha também a memória histórica organizativa. É muito curioso ver o contraste entre o padrão de organização dos reformados que têm uma memória muito politizada do maio de 68, do 25 de abril, e têm uma extraordinária capacidade de organização, e a debilidade organizativa dos movimentos sociais dos setores precarizados que levam muitas vezes horas a entenderem-se só sobre o método de votação. Obviamente que depois aquilo morre sem ter consequências.

Eu acho que a precarização desta metade da força de trabalho só foi possível porque se arranjou uma série de expedientes e é preciso dizer que houve alguma responsabilidade ou alguma falta de visão estratégica por parte dos sindicatos, nos anos 80, quando aceitaram massivamente a possibilidade das reformas antecipadas ou processos de reestruturação da força de trabalho em que os que vinham de abril conservavam direitos e os mais novos eram admitidos com menos direitos. Portanto, pouco a pouco, foram entrando no mercado de trabalho pessoas sem ou com menos direitos, que hoje são uma força social objetiva para pressionar os salários dos que ainda os têm. Há mais de 2 milhões de pessoas (das quais 1 milhão e 400 mil pessoas desempregadas e desesperadas para trabalhar) que são uma pressão objetiva sobre quem ainda tem direitos.

 

Diz que há um estudo que demonstra não ser verdade aquela ideia do senso comum de que diretores de empresas, diretores financeiros, etc, estão mais sujeitos à penosidade?

Isso é um estudo britânico que teve muito impacto na altura, porque é um estudo que calcula a esperança média de vida com fatores sociais, nomeadamente com a origem e a classe social das pessoas. Uma das conclusões muito interessantes do estudo é pôr em causa esse mito que nós temos do senso comum, caricatural, de que um CEO ou um gestor de uma empresa snifa muita cocaína e sofre tanto stress que acaba por morrer de ataque cardíaco com 50 anos. Ora o que o estudo vem dizer é que isso não é verdade. Um gestor de uma empresa tem uma esperança média de vida muito superior à de um operário ou um trabalhador sujeito a mecanismos de hierarquia e controlo. Às vezes a diferença pode chegar a ser de 18 anos em média. O estudo foi à procura do porquê e uma das conclusões é que um gestor de topo produz adrenalina e outras hormonas que são de força e um trabalhador permanentemente sujeito a controlo e hierarquia produz outras que são de medo e de ansiedade, que debilitam o sistema imunitário, não o fortalecem. Isto está associado ao medo de perder o emprego, o medo de ser controlado, o medo de ser permanentemente vigiado ou de não conseguir pagar as contas todas ao fim do mês. Isto leva a uma degradação da saúde por produção de hormonas que debilitam o sistema imunitário. Por analogia, pensemos no caso dos enfermeiros e dos turnos permanentes, ou seja, todo o processo de sono/vigília é alterado, razão pela qual, em vários países, esses fatores eram altamente contabilizados para benefício salarial ou até para redução da idade da reforma.

“O Público tem que deixar de sustentar o sector privado”, Raquel Varela, Diário de Notícias

image

DN 15-4 Futuro Estado Social (pag1)

DN 15-4 Futuro Estado Social (pag2)

O Estado Social em Portugal precisa de ser “reformado”?

Precisa, mas para pôr fim a uma série de gastos com o sector privado. Dou-lhe três exemplos, entre muitos que assinalámos nos nossos estudos: o investimento da Parque Escolar foi totalmente descontrolado e não beneficiou a educação. As sociedades têm de fazer escolhas. Eu considero que investir em educação é antes de mais investir em professores e não num mega-investimento de construção que, ainda por cima, não tem em conta o valor da manutenção dos edifícios a prazo. Os professores têm cada vez pior formação, mas para terem muito boa formação tem de haver um investimento maciço em professores universitários e cursos longos; tem que se pagar bem aos professores e reduzir-se o número de alunos por turma. Outro exemplo são os hospitais privados, cujo financiamento, cerca de metade, calcula-se, vem do Serviço Nacional de Saúde. Outro exemplo é o desporto. Desporto não é construir estádios que ficam às moscas; desporto é construir pistas de bicicleta nas ruas, parques, ringues, libertar as cidades do domínio dos carros, isso é desporto. Outro exemplo, temos hospitais e clínicas com máquinas caríssimas da Siemens (e da General Electric e da Philips) de diálise e de TAC que não são usadas porque não há dinheiro para pagar a médicos e técnicos. Algumas destas máquinas custam meio milhão de euros, 300 mil dos quais vão para certificações, ou seja, rendas fixas que o Estado paga às empresas que vendem as máquinas. Isto não é gestão do bem público, é erosão, captura de recursos públicos para beneficiar sectores privados, operações cuja relação custo-benefício está totalmente por provar.

Foi-se aliás o mito dos anos 90 de que Portugal estava mal porque tinha demasiado peso do sector público e que as empresas privadas é que eram dinâmicas. Quem faliu em 2008 foram as grandes empresas privadas (não falo das pequenas que são um tecido à parte, e em geral vivem de um imenso esforço individual) e bancos e quem os foi salvar forma os recursos públicos. Não há nenhum hospital privado que tenha alcançado a qualidade dos públicos – o que oferecem é menos tempo de espera, não é mais qualidade, usam médicos formados nas universidades públicas e usam recursos públicos. E não há nenhum hospital privado, nem haverá, disposto a financiar a formação de médicos – jamais terão o dinheiro, a menos que ele seja retirado dos impostos. E os custos nos privados são superiores.Tudo isto é óbvio. Não se trata de esgrimir argumentos e ver quem tem razão, mas de ter força política para inverter estas medidas.

Se sim, qual o caminho dessa reforma?

Tem de ser feito um levantamento rigoroso daquilo que são gastos com o Estado Social e diferenciar isso daquilo que é uso ilegítimo do Estado Social para beneficiar empresas que têm fortes ligações ao Estado e cujo objectivo é obter lucros e não prestar serviços. Tem de ser feita uma auditoria rigorosa às contas, mas detalhadas – que item estranho é o de ‘outras transferências’, que vai crescendo nos últimos anos e que ninguém sabe em que consistem. Tem de ser adoptada uma proibição total de usar dinheiros públicos para prestação de serviços privados. Quem quer ir ao privado vai, quem quer ser empresário é, mas não se usam dinheiros públicos – coletivos – para isso. O Estado Social é por inerência não mercantil e só assim sobreviverá.

O Estado Social é, imaginemos, uma aldeia comunitária para onde todos dão uma parte do seu trigo (impostos). Há um dia que algumas pessoas da aldeia assaltam o celeiro e põem-se à janela a vender esse trigo a quem o tinha dado. É isso que se está a passar. 75% de todos os impostos são pagos pelo trabalho e cobrem os gastos.

Algum país se assume como um bom exemplo do que deveria ser o Estado Social português?

Não conheço com detalhe para poder afirmá-lo com certeza. Estive há pouco tempo numa conferência europeia sobre Estado Social e os colegas da Suécia – o exemplo sempre dado pelo senso comum – referiram amplamente a utilização de fundos sociais para amparar a precariedade. Isso é utilização dos dinheiros do Estado social (universal) para o assistencialismo (políticas focalizados de gestão da mão de obra).

No seu entender, o guião da reforma do Estado apresentado por Paulo Portas e o relatório do FMI sobre a mesma matéria podem indicar alguma pista útil ou são apenas um manual do que não se deve fazer?

Não considero o chamado guião da reforma do Estado – que li todo para ter a certeza do que estava lá – digno de respeito académico ou científico. Acho absolutamente inexplicável que aquele documento tenha sido anunciado por um governo como um guião para a reforma do Estado. Existem no país estudos sérios, muito bem sustentados, sobre o Estado Social. É a partir deles que temos que discutir, de forma crítica, ouvindo-nos uns aos outros, porque todos estes estudos abrem debates e mantém-se questões ainda por resolver. O Guião da reforma é um episódio anedótico e assim será lembrado no futuro. Se alguém se lembrar!

Entende que os trabalhadores têm pago mais do que a sua parte para sustentar o Estado Social, mas isso não tem garantido, por si só, a sustentabilidade do sistema. O que tem falhado?

O que referi acima, a utilização do orçamento do Estado Social para manter empresas privadas que de outra forma não existiriam. Em Portugal o consumo está parado e aquilo que restava aos trabalhadores – a manutenção da sua saúde, o direito à circulação (estradas e transportes), a escola de qualidade, a recuperações dos descontos na forma de reformas – está a ser usurpado. Se há dúvidas sobre isto tornem pública uma auditoria. Não para sabermos quanto gasta o SNS em despesas de pessoal e Internet, por exemplo – isso sabemos –, mas, por exemplo, que dinheiro do SNS vai parar à Siemens (parceira alemã dos grupos de saúde privados portugueses) e qual o retorno desse investimento.

O “fantasma demográfico”, com o envelhecimento da população portuguesa a pôr o sistema em risco, é um receio justificado? Como é que pode ser contornado?

O fantasma demográfico é um fantasma. Não existe. A sustentabilidade da segurança social não depende do número de idosos e de jovens mas de quantas pessoas trabalham (população ativa ) e em que condições trabalham (qual o valor dos seus salários e se têm ou não direito ao trabalho ou podem ser facilmente despedidos). Hoje a produtividade por trabalhador é mais de 5 vezes superior ao que era quando estes sistemas foram criados. Eram sustentáveis quando cada trabalhador produzia 5 vezes menos por que não serão sustentáveis agora que cada um produz 5 vezes mais? Porque estas pessoas produzem 5 vezes mais mas ganham menos, são precárias (e desempregadas) e descontam muito menos ou não descontam. Existe um problema demográfico – desde logo o direito ter filhos (à reprodução da sociedade) está hoje vedado a muitas pessoas que não podem ter filhos porque não têm meios de dar-lhes uma vida digna – e isso é gravíssimo, é um problema social, afetivo, muito sério, esta é para mim a sociedade mais isolada de sempre, nunca tanta gente esteve sozinha, sozinha no trabalho, em que o colega do lado não é colega, mas uma ameaça à possibilidade ínfima de progressão na carreira (a famosa avaliação de desempenho), sozinha sem laços organizativos sociais (a participação em associações, sindicatos, partidos é escassa e também dentro deles a luta é feroz), sozinha em núcleos familiares restritos. Muita gente só e, por isso, muita gente deprimida. A depressão é filha do isolamento, da solidão. Mas isso, sendo horrível, e tendo como uma das suas expressões o envelhecimento da sociedade, não coloca em causa a sustentabilidade da segurança social, porque esta não depende disso, mas sim da produtividade e das relações laborais.

Essa dialética pode levar a um “choque” entre velhos e novos e ao surgimento de uma geração que simplesmente se negue a manter o sistema?

Já está a levar. Os jovens não recebem o suficiente para manter a segurança social – um trabalhador precário ganha em média menos 37% do que um trabalhor com direitos –, mas também não se organizam politicamente para mudar o estado das coisas. Os pais deles tiveram segurança social porque lutaram no 25 de Abril e depois, não caiu do céu. A segurança social só existe porque se ganha mais do que se precisa estritamente para viver e se coloca essa parte de lado para pagar a reforma – num regime de repartição, a reforma de quem já descontou. Quem ganha 600 euros não consegue descontar, muito menos descontar como quem já estava reformado e ganhava 1200 euros, por exemplo. Mas os pais deles ganharam decentemente porque lutaram por isso e lutaram a sério. Houve uma transferência de rendimento de 18% do PIB de valor do chamado factor capital para o factor trabalho durante a revolução – feita com ocupações de empresas, manifestações, greves organizadas, greves de solidariedade, ocupações de casas, que tiveram como ganhos subida do salário direto e do salário social (parte do salário que é pago não diretamente mas em funções do Estado Social). Isso permitiu que, por exemplo, o valor em PIB das pensões passasse de 21 milhões de euros, em 1973, para 124 milhões de euros, em 1977.

 

A história deve ter a ambição de interpretar, explicar a realidade.

1507-1

 

Entrevista dada ao jornalista João Céu e Silva, Diário de Notícias, 5 de Março de 2014.

A primeira frase do seu livro é uma afirmação que muitos portugueses colocam hoje em dúvida: “A revolução mudou profundamente o País.” Porquê?

 

O fotógrafo Sebastião Salgado, que esteve em Portugal antes e depois do 25 de Abril de 1974, disse que a maior diferença entre o antes e o depois era a alegria das pessoas.

A revolução fez de nós um país mais alegre, optimista, em que as pessoas acreditaram que podiam mudar as suas vidas – e mudaram-na muito. Um dos homens mais ricos do mundo, Warren Buffett, diz que estamos no meio de um grande confronto entre as classes. E que eles, os ricos, estão a ganhar. Pois nessa altura era ao contrário. Foi provavelmente o único período da nossa história em que se inverteu a tendência para os ricos ficarem cada vez mais ricos, como agora. A repartição do rendimento nacional sofreu uma inflexão em benefício da classe trabalhadora – na ordem segundo cálculos oficiais de 18% -, passou a existir um Estado social, chegámos a ter o 7º melhor serviço nacional de saúde do mundo; a educação unificada (isto é, com qualidade e um tronco comum de saber para todos); direito a não ser lançado no desemprego em baixas de produção (direito ao trabalho que é a essência do pacto social); nascimento da segurança social (o que havia antes era assistência social focalizada); durante algum tempo a reforma agrária deu emprego estável aos trabalhadores dos campos do Sul. E, claro, todas as conquistas democráticas (direito ao voto, liberdade de expressão, reunião associação) são asseguradas durante a revolução.

E ganhámos milhares de pessoas competentes e dedicadas, que nos seus locais de trabalho, nas empresas, nos hospitais, nas escolas e universidades fizeram o País dar um enorme salto em frente. Que se tornaram «militantes» da transformação social, dando muitas horas da sua vida para melhorar a sua vida e a dos seus concidadãos. Por convicção.

 

É por acaso que escreve “revolução” em vez de Revolução?

Sim, é uma questão de ‘livro de estilo’. Já quando uso a expressão Revolução dos Cravos, por exemplo, uso maiúsculas. Mas deixo essas questões aos revisores da minha editora, a Bertrand.

 

Centra a cronologia da Revolução nas greves e manifestações. O que muda na visão histórica?

Podia dar muitos exemplos. O 11 de Março pode ser resumido a uma luta de poder entre cúpulas de partidos e militares? Creio que não. Há uma situação social que leva Spínola a fazer o golpe e depois o CR a decretar a nacionalização da banca e ambas se encontram na extensão a que tinha chegado o controlo operário a partir de Fevereiro de 1975.

Porque cai o IV Governo em Julho? Por causa do “caso República”? Não, isso é resumir a história ao episódio. Justamente cai porque PS, PCP e MFA não se entendem mais. Mas porquê? Porque a situação social não aguentava mais um governo frente populista, estável. Porquê, se até aí se tinha aguentado? Porque se estende o controlo operário, há uma onda grevista em maio e Junho de 1975 – há jornais com uma lista de assembleias diárias – que os arquivos demonstram inequivocamente (fazemos no livro as tabelas de evolução deste conflitos). Mesmo com todos os esforços do PS e do PCP de por um lado controlar a situação social com eleições (PS) e do outro com a pressão da batalha da produção (PCP). Ambos em vão. Começa a haver a partir de Abril e maio de 75 aquilo que é mais determinante numa revolução – a coordenação nacional dos organismos de duplo poder (a construção de um poder paralelo ao Estado) e isso leva à constatação de um sector (PS, Grupo dos 9, direita, Igreja) que tinham que fazer um golpe para pôr fim à revolução (25 de Novembro). Preparam o golpe em Agosto e o PCP fica sozinho num governo que jamais apoiou de facto, o V Governo. Tinha ruido para o PCP o programa da frente popular. Mas porque ruiu? Porque a dinâmica do controlo operário e da coordenação nacional de comissões de trabalhadores e moradores tornou impossível manter a situação – criava-se uma situação objectiva de construção a nível nacional de um poder paralelo ao Estado que a pouco e pouco vai-se armar também (comissões de soldados sobretudo a partir de Setembro de 75). Como isto se traduz – traduz-se no Estado aprovar leis que não são cumpridas, traduz-se no controlo dos livros de contas pelos operários nas principais metalomecânicas, por exemplo. Fizemos aqui o levantamento destes organismos de coordenação – são mais vastos do que se pensava. E curiosamente toda a política do PCP neles é votar contra que se coordenem a nível nacional. Do outro lado, temos a esquerda radical que procura, de forma dividida, várias formas de coordenar estes organismos (em Abril, Setembro, etc). Chegam tarde porém – o 25 de Novembro dá-se sem que estas estruturas tenham um comando central de resposta.

A história que ignora o papel determinante dos indivíduos é muito limitada mas a história que resume tudo a lutas entre aparelhos militares e partidários não consegue explicar a realidade – Spínola respondia a uma situação social, a uma fracção de uma classe da mesma forma que os outros sectores. É o comportamento dessas classes e fracções que tem que ser rigorosamente estudado.

Estudei neste livro a dinâmica das classes trabalhadoras, falta estudar a dinâmica das outras classes e fracções – isto faz-se através do estudo dos partidos, das associações empresariais, patronais, etc. É difícil, é mais fácil fazer história somando decretos – e a história também é feita de decretos – mas ficará assim uma visão muito aquém da realidade.

 

 

Considera que a História que existe não reflecte a realidade. Mesmo sendo parcial é um contributo válido?

A história deve ter a ambição de interpretar, explicar a realidade. Isso implica muitas vezes ir contra aquilo que é conveniente. É mais fácil e cómodo refugiarmo-nos numa história descritiva e parcial.

Por outro lado há uma questão politica central – há uma unanimidade quase total em Portugal de repulsa à ditadura, por isso quem faz história do Estado Novo sofre menos pressões políticas. Há muito pouca unanimidade sobre a revolução e os protagonistas estão vivos. Há pressões fortíssimas sobre nós, porque quase todas as elites de hoje tiveram um papel na revolução e reclamam que o seu testemunho é parte da história. Acho que estas pressões devem ser na minha opinião absolutamente ignoradas. Trabalhamos com fontes, provas e contra provas, metodologias claras, teorias que devem ser explicitadas.

Agora centrando-nos na revolução: não digo que não é importante estudar o MFA, os governantes, os partidos… Não só é necessário como é indispensável. Mas não há um único acontecimento importante da revolução que possa ser explicado se omitirmos os movimentos sociais. Porque se a política corrente, como disse o poeta Paul Valéry, é a arte de impedir as pessoas de se imiscuírem nos assuntos que lhes dizem respeito, uma revolução é o contrário: é quando aquelas pessoas que normalmente não participam nas decisões capitais que afectam as suas vidas se tornam protagonistas dessas decisões.

 

Refere que este volume faz a “história total” sobre as “decisões coletivas”. Foi um momento verdadeiramente popular ou também conduzido por ideologias?

As ideologias estão sempre presentes nas mentes do povo. Aliás, nunca estão tão presentes como quando não há revoluções. Aí, as ideologias dominantes subjugam a consciência colectiva. Por exemplo, hoje, mesmo gente de esquerda tende a achar que a ordem social vigente – capitalismo e democracia representativa – é quase inabalável. E se mudar será para pior. É uma visão finalista, ahistórica. A terra move-se mesmo que os pés não sintam e nenhum modo de produção nem nenhum regime foram eternos, pelo contrário. Na altura da revolução de 1974-75 era o contrário, porque as pessoas passam a acreditar que podem mudar a realidade, as suas vidas.

 

O período 1974/1975 é único na História de Portugal?

É. Mas podemos sempre compará-lo com outros períodos de revolução: a revolução liberal de 1820, a guerra civil de 1828-1834, o período da I República… Fenómenos de certo tipo comparam-se com outros idênticos. Os revolucionários de 1917 usavam até na sua linguagem, como referência, os episódios da revolução francesa de 1789 ou da comuna de 1871. Falavam de ‘termidor’, de jacobinismo…

 

 

Não houve imediatamente uma purificação dos ex-responsáveis na nova situação política. Brandos costumes?

Não. Foi o prestígio dos novos protagonistas como Mário Soares ou Álvaro Cunhal, prestígio esse construído na resistência ao regime de Salazar e Caetano, ou o do MFA, que derrubara o regime, que impediu que as pessoas fizessem justiça elementar com os seus carrascos da véspera. O MFA tratou de despachar Tomás e Caetano para longe, primeiro para a Madeira e depois para o Brasil. Os pides quase não foram julgados. Houve apelos repetidos a que os representantes do regime deposto fossem poupados em nome da superioridade moral da democracia.

Quando se fala de violência da revolução esquece-se que o período mais violento da revolução foi protagonizado pela direita no verão quente (com atentados terroristas) e que os ditadores «fugiram», com a benevolência do novo regime.

Este é um tema difícil porque criou-se a ideia, sem qualquer lógica, de que numa sociedade normal cometem-se crimes e as pessoas são correctamente julgadas, mas quando há mudanças de regime há uma ideia de senso comum que o julgamento já é vingança e não justiça?! Falamos de ditadores que têm sob a sua responsabilidade uma polícia política que matou pessoas – devem ser julgados, de forma justa. Mas julgados. Não se trata de vingança mas de elementar justiça democrática.

 

Porque foi o MFA conivente com o não julgamento de Caetano e Tomás e o consequente exílio brasileiro?

O MFA quis ver-se livre deles quanto antes. Recorde-se que o MFA, num primeiro momento, entregou o poder a uma Junta de Salvação Nacional onde estavam generais que tinham feito parte do regime deposto. A preocupação de Marcelo Caetano em 25 de Abril foi entregar o poder a Spínola para que «o poder não caísse na rua», para usarmos a sua expressão. A intenção de Spínola não seria certamente a de ajustar contas com o regime de que fizera parte.

Na Madeira porém tiverem que sair mais cedo para o Brasil porque uma manifestação e 20 000 pessoas invadiu o Funchal exigindo que saíssem da ilha.

 

O MFA é ultrapassado pelo povo nos dias que se seguem à Revolução?

Sem dúvida. Fazem mais de 10 comunicados apelando às pessoas para que não saíssem à rua, que ficassem em casa. Em vão. O próprio Salgueiro Maia, aplaudido carinhosamente no Largo do Carmo, quando nesse dia 25 discursa pedindo às pessoas para irem para casa é apupado.

 

Considera que o poder não caiu na rua durante 1974/75. Não é uma suavização dos próprios acontecimentos?

 

Não, acho essa visão exagerada. O poder não caiu, entrou em crise. O poder de Estado ficou sobretudo na mão do MFA e dos partidos políticos PS e PCP – e paralelamente constitui-se um outro poder, o poder dor organismos paralelos. O Estado ficou dirigido por estes sectores, não pelos trabalhadores. Isto a um nível puro porque na realidade as comissões são muito influenciadas pelos partidos e os partidos e o MFA têm sectores que se dividem que vão apoiar este outro poder.

 

Até que ponto houve uma rutura entre o anterior e o novo regime?

Houve pelo menos duas rupturas de regime. Nunca houve ruptura do Estado, ao contrário do que se diz. O Estado permaneceu sempre um Estado capitalista, não se deu essa alteração, o que mudou foi o regime político. Entrou o Estado em crise porque paralelamente a ele criou-se outro poder, e havia uma disputa entre esses poderes, mas entrar em crise não é colapsar. São coisas muito diferentes.

 

O sistema partidário criado à época era correto ou, 40 anos depois, mostra que foi apenas o possível?

Os partidos criados na época, até pelos nomes, reflectem que houve uma revolução. Veja: ainda hoje temos um partido neoliberal que se intitula social-democrata (popular democrático na época) e o partido mais à direita do espectro político chamava-se democrático e social. Nenhum dos partidos, nem mesmo os de direita, se reclama herdeiro do regime de Salazar e Caetano.

À esquerda, o Partido Comunista, no espaço de um ano, passa de 2 ou 3 mil militantes para 100 mil. Porquê? Porque é, como reivindica, «o grande partido da resistência antifascista» e por     que ganha muito espaço no aparelho de Estado, ao entrar para o Governo. O PS cresce também à sombra dessa herança de resistência de sectores mais de classe média, advogados, doutores e também á sobra dos lugares que os seus quadros ocupam no aparelho de Estado. E porque consegue vender aos Portugueses, órfãos da miragem das colónias, de um país que ia «do Minho a Timor», como afirmava a propaganda salazarista, uma outra miragem, a da integração na Europa dos ricos, a Europa da CEE. Foi o tempo da ‘Europa Connosco’, já depois do fim da revolução, em que os chefes de Estado dos países mais ricos da Europa, como a Alemanha Ocidental, o Reino Unido ou a Suécia, desfilaram por Portugal dando o seu apoio, moral e material, à construção do PS.

Hoje todos esses projectos políticos estão em crise. A social-democracia foi roída por dentro pelo neoliberalismo e hoje o PS, como os seus parceiros europeus, quase não se distingue dos partidos de direita, PSD e CDS, aliás seus parceiros no memorando que nos acorrenta à troika. O PCP, mais de vinte anos depois da queda do muro de Berlim e do fim da URSS, continua ligado a um passado de dependência política do bloco de Leste. Resiste, mas num estado de orfandade política. Para usar uma imagem hegeliana, nem chegou à antítese (contestação de regimes que enviavam os opositores para o Gulag), quanto mais a uma síntese superior. Há portanto espaço para novas alternativas. Mas nenhum dos projectos da esquerda radical de 75 vingou. O Bloco não é herdeiro da herança da revolução – não existe um programa, alternativo ou classistas ou sequer anticapitalista. O Bloco é herdeiro dos escombros do programa social-democrata. É uma país muito curioso porque objectivamente tem todas as condições para uma nova explosão social (imobilidade e regressão social, pobreza, desencanto com o regime parlamentar), e isso não tem qualquer reflexo subjectivo, organizativo. Vivemos um desencontro histórico das classes trabalhadoras com as usas estruturas organizativas. O velho já não é e o novo ainda não é.

 

Contrapõe à sentença de “uma revolução sem mortos” com os “13 anos de horror nas colónias”. Por norma o passado colonialista dos militares de Abril não é branqueado?

Não é branqueado, mas é esquecido. A revolução tem dois actos, o acto das revoluções anticoloniais e o acto da revolução na metrópole. Não é preciso ser cristão para acreditar na possibilidade de redenção das pessoas. O facto de, no seio das forças armadas, sustentáculo do regime deposto, ter surgido – graças ao impacto da luta dos povos das colónias – o MFA, que o derrubou, redimiu o exército colonial aos olhos das pessoas. E muita gente que certamente não se orgulha do papel que teve na guerra mudou genuinamente e ajudou a fazer um país melhor. Gosto desta ideia – as revoluções mudam realmente as pessoas. Por isso não compreendo a desilusão – há alguma dúvida que somos muito melhores hoje do que em 1973 mesmo com tudo o que está por fazer?

 

Refere-se muitas vezes que os arquivos do antigo regime foram saqueados pelo PCP. É verdade?

Referi que existe essa dúvida, se parte do arquivo da PIDE teria ou não sido enviada para a URSS. Creio que essa dúvida permanece.

 

Os historiadores portugueses têm feito o seu trabalho para fixar o 25 de Abril de 1974?

Têm, tem-se estudado muito, no campo social, agrário, dos militares, da influência estrangeira. Mas há muito por fazer. Está por fazer no período da revolução a história da Intersindical, das mulheres, da educação, do movimento estudantil, dos governos provisórios, da maioria dos partidos.

 

E dos acontecimentos que se lhe seguem?

Sim, também. A história do período da contra revolução está por fazer. Suspeito que é também um processo – no 25 de Novembro acaba a dualidade de poderes nos quartéis mas não acabam as ocupações de terras nem a democracia nas fábricas, isso vai levar tempo. Já sabemos como se dá o processo na reforma agrária mas não como se dá na inversão do controlo operário. É uma parte que me interessa muitíssimo descobrir. Como se pôs fim à revolução. Da mesma maneira que uma revolução não é uma quartelada, é um processo, uma contra revolução também não se resume ao golpe de 25 de Novembro. Há uma história por descobrir aí.

 

As comemorações do 25 de Abril em 1975 mostram já a desunião ideológica que permanece – sob o conceito atual do consenso – no pós-Revolução em torno da independência nacional. Portugal está condenado a ser periodicamente um protetorado?

Portugal não foi assim tantas vezes um protectorado. Num país com mais de oito séculos de história, isso foi certamente a excepção, não a regra. Foi-o no tempo dos Filipes, foi-o episodicamente durante o consulado de ‘el-rei Junot’, durante as invasões francesas (1807-08), terá sido no tempo do Beresford, entre 1809 e 1820, até à revolução liberal. Poderá tê-lo sido em finais do século XIX, no seguimento da bancarrota de 1892, mas não tenho a certeza. Não é a minha área de especialização.

Agora, a manter-se o actual quadro social e político, e com dirigentes que acham o máximo da realização pessoal virem a ocupar um cargo na Goldman Sachs, essa possibilidade existe. Mas a verdade é que os períodos de protectorado em Portugal sempre acabaram com alguém atirado pela janela do palácio ou a fugir à frente de uma revolução. Por isso, mantenho o optimismo. Adoro viver neste país…

 

O 25 de Abril é uma das revoluções mais importantes de todo o século XX

Entrevista ao Jornal i, 5 de Março de 2014.Diário Popular Nº 11601 27 MARÇO 1975. p19

O que significou o 25 de Abril para si?

É uma das revoluções mais importantes de todo o século XX: pela extensão da dualidade de poderes (comissões de trabalhadores, moradores, soldados). Trata-se, do ponto de vista da extensão deste poder paralelo ao Estado, de um processo histórico que tem muitas semelhanças com a revolução italiana de 1919-1920 (conhecida como bienio rosso), com a revolução húngara de 1956 e com a revolução chilena.

É também, e essa é outra característica importante, uma revolução na metrópole que se dá por força das revoluções anticoloniais (guerra colonial) nas colónias portuguesas.

É uma revolução democrática que se transforma numa revolução social. Aquilo que começou a 25 de Abril – um clássico golpe de Estado – é a semente de uma revolução social (que imprime mudanças nas relações de produção), encetada como uma revolução política democrática (que muda o regime político). Em poucos dias ou semanas, estava praticamente assegurada a substituição do regime político de ditadura por um regime democrático, mas tinham sido já lançadas as bases de uma outra revolução, que lutava pela igualdade social. Estas bases foram lançadas pelo sujeito social que, atrás do Exército (e por isso sem medo), entra na história – a classe trabalhadora e os sectores populares e estudantis. E quando entra na história, em breve saltaria à frente deste exército e passaria a constituir a frente da revolução, deixando o Movimento das Forças Armadas (MFA) a tentar compor o Estado, que entrara em crise com o golpe que o próprio MFA dera no regime.

A Revolução dos Cravos, que não se pode resumir ao dia do golpe, 25 de Abril (como recentemente têm feito, pressionando para só se celebrar o dia do golpe e não todo o processo), mas sim a um processo histórico de quase dois anos, é o momento mais democrático da história de Portugal. A democracia de base que vigorou, e que tinha centro nos locais de trabalho e habitação, colocou qualquer coisa como 3 milhões de pessoas a decidir, não por delegação de poderes de quatro em quatro anos, mas dia a dia como a sociedade devia produzir, ser gerida. Nunca tanta gente decidiu tanto em Portugal como entre 1974 e 1975.

A derrota da revolução – que começa a partir de Novembro de 1975 com a imposição da ‘disciplina’, isto é, da hierarquia, nos quartéis – é um balão de ensaio da chamada “contrarrevolução democrática” (teoria da transição democrática, segundo a politologia de inspiração liberal) que vai ser aplicada na Espanha franquista e depois em toda a América Latina nos anos 80, a doutrina Carter, ou seja, a ideia de que, pelo menos por um período largo, para derrotar processos revolucionários, as eleições e a democracia liberal eram preferíveis aos regimes ditatoriais. Portugal é o primeiro exemplo de sucesso de uma revolução derrotada com a instauração de um regime de democracia representativa que, para se impor, teve de pôr fim à democracia de base, nomeadamente nos quartéis, fábricas, empresas, escolas e bairros.

 

 O que descobriu ao fazer este livro?

Que revolução e Estado não andam em paralelo, como advogava o PCP, mas em oposição. Quanto mais forte era o Estado, mesmo que com o PCP ou o PS no governo, mais fraca era a revolução. E vice-versa – é este o princípio da dualidade de poderes. A revolução não está acabada em Agosto com a crise do MFA; pelo contrário, a crise do MFA vai levar a revolução à base do MFA, aos soldados. Mas um livro de história não é uma colecção de descobertas magníficas e surpreendentes. É mais fácil descobrir uma prova que tem muita força ou um testemunho único do que construir com base numa metodologia clara e numa teoria sólida uma explicação da totalidade do processo histórico. Foi isso que procurei fazer e isso é o mais difícil e o debate continua aberto: quando muda o regime? Quando se entra numa crise geral de Estado? Quando há saltos qualitativos na dualidade de poderes? É esse tipo de perguntas que me move. Mas em história começamos sempre pelos factos, claro. E há alguns surpreendentes, mas, ainda que irrefutáveis, só se podem compreender à luz de uma explicação que tenha coerência, junto com outros factos. Descobri num arquivo o momento em que Pinheiro de Azevedo disse que ia falar com Costa Gomes para uma solução militar, depois do cerco à Constituinte. Isto é muito relevante. É extraordinário, mas só ganha relevância se se percebe a provocação aos pára-quedistas, o desenvolvimento da coordenação das comissões de trabalhadores a partir de Abril de 1975 e sobretudo de Setembro, a disseminação das comissões de soldados depois de o MFA entrar em crise, em Agosto.

Surpreendeu-me a extensão da divisão da sociedade em classes sociais. Os trabalhadores viam-se como tal e tinham orgulho nisso. É provavelmente um dos raros momentos na história deste país (também aconteceu com sectores do movimento operário durante uma parte da I República) em que os trabalhadores têm orgulho em sê-lo. Ou seja, em que há força social para impor uma cultura que escape à ideologia hegemónica do trabalhador como alguém que trabalha porque há outros – muito inteligentes – que gerem por eles a produção. A ideologia das “empresas criam empregos”. Isto foi totalmente invertido na revolução – o trabalhador ganhou a centralidade cultural que corresponde ao seu papel económico.

Surpreendeu-me a imensa participação popular e de trabalhadores logo no próprio dia 25 de Abril, muito para além daquilo que se vê no Largo do Carmo.

Surpreendeu-me a participação feminina massiva e como os processos de lutas sociais nos locais de trabalho – as mulheres como trabalhadoras e não como mulheres – foi determinante para mudar coisas tão simples como poderem dormir fora de casa, no piquete da fábrica; cito vários exemplos muito interessantes.

Surpreendeu-me a extensão do impacto que tem na vizinha Espanha – Portugal é uma esperança. Tenho o documento de um advogado, que cito no livro, que vai defender um trabalhador, acho que é da Ibéria, que não foi trabalhar a seguir ao 25 de Abril porque queria vir ver a revolução. E também a ansiedade das chancelarias ocidentais com as comissões de trabalhadores.

Surpreendeu-me a coordenação das comissões de trabalhadores e moradores, que foi muito maior do que eu pensava e que chega a ter um impacto muito significativo a nível regional (em Setúbal chega a construir uma justiça paralela e não aceita as ordens dos tribunais), mas também a nível nacional, embora não suficiente para que se consigam coordenar e resistir ao 25 de Novembro.

Surpreendeu-me a grande diferença que existiu entre a autogestão (os trabalhadores serem “donos” da fábrica) e o controlo operário (o questionamento total da produção e a recusa em “gerirem a anarquia capitalista e serem patrões deles próprios”, para citar documentos da época).

Surpreendeu-me o número de greves de maio e junho de 1975 e o “assembleísmo” permanente nesse dois meses (que, quanto a mim, leva à queda do IV Governo – o caso República é a gota de água e o pretexto, mas o Governo cai pela extensão do controlo operário, contra o qual estavam quer o PS quer o PCP, mas que efectivamente começava a tornar impossível gerir o país em moldes capitalistas, aquilo que Eanes designaria como o “caos na produção”.

Surpreendeu-me o empirismo com que tudo isto foi feito ao nível da maioria das lideranças intermédias, grandes quadros políticos, porém. Quer ao nível do MFA, quer ao nível dos partidos, a estratégia que estava a ser conduzida fugia efectivamente à capacidade de interpretação da maioria das lideranças, da direita à esquerda radical. O desnorte dos oficias revolucionários não é mais significativo a este respeito do que o desnorte do PCP durante o V Governo ou o desnorte do PS face aos sindicatos. Soares, Costa Gomes, Cunhal, Melo Antunes actuaram com uma extraordinária consistência nos seus projectos, mas os seus braços direitos, quadros importantes destes partidos, do MFA, dão sinais de não saber o que se estava passar na totalidade, incluindo o próprio Otelo Saraiva de Carvalho.

Estive três anos em oito arquivos de quatro países. Há todo um mundo por descobrir nesta que foi a última revolução europeia a colocar em causa a propriedade privada dos meios de produção, esse estranho país da Europa que pela primeira vez tentava de forma consistente, mas com muito para aprender, governar-se a si próprio.

 

Entrevista Sobre História do PCP na Revolução dos Cravos

 image

Um das questões ligada a este livro foi a polémica com José Manuel Fernandes, ex-director do Público. Ele leu uma entrevista sua e levantou uma série de problemas à entrevista. E faz uma série de comentários às motivações políticas de Raquel Varela. Que tem a dizer sobre as motivações políticas de que ele fala?

Pelo menos três coisas. Não é sério comentar um livro sem o ler. A segunda é que o José Manuel Fernandes faz um duplo comentário aqui, um à minha profissão e outro à polémica em torno do livro. O da minha profissão eu não lhe reconheço, claro, legitimidade. Estou há 12 anos a ser avaliada em várias universidades, sou avaliada semestralmente com artigos pelos meus pares e tenho anos e anos de avaliações como historiadora e não é JMF que está em posição de questionar isso.

Ele está em posição de ter uma opinião sobre um livro, que seria muito mais sólida se o tivesse lido. Ter uma opinião sobre um livro sem o ler é estranho sobretudo vindo de quem teve responsabilidades num jornal que se quer sério. Acho que essas opiniões devem ser a opiniões sobre o livro e não sobre a pessoa que escreveu o livro porque no fundo o que se está aqui a fazer é uma espécie de macartismo é pedir que se ponha uma legenda quando se entrevista um cientista sobre determinado tema, que essa pessoa tenha uma ficha política. Isso é uma característica de regimes que perseguem politicamente as pessoas ou de situações onde as regras básicas da democracia não são respeitadas. Isso não é feito aliás com nenhum historiador em Portugal. Se o fizéssemos havíamos de descobrir que a esmagadora maioria dos historiadores em Portugal são militantes e com toda a legitimidade. Ser militante de uma organização é um direito básico reconhecido pela Constituição.

Quando fala de militância está a falar de militância partidária?

O Rui Ramos é militante, o Tiago Moreira de Sá é do PSD, creio mesmo que até é eleito por uma freguesia, o Fernando Rosas deputado do Bloco de Esquerda e um dos melhores historiadores portugueses e nunca ninguém questionou a sua excelente produção académica pela sua militância no Bloco de Esquerda. Se fossemos por aqui iríamos questionar o trabalho de se calhar centenas de pessoas em Portugal que é um trabalho meritório e sujeito às mais duras avaliações anuais, que nós hoje temos nas universidades. Acho que isso é ilegítimo e que lhe fica muito mal.

Essa militância pode ser vista como uma forma de subjectivar esta escrita da história? No caso de um Rui Ramos, no seu caso?

Acho que a militância é um dos elementos que nós devemos conhecer das pessoas até porque abre uma clareza porque a história não é neutra, nunca foi, mas pode e deve ser séria. E isso não é aferido pela militância das pessoas mas pelas fontes e pelo tratamento das fontes que é dado, pela metodologia, pelo suporte teórico. Por uma série de itens que não têm a ver com as escolhas políticas. Pode haver um encontro entre as escolhas políticas das pessoas e a sua análise teórica e metodológica e há-o em todos os casos.

Historiadores liberais tendem a aproximar-se muito de uma história muito institucionalista. Historiadores marxistas de uma história que tem o conflito social como núcleo explicativo do processo histórico, que é o meu caso. Alguns dos melhores historiadores do mundo são historiadores marxistas, a começar pelo Hobsbawn, durante vários anos membro do Partido Comunista Inglês. Grande parte dos historiadores que conheço, não se filiando em nenhuma organização política, defendem uma história mais pós-moderna, muito ligada à análise dos discursos, que tem a ver com o seu posicionamento político – neste caso o não querer assumir um posicionamento é também assumir um posicionamento político.

É muito fácil estabelecer uma relação, mas isso não é o critério de análise de uma obra. O critério é uma interpretação minimamente coerente das fontes, é o suporte metodológico e teórico e, claro, é uma série de provas que as pessoas passam extraordinariamente difíceis.

E nessas provas existe gente de todos os quadrantes?

Claro. Basta ver que na minha tese, no meu júri de doutoramento, havia seis historiadores e só um era um historiador marxista. E as provas terminaram com louvor e distinção.

O JMF critica o facto de defender que Cunhal nunca quis fazer uma revolução socialista em Portugal, nunca existiu o risco de o PCP tomar o poder em Portugal em 1974 e 1975. Como defende este ponto de vista?

Os documentos estão todos citados, são 400 páginas.

E não existe enviesamento? Não há grande peso de jornais como o Avante?

Muitas citações são do Avante e d’O Militante e outras publicações ou textos do próprio PCP. Há dezenas de documentos do PS, centenas de documentos de arquivos estrangeiros, imprensa da mais variada cor política, do centro de documentação 25 de Abril. Há um constante diálogo entre as fontes.

O discurso é um discurso defendendo a revolução socialista mas repare um discurso que defendendo a revolução socialista vai às portas das fábricas distribuir folhetos para acabarem com a greve, porque as greves são contra os Governos Provisórios onde o PCP está em aliança com o PS e o PPD. Carlos Carvalhas aprova dois documentos contra o controlo operário que existia de facto nas fábricas dizendo que o controlo operário não podia pôr em causa a economia nacional e a economia nacional tinha 92% da mão-de-obra trabalhando na economia privada, cuja propriedade não é questionada pelo PCP. É um discurso em defesa da revolução socialista que põe fim ao V Governo porque diz que o V Governo não pode avançar, tem de haver uma coligação com o PS, com o sectores do Grupo dos Nove, tem de haver uma reconstituição do MFA.

O importante não é o que o PCP diz mas sim o que faz. Quem põe fim ao V Governo é o PCP, quem impede a Intersindical de sair é o PCP, quem impede os fuzileiros de sair no 25 de Novembro é o PCP. A história política do PCP não se pode fazer sem as fontes. Como se pode analisar a politica do PCP nas fábricas se não vemos os panfletos que as células do PCP fizeram nessas fábricas?

Mas refuta a tese que tem sido dominante de que o PCP foi responsável por uma série de excessos revolucionários e uma tentativa de criar aqui um campo socialista real?

Isso nunca se passou e eu creio que o meu livro põe um ponto final nessa questão. O PCP nunca quis fazer uma revolução socialista em Portugal. Isso não significa que o PCP não tenha querido ocupar lugares no aparelho de estado, quis e muito, e o PS também. Até Setembro de 1975 ocupou muitos lugares no aparelho de estado e partir dai há um volte-face e é o PS que passa a ocupar esses lugares, de tal maneira que Cunhal tem um texto onde diz que “o nosso apoio ao VI Governo diminui consoante os lugares que nos dão no Governo e consoante nos abrem ou fecham a torneira do Estado”

Quando Cunhal se refere à torneira do estado refere-se aos ministérios das Finanças e da Agricultura, que controlavam a reforma agrária e as empresas nacionalizadas. Há uma disputa por ocupar lugares no aparelho de Estado pelo PCP e pelo PS clara. Daí a concluir-se que o partido quer tomar o poder e expropriar a burguesia e tomar o poder dirigindo órgãos de duplo poder pelos trabalhadores… Estamos a falar de um partido que defende a batalha da produção, que defende que os trabalhadores devem aumentar a produtividade no quadro da propriedade privada. O PCP defende que se deve parar de fazer greves nesse quadro dos 92 % da propriedade privada e aumentar a produtividade do país.

Mas são muitas vezes acusados de até terem nacionalizado barbearias.

Mas é um discurso que não corresponde à realidade. O sector empresarial do Estado (SEE), depois das nacionalizações, fica inferior ao da Alemanha e da França. 8 % da mão-de-obra trabalha no sector empresarial do Estado, depois das nacionalizações, e na Alemanha e na França entre 10 e 12%. Tomar um sector nacionalizado do Estado como prova irrefutável de uma política revolucionaria é errado. Por essa lógica a Alemanha também estaria em transição para o socialismo, pois tinha mais empresas nacionalizadas que Portugal.

Eu acho que as nacionalizações são a prova de uma revolução em curso mas não são a prova de que o PCP quis fazer uma revolução. Uma boa parte das nacionalizações nasce do desejo de impedir o controlo operário das fábricas. As fábricas vão para as mãos do Estado para saírem das mãos dos trabalhadores. Para evitar a duplicidade de poder nas fábricas. Aliás vimos agora nacionalizações. Os regimes burgueses nacionalizam e nacionalizam sem problema nenhum. Nacionalização não é sinónimo de revolução socialista.

JMF acusa-a de fazer do PCP um cordeirinho pascal e de falar numa revolução sem mortos, esquecendo os mortos junto à PM, no 25 de Novembro.

Sim, há três mortos no assalto dos comandos à Polícia Militar. Quando falo na contra-revolução sem mortos refiro-me à tese de Cunhal de que em Portugal apenas seria possível uma contra-revolução a la Pinochet. Uma contra-revolução feita sob as botas de uma ditadura militar sangrenta, e aquilo a que nós assistimos é uma contra-revolução democrática, ou seja há um golpe militar, rapidamente se evolui para um processo eleitoral, tudo isso se faz sem um banho de sangue. Não há um confronto armado entre classes sociais antagónicas e a única justificação para isso é o recuo do PCP no 25 de Novembro. A disponibilidade do PCP não fazer avançar nem os trabalhadores organizados, na Intersindical, nem as unidades militares por si controladas, que do ponto de vista do equilíbrio militar as unidades de esquerda até tinham mais força que as de direita. A tese de Álvaro Cunhal de que Portugal nunca poderia ser uma democracia burguesa no Rumo à Vitória e que depois é desenvolvida em 74 e 75 ruiu. Portugal é uma democracia burguesa relativamente estável há quase 40 anos e não foi preciso um banho de sangue para instituir a ditadura. Cunhal disse muitas vezes que isto ou será uma ditadura ou uma revolução socialista e o 25 de Novembro é uma contra-revolução democrática que depois será aplicado de forma ainda mais estável em Espanha e depois com a doutrina Carter na América Latina, as revoluções (transições) negociadas no Brasil, no próprio Chile já na década de 80, na Argentina e noutros países. A possibilidade de que as instituições democráticas canalizem as transições, de evitarem rupturas que levem a um estado de guerra civil.

Porque acha que o PCP evitou essas rupturas. Equilíbrio de forças?

Não creio que tenha a ver com isso. Tem a ver com a estratégia do partido que não tem como objectivo a revolução socialista. Tem como estratégia que Portugal fosse uma democracia no quadro da divisão do Mundo pactuada em Ialta e Potsdam, no final da II Guerra Mundial. Portugal estaria na esfera da Aliança Atlântica. Por isso, o PCP não defende a saída de Portugal da NATO.

Mas agora defende.

Mas também defendia no Rumo à Vitória e em 1976, mas em 74 e 75 é contra a saída da NATO, é aliás contra a manifestação que pede a saída de Portugal da Nato dizendo que tem de haver equilíbrio de forças com sectores democráticos e com partidos burgueses.

Acusa-a de fazer do PCP um cordeirinho pascal.

Eu não sei o que é um cordeirinho pascal, isso não é um termo histórico.

O PCP é parte da construção da democracia e não uma ameaça à democracia. É parte do regime e dentro do regime disputa os trabalhadores organizados e melhores condições para os trabalhadores e fê-lo em 1974 e 1975, não questionando o regime, não questionando o sistema político. Estou plenamente convencida disso e quem ler o livro rapidamente chega a essa conclusão.

Nalguns meios do PCP não se convive bem com essa tese. Há quem fale mesmo na questão dos equilíbrios de força, entre o desejo do PCP de querer uma revolução socialista mas evitar o banho de sangue.

O PCP considera que não havia um equilíbrio de forças favorável a uma vitória da esquerda num eventual confronto civil armado. É também a teoria de Álvaro Cunhal na altura.

E se tivesse a certeza teria avançado?

Não sei, isso é uma especulação histórica.

Alguns sectores do PCP não se sentem particularmente lisonjeados com a ideia de que não teriam avançado se tivessem outras hipóteses.

Tem de perguntar isso aos comunistas. Tenho tido um diálogo muito fraterno com várias pessoas do PCP sobre a minha tese, no sentido que de havendo concordâncias e discordâncias elas são feitas com base em argumentos. Acho que o PCP convive bem com a tese pois é a prova de que o PCP é parte da construção do regime democrático e não uma ameaça ao regime democrático, poderá eventualmente conviver mal pois o partido quis ficar, como diz o ditado francês, com a manteiga e com o dinheiro da manteiga. Não é possível historicamente em 1975 ter estado dos dois lados. Quem esteve do lado do 25 de Novembro ou impediu os trabalhadores de tomarem o papel ou pelo menos de disputarem a hegemonia em 1975 é parte da construção da democracia, mas não é parte da construção do socialismo. O PCP fez um acordo com o Grupo dos Nove no dia 25 de Novembro alegando que a revolução continuava. Em 1976 Cunhal diz que a revolução continua e só em 1999 escreve que o 25 de Novembro foi o fim da revolução. Em 1976 nem sequer considera o 25 de Novembro um golpe, considera sublevações militares que permitiram ao PCP reagrupar-se novamente com o Grupo dos Nove e isolar a Esquerda Militar. É o que o PCP escreve em Novembro e Dezembro de 1975. É talvez das coisas mais interessantes do livro.

Álvaro Cunhal vai ao Campo Pequeno no dia 7 de Dezembro de 1975 dizer que o 25 de Novembro até foi uma contribuição para isolar a esquerda militar e voltar a pôr o PCP em contacto com o Grupo dos Nove e com sectores com que o PCP tinha estado desavindo. O PS sim parece conviver muito mal com esta tese, que defendia o socialismo e teve de fazer uma aliança com todos os sectores mais à direita da sociedade e dar um golpe que põe fim à revolução. Convive muito mal com essa tese e JMF é a expressão disso, como o são os autores liberais.

JMF contesta essa sua tese de que o PS se aliou aos sectores mais reaccionários da sociedade.

Quem de facto convive mal com essa tese são os sectores mais liberais e ideológicos, no sentido em que convivem mal com a verdade histórica. Pois esta tese vai ao arrepio de uma mentira mil vezes repetida de que o PS teve de abandonar a luta pelo socialismo por o PCP ameaçar fazer de Portugal um satélite soviético. O que é ao arrepio de toda a documentação nacional e estrangeira. A CIA, pode ler isso no livro do Tiago Moreira de Sá, estava convencida de que o PCP não queria mudar o poder. A URSS estava convencida de que o PCP não queria tomar o poder. Só o PS tem essa teoria.

Mas há uma narrativa que diz que o PCP queria tomar o poder e entregar as colónias à URSS.

Mas essa é uma teoria jornalística. Não é uma teoria histórica, deixe-me dizer-lhe com todo o respeito que tenho pelos jornalistas. Aliás o clube dos jornalistas publicou a minha entrevista e diz que «teoria de historiadora refuta teoria de jornalistas». É um censo comum construído junto de órgãos de comunicação social mas não corresponde aos trabalhos históricos nem sequer dos historiadores que não são marxistas. Se for ver livros de outros historiadores que escreveram sobre a revolução, verá que as conclusões não são muito diferentes das minhas.

Mas de quem por exemplo?

Por exemplo, da Maria Inácia Rezola ou Maria Manuela Cruzeiro.

Mas Maria Manuela Cruzeiro talvez tenha uma linha ideológica mais de esquerda

Eu não sei o que é uma linha ideológica de esquerda.
Não? Não há diferenças?

Quando falamos de política falamos de linhas ideológicas. Na historiografia, não. Falamos de sustentação teórica. Que pode ir de encontro ao marxismo ou de uma série de outras vertentes.

Quando me fala de um historiador marxista está-me a falar de um modo de análise ou das convicções pessoais sobre o tema?

Estou a falar de um método de análise da realidade. Olho muito mais para o 11 de Março como resultado do aumento das ocupações de terra e de fábricas e de casas pelas comissões de trabalhadores e de moradores do que como um golpe e contra-golpe que se resolve ao nível das instituições. O marxismo olha para os processos revolucionários como processos em que existe crise de estado e a entrada das massas na cena histórica e há uma tensão permanente e um conflito de que a história é um resultado. E não como sucessão de decretos, governos ou instituições. Depois há o papel das crises económicas. O papel da crise económica na nossa revolução é indiscutível se for ler os textos de dois autores completamente distintos do ponto de vista ideológico, Silva Lopes, que foi ministro das Finanças, próximo do PS, e de Eugénio Rosa, hoje economista da CGTP. A crise de 1973 impõe um aumento brutal do desemprego que inclui abandonos de fábricas ao qual os trabalhadores respondem ocupando-as. Essa ocupação leva ao desenvolvimento da consciência de classe e ao enfrentamento político. Silva Lopes diz que as nacionalizações são feitas para dar enquadramento institucional a uma situação criada pelos trabalhadores.

Como avançou para este tema?

Estou muito ligada aos estudos da Europa do Sul. E havia histórias dos partidos comunistas nos processos de fim de regime em todo o lado menos em Portugal. E nós continuávamos a ser confrontados nos jornais e em todo o lado com mentiras mil vezes repetidas sem que alguém alguma vez tivesse feito aquele trabalho pesado de estar anos PCP está feito para o período de 1974/75. Agora estou mais voltada para a história do movimento operário.

O PCP nesse fluxo acaba por ser uma vanguarda ou por receber o fluxo das massas?

Normalmente está atrás das políticas dessas massas. Nos primeiros dois meses da revolução o PCP não apoiou uma única greve, ao ponto de ter feito uma manifestação contra as greves no dia 1 de Junho de 1974, no parque Eduardo VII, com a Intersindical. Uma manifestação reclamada na primeira página do Avante, e o Avante não é um documento interno do « Não à Greve pela Greve». No dia 28 de Maio publicam um texto onde dizem que as greves são reaccionárias («fazem o jogo da reacção»), que são esquerdistas, que são provocatórias, que tem de se apoiar o Governo Provisório.

Por estar no Governo?

Por estar no Governo e por ter uma política de conciliação, que visa evitar a radicalização das massas mas ao mesmo tempo conseguir conquistas sociais. E esse equilíbrio é o dos 19 meses da política do PCP entre 1974 e 1975.

Teve muitas surpresas com esta tese?

Ia convencida, por vivermos no meio de uma intelectualidade que veio muito dos partidos maoístas, de que os partidos de extrema-esquerda no movimento estudantil eram um problema para o PCP. Agora estou convencida de que o PCP tinha muito pouca preocupação com o que se passava nas universidades. Se a extrema-esquerda dirigia uma fábrica como a Lisnave isso era problema para o PCP, que apontava para aí toda a energia.

E porquê esse desinteresse pelos estudantes?

Creio que Cunhal achava que o movimento estudantil era policlassista e que não seria a partir daí que se construiria o partido mas sim a partir do movimento sindical organizado e a partir da construção de uma central sindical única, a Intersindical, dirigida pelo PCP, e uma fonte constante de financiamento e de quadros para o partido. Nesse quadro, o movimento estudantil era absolutamente secundário. O PCP não «acordava de manhã» a pensar no que os maoístas iam fazer no Técnico, na faculdade de Letras ou em Direito. Mas «ficava acordado a noite inteira» para saber o que se passava na Lisnave.

O trabalho da direcção do PCP assenta num colectivo ou Cunhal destacava-se?

Há um trabalho colectivo forte. O comité central do PCP é de grande coesão interna, onde a maioria é funcionários do partido há 10, 20 anos ou mais. Todos juntos os seus membros estiveram 308 anos presos. Extremamente centralizado, monolítico. O partido não é monolítico de maneira nenhuma. A imagem contrária é uma imagem errada. O PCP faz aprovar documentos onde impede a criação de novas células por dizer que não tem controlo sobre os militantes. O comité central vem do Estado Novo, entra no processo revolucionário, o Partidp cresce de 2 mil para cem mil militantes e não muda a direcção.

Como cresce tanto o PCP?

Julgo que se deve ao facto de ser o único partido organizado quando se dá o processo revolucionário, está em melhores condições para no imediato dirigir a revolução. Tinham quadros e experiência. E tinha o prestígio de ser o único, dos que sobreviveram, que sempre resistiu ao fascismo, pagando por isso um preço elevadíssimo. Nos dias a seguir à revolução há uma série de câmaras municipais cujos dirigentes pró-Estado Novo são expulsos e substituídos pelos do PCP e do MDP-CDE. O PS em 1973 «cabia num táxi». Mário Soares vai a Bona no dia 2 de Maio pedir dinheiro para formar o partido pois acredita que se houver eleições imediatamente o PCP ganha. Até 1974 o PCP não era um partido de massas, era um partido de vanguarda com influência de massas. Os 2000 militantes do PCP são referidos por vários autores e Cunhal escreveu que o partido nunca mais teve tantos militantes como a seguir à II guerra, quando terá atingido os cinco mil.

O PCP é visto como tendo papel no Cerco da Constituinte (Helena Matos)?

O PCP publica um comunicado no dia 13 onde apoia a manifestação mas diz que é contra o cerco.

Mas essa não é a imagem que prevalece?

A imagem publicada é uma imagem errada, distorcida, não corresponde à realidade histórica. Os historiadores não têm de estar a fazer história em função daquilo que se escreve nos jornais. Não podem estar dependentes do que o senso comum cria porque a ciência é a antítese do senso comum. Por isso é que o historiador demora anos a fazer um trabalho, que obriga a uma pesquisa muito cuidada no tratamento das fontes, e de muitas fontes, que não é o mesmo que escrever um artigo ou uma crónica de opinião com um prazo muito curto.

Esta entrevista foi realizada em Maio de 2011 pela revista Sábado e nunca foi publicada.