O assistencialismo de que a esquerda fez sua bandeira – em vez de direitos (desde logo o direito ao trabalho em vez do direito ao subsídio de desemprego) levou a um olhar novo. Para grande parte da esquerda os trabalhadores não são seres complexos, mas planos, vítimas, nunca cúmplices, ou carrascos, sem possibilidade de transformação. Há para aí cartazes e panfletos de esquerda a pedir prisão para estes e aqueles, vigilância, denúncias, e creio que a maioria ficará a assistir a comissões de inquérito como uma série televisiva, esquecendo as grandes opções do capitalismo da Europa do pós -guerra que assentam na usura e na expulsão da força de trabalho. Mas, como tudo isto parece longe o melhor é mais uma comissão de inquérito, um processo. Tudo acaba no poço sem fundo dos tribunais, e nos media, que fazem as vezes destes num colapso moral generalizado. A sensação é que alguns editores de jornais foram buscar as caixas de comentários e fazem deles títulos dos mesmos. É uma lama infindável.
Ao não colocar na agenda um horizonte de transformação a esquerda coloca-se do lado do Estado a pedir clemência e punição. Nada mais. O contraste com o movimento operário do século XIX e os intelectuais de esquerda de então é atroz. Aí as condições de vida geravam, dizia-se, sem medo, uma completa degradação moral dos trabalhadores (e dos burgueses) que só podia ser vencida no campo das lutas coletivas.
Os partidos de esquerda hoje em grade medida são fracções de grupos de interesses pequenos, cujo objetivo permanente é ganhar espaço para o seu grupo, sem qualquer horizonte de transformação social. Degladiam-se por quotas e palavras, o horizonte comum é uma soma de subjectividades. Onde, sem qualquer surpresa o numero de oportunistas é já imparável. Os “pequenos processos de Moscovo”, os silêncios, os medos, cada pessoa hoje na sociedade, e nos partidos de esquerda, tem que olhar pelas costas a ver o camarada que vai dar a facada em defesa do seu grupo oprimido.
Para quem achava que os sindicatos eram uma quimera já que seriam sempre transformados em burocracia sindical, reproduzindo elites (o que em parte foi verdade no pacto social), o que dizer dos movimentos identitários dentro da esquerda, hoje, na sua maioria, fracções organizadas de poder, que deixam nos métodos espúrios qualquer dirigente sindical burocrata da velha guarda como um menino aprendiz.
Descansem os meus amigos e leitores de direita: as ideias de direita governam o mundo há 200 anos, e o resultado está aí. A concorrência é a mãe da catástrofe social. A concorrência trouxe mais Estado, mais autoritarismo, mais barbárie, mais guerra. E um total empobrecimento da criatividade e do indivíduo – hoje um miserável à procura de emprego ou de não o perder. A direita, em que vivemos há 200 anos, acredita na desigualdade natural, eu não. Porque a história foi implacável com o capitalismo. É um sistema de terror organizado que nos coloca sistematicamente a vida em risco, do desemprego à guerra.
Mas a mim interessam-me mais os erros da esquerda sempre a apelar ao Estado, ao assistencialismo, à punição, à vigilância, e até a novas formas de pecado. Não posso deixar hoje de ouvir a maioria dos “activistas” de esquerda e pensar nas semelhanças que têm com a doutrina social da igreja. Já há quem defenda que “em nome das vítimas” devem os empregadores decidir como adultos de 18 anos têm relações (caso do artigo de Susana Peralta no Público). É uma espécie de direito de pernada ao contrário.
Aqui um pedaço de uma esquerda que já o foi, pela voz do escritor anarquista Campos Lima (mas qualquer socialista do XIX diria o mesmo), advogado de presos por “delito de opinião”, expulso de Coimbra na greve de 1907 contra a ditadura de João Franco:
“ (…) o problema social não é unicamente uma questão de estômago. Ele contende com todas as grandes manifestações sociais. Em todas elas há que destruir e remodelar. A vida, desde o primeiro impulso instintivo até às maravilhosas vibrações de uma consciência para um ideal, é no momento presente uma coisa dolorosa e amargurada. Viver é ser-se continuamente contrariado nas mais justas e legitimas aspirações, ver tombar os sonhos mais queridos, contrafazer os impulsos generosos do nosso corações, sofrer a luta egoísta dos interesses e quantas vezes sucumbir miseravelmente numa transigência desonesta e vergonhosa” .
No fundo o que ele queria dizer é uma ideia de esquerda profunda. Maravilhosa. Os comportamentos individuais das pessoas são, salvo muito raras excepções, de gente que rema com risco contra a corrente, asquerosos, sejam de esquerda ou de direita, enquanto existir a luta de todos contra todos. O remédio é organizar politicamente ou sucumbir eticamente. Sem um programa socialista de transformação para o bem comum, vai continuar o elogio da subalternidade, que não devem comer ostras e devem casar só com quem o patrão diz. E claro, sempre com uma caixinha de denúncias onde todos os oportunistas poderão largar o seu ressentimento garantindo um tribunal para cada pessoa e um polícia ao lado de cada um. Para, se me permitem a inspiração anarquista, que o Santo Estado nunca nos falte e haja sempre uma comissão de inquérito para expiar pecados da TAP ao BES. Amém.
Já não é só de estômago, a crise.