Alguns retornados – nome que em Portugal são referidas as pessoas que regressaram das ex colónias em 1975, sobretudo -, escreveram-me porque acham errado, alguns mesmo indecente (vivemos num mundo de gente indignada e pouco debate de ideias), eu ter afirmado, que não “tinham direito a nada”. Afirmei e disse mais – o facto de que muitos nunca tinham vivido em Portugal não lhe dá direito a nenhum bem, terras ou propriedades em Angola, Moçambique ou Guiné. É essa a minha opinião.
Didier Eribon tem um livro “Regresso a Reims” onde escalpeliza o seu passado numa vila operária de França e lembra que a avó foi colaboracionista, pela pobreza tornou-se amante de um oficial alemão nazi que ocupava a França, quando veio a libertação a avó foi humilhada e ostracizada publicamente e acabou por fugir abandonando os filhos, e isso teve um impacto na vida dele, na mãe dele, abandonada, sem poder estudar, além de uma série de traumas e relações tóxicas. Há milhares de mulheres pobres que decidiram ir para a resistência ou pelo menos trabalhar em fábricas para não se prostituírem com nazis. Está na moda equiparar e “respeitar” todas as escolhas. Não. As pessoas não são iguais. Milhares de judeus fugiram de Israel nos últimos anos, alguns foram presos por estar contra o Estado ocupante de Israel, estão do lado dos Palestinianos. Outros estão banhados em sangue de crianças palestinianas e nunca se lavarão desse drama que vai ditar quem são, como pensam, como são incapazes de amar ou viver em paz até consigo próprios.
Milhares de portugueses, sobretudo nos anos 1940-50, alguns antes, foram colonizar as terras de África ao serviço dos grupos económicos e do Estado-português que enriqueciam com o trabalho forçado até 1974. Foram colonizar depois das “campanhas de pacificação” e massacres, guerras armadas sistemáticas desde o fim do século XIX até 1961 levadas a cabo por Portugal. Depois começa a guerra. Sangue, sangue e mais sangue essa é a história idílica por trás das festas de África, com pedras de gelo, ao fim da tarde, que paisagem inesquecível… Ao serviço dos Mello e Champalimaud, Lima Mayer entre outros notáveis. Os colonos – mais tarde retornados – trabalhavam na construção até à administração, uns tinham vidas frugais outros enriqueceram.
Outros milhares de portugueses, na verdade mais de 1 milhão, preferiram ir para França para não ser colonos, e para fugir a matar “pretos” e “terroristas” na guerra colonial, e foram trabalhar como escravos nas fábricas automóveis ou como porteiras. Outros ainda foram para a resistência ao fascismo. Há PIDES e há quem lute contra os PIDES. E há quem colabora e há quem fuja, mesmo optando por vidas piores. Somos as nossas escolhas e as nossas escolhas arrastam-se por décadas – foi isso que escreveu Eribon.
Nos últimos anos tem havido um revisionismo histórico feito, por exemplo pela jornalista Helena Carmo, idealizando o mundo dos retornados. Ora a obra da historiadora Dalila Cabrita Mateus há 3 décadas demonstram que os informadores da PIDE em Portugal-metrópole se escondiam, já nas ex colónias andavam sem vergonha na rua e quando entravam num hotel os colonos levantam-se e faziam-lhes vénias…
O preço do colonialismo foram décadas de trabalho forçado e na guerra 100 mil mortos entre 61 e 74 do lado dos movimentos de libertação e civis. Cem mil! Guardem este número de uma vez. Esse número esquecido – que publiquei pela primeira vez na “História do Povo na Revolução” -, quando a historiografia e os media publicavam apenas os mortos do lado português – 9 mil. Escolhas. Mais uma vez, somos as que fazemos.
Claro, há muitos retornados decentes e até muitos que apoiaram os movimentos de libertação. Tenho amigos entre eles, grandes amigos. Gente igual por dentro gente igual por fora. Porque não somos só passado, somos o que escolhemos ser hoje. Muitos retornados, uma minoria, escolheram estar do lado dos oprimidos e não dos opressores. Fizeram a escolha mais difíceis porque em geral significava um combate contra o regime e contra a família.
Este texto não é sobre reparações. Escreverei sobre isso noutra altura. Para mim não há lugar a reparações, há lugar a lutar hoje por mudar o mundo. Este texto é apenas para dizer que os judeus que estão a apoiar o Estado de Israel tomaram uma decisão que vai determinar quem eles são. E os judeus que estão contra o genocídio em Gaza também, bem como os jovens judeus estudantes que acampam nas universidades pela Palestina. Somos as nossas escolhas. E deixamos esse legado.
A descolonização foi trágica. Mas, apesar de tudo – até porque os retornados foram essenciais como base de apoio ao golpe do 25 de Novembro para pôr fim à revolução – meio milhão foram recebidos, numa das maiores pontes aéreas da história, com grande sucesso, incluindo em hotéis na linha de Cascais, e claro pelos familiares. Mas a descolonização não foi trágica por causa de Mário Soares, é outro mito (nunca fui apoiante de Soares, já agora) – a descolonização é sempre trágica porque a colonização é uma tragédia.
Para mim, que sou socialista (tenho que repetir, a la século XIX, defendo a propriedade comum dos meios de produção, não a casa, que é propriedade pessoal) – não devia haver fronteiras nem muros e quem vivia em África e queria lá ficar devia ter tido condições para ficar. Mas isso implicava ter ficado em condições de igualdade e não de ocupação ou neo-colonialismo como é até hoje. Em capitalismo o jogo é soma zero, a casa para um é a expulsão do outro.
Tudo isto é trágico, para quem saiu, para quem ficou, o mundo é bárbaro. Apesar de tudo não podemos igualar quem faz parte da barbárie ou com ela foi cúmplice, e quem luta contra a barbárie. Não sou a favor de reparações mas a haver deviam ser pagas por quem enriqueceu em África, a começar pelas famílias dos grandes grupos económicos, cujo vinhos que bebem hoje, os bons colégios onde estão os filhos a estudar na Suiça, têm a marca da barbárie de ontem – do trabalho forçado, e não do trabalho esforçado dos pais e avós que herdaram, como gostam de dizer.
Tive sorte, mais do que o Eribon, na minha familia, dos dois lados, há gente presa e/ou perseguida a lutar contra o fascismo. Deixaram-se essa herança, a mais valiosa que tenho, nenhum pedaço de terra no mundo compra a consciência. E a consciência é um gigante que vive connosco e nunca dorme.