Entrevista jornal sindicatos suíços

Os sindicatos suíços financiam um jornal a sério, com jornalistas, investigação, uma esfera pública (não há infelizmente nada semelhante por cá, quando era o padrão no século XIX, jornalismo financiado por trabalhadores e não por publicidade ou pelo Estado), em alemão. Dei esta entrevista para o mesmo. Em alemão, sobre a revolução dos cravos até uma análise dos conflitos sociais e do mundo do trabalho hoje em Portugal.

SocialData

Para que as pessoas conheçam o país e possam pensar por si próprias. Quem somos, quanto ganhamos, como trabalhamos, qual a taxa real de desemprego ou pobreza, o que é ser pobre? Ousar pensar por si, ousar conhecer.

SocialData está aberto a todo o público, em versão experimental. Por favor naveguem e enviem-nos as críticas e sugestões. A ideia central é ser um portal para toda a população, especialistas ou não, sindicatos, media, trabalhadores, totalmente democrático, para que todos possam ter acesso à realidade dos números sobre trabalho e condições de vida em Portugal. Trata-se de um projecto do nosso Observatório para as Condições de Vida, da UNL, e em parceria com várias instituições como o INE, o economista Eugénio Rosa, entre outras.

Navegam e façam sugestões, muito obrigada:

Observatoriocondicoesdevida@gmail.com

https://socialdata.unl.pt/pt/


Coordenação técnica Tiago Franco
Implementação Sofia Taipa.

25 de Novembro: uma “contrarrevolução democrática” 

Raquel Varela, historiadora, Jornal Expresso

A 25 de novembro de 1975 um novo golpe de Estado à direita, liderado militarmente por Ramalho Eanes, conduzido civilmente pelo Partido Socialista – com o apoio da direita tradicional, da Igreja Católica, da NATO e do “Grupo dos Nove”, uma ala social-reformista do MFA –, prende mais de 100 oficiais revolucionários e passa à reserva os soldados das unidades onde a dualidade de poderes tinha ganhado expressão embrionária. O golpe de Estado restaurou a “disciplina” nas forças armadas, acabou com a “sovietização” – na expressão do próprio Soares – nos quarteis, e assegurou a estabilização das instituições, restituindo assim a centralidade do Estado português na forma política de um sufrágio universal, Parlamento eleito , a nova Constituição, que sagraria a fórmula dos direitos, liberdades e garantias e um assim-chamado Estado de Direito.

O fim da revolução dá-se por uma fórmula inovadora, que será depois aplicada na América Latina, nos anos de 1980. Mário Soares lidera esta “contrarrevolução democrática” a 25 de novembro de 1975, quase sem mortos e com amplas cedências sociais (o Estado social e direito ao emprego seguro). É de facto um “empate técnico” – os trabalhadores organizados são por fim derrotados politicamente, mas a burguesia é socialmente obrigada a amplas concessões, ao estilo de França e Inglaterra no segundo pós-guerra (1947); o PCP por sua vez aceitou não resistir (ou terá mesmo pré-negociado?, ainda está por investigar a fundo) ao 25 de novembro, assumindo publicamente – o que demonstrei na minha investigação–, pela mão do seu líder de então, Álvaro Cunhal, que a esquerda militar se tinha tornado um fardo para o PCP porque a sua atuação punha em causa o equilíbrio de forças com os Nove e os acordos de “coexistência pacífica” entre os EUA e a Europa Ocidental e a URSS e o Leste Europeu (Acordo de Ialta e Potsdam). A revolução acabou não por um putsch fascista, como no Chile do General Pinochet, mas num golpe civil-militar de novo tipo, com escassa violência e com diminuta resistência. O chamado poder popular – a dualidade de poderes em acto, a democracia participativa – não tinha coordenação geral de nenhum tipo, nada semelhante a um partido bolchevique existia em Portugal, nem a revolução teve efeitos nos países centrais da Europa – Alemanha, RU e França – apenas na Espanha e Grécia.

Esta ambivalência faz com o 25 de Novembro nunca tenha tido celebrações oficiais em Portugal. É um golpe que então sequer recebe este nome por quem o apoia (fala-se de golpe dos paraquedistas, quando estes foram provocados a sair, para justificar o golpe de direita); foi visto pelas elites dirigentes como uma “necessidade” de “normalização” para pôr fim à “sovietização das forças armadas” e demais esferas da vida. Uma “necessidade” – até à queda do muro, quando o PCP mudará sua posição – também assim percebida pelo PCP, que viu tal golpe como um meio eficaz para controlar a esquerda militar, fora parcialmente do seu alcance. Na minha opinião o PCP agiu a la Barcelona em 1937.

O PS oferecia uma terceira via – “escandinava”, dizia-se – contra uma URSS estalinista ditatorial e o imperialismo hegemónico norteamericano. Essa narrativa falhou em duas dimensões. O PCP nunca quis fazer uma revolução em Portugal (queria Angola), e a “Europa connosco” nunca teve lugar. Portugal é já um dos países mais pobres da Europa Ocidental – depois de poucos anos de alívio na sequência da revolução social –, Soares vai, no fim da vida, coerente, erguer-se contra o ordo-neoliberalismo alemão, alguns militares que fizeram o 25 de Novembro, olhando os vis efeitos das políticas austeritárias a partir de Cavaco Silva, questionaram-se, entretanto, se teria valido a pena. 

As celebrações dos 50 anos da Revolução dos Cravos – sem surpresa, diga-se – são pouco unânimes. Deputados, quadros e votos dos partidos da direita tradicional e democrata-cristão (o PSD e o CDS em reedição da “Aliança Democrática”), migraram para o novo Partido Chega, com elementos de neofascismo, fazendo desparecer o CDS e tornando difícil a uma ala mais liberal do PSD, de onde sai o seu principal dirigente, sobreviver à deriva neofascistizante nas suas próprias fileiras – as velhas e novas direitas altercam-se e amalgamam-se entre si numa plêiade ultraliberal e hiperconservadora que abarca sectores neofundamentalistas cristãos, inclusivamente fatimistas. A nova vontade de se celebrar o 25 de Novembro emerge daqui. A nova extrema-direita plasmada no anti-comunismo da IL e no neofacismo do Chega, normalizado pelos media como “liberais” ou “direita radical”/“extrema-direita” apresentam-se às regras do jogo. Querem celebrar o 25 de Novembro pelo que foi, isto é, um golpe de Estado contra a democracia no trabalho, contra a dualidade do poder popular, enfim, o início do fim da revolução. O princípio da reconstrução do aparelho de Estado capitalista para uma nova reconversão produtiva (e política): de uma burguesia dependente do trabalho forçado – e das colónias africanas – até 1974 para uma burguesia de hegemonia limitada ou um protectorado de facto, dos investimentos, máquinas e capitais alemães, franceses e ingleses (e norteamericanos, espanhóis, chineses, ou outros).

A “contrarrevolução democrática”, conceito político central para apreender o que realmente se passou em Portugal, mostra cada vez menos democracia, e cada vez mais contrarrevolução. Não à tôa, como disse o Padre Martins Junior de modo acutilante, temos 50 neofascistas no hemiciclo depois de 50 anos da Revolução de Abril. A palavra de ordem não poderia ser mais atual: 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais.

https://expresso.pt/semanario/primeiro/a-abrir/duelo/2024-05-03-faz-sentido-o-estado-criar-uma-comissao-para-assinalar-o-25-de-novembro–d439771c

O Recém Nascido

O Fascista já foi bebé – imperdível

O actor brasileiro Pedro Cardoso tem em cena um monólogo brilhante em forma de comédia sobre um fascista. Ressentido por ter nascido, em diálogo permanente entre Freud e Hitler, odeia o pai, o canalha que lhe rouba os seios da mãe, a protecção daquele ser por quem tem ódio e paixão, um maníaco no fundo, vai crescendo desprezando todos os que não viviam para ele, não tem amigos, apenas interesses, é ciumento, morre de inveja, é incapaz de amar, vive todos os dramas – aliás, de ir às lágrimas de tanto rir, do individualismo patológico – até que acaba a dizer qualquer coisa irracional, está pronto para ser candidato por um partido fascista. Os microfones estão lá à espera dele, os jornalistas, na sua maioria, são o veículo público da irracionalidade, escutam-no, não interessa se o que ele diz tem qualquer racionalidade ou verdade. Não há fake news, é mesmo tudo fake, o líder fascista, as suas propostas, a sua existência. O Pedro Cardoso vive em Portugal há anos, sequer vou entender porque um dos actores maiores do Brasil apenas apresenta a sua peça – genial – no pequeno teatro TIO (Teatro Independente de Oeiras). Não pelo TIO, que está de parabéns, mas porque se vêem poucas vezes peças da qualidade do Recém Nascido. Se por acaso não conseguem ouvir notícias porque é como ir ao cinema ver um líder evangélico obscurantista a gritar que vai levar a verdade ao reino da Pátria, vão ver a peça “Recém Nascido”, é um teatro de comédia que nos trás de volta à racionalidade e à realidade, à política com P Maiúsculo.

Utopia

Sobre a banda desenhada que publiquei com o Robson, ilustrador:

A todo tempo nos sentimos como observadores participantes, não propriamente como protagonistas de uma história individual, mas sim de uma história coletiva.

Observador participante porque José não assiste inerte aos acontecimentos. Do seu jeito, tentando entender o que se passa e tomando sua própria consciência da situação, vai amadurecendo e se tornando um revolucionário.

José cresceu em uma família muito pobre e teve uma infância cercada pela miséria de um país preso a uma ditadura longeva, sem assistência social e que se afundava em uma injusta guerra contra as suas colônias – guerra essa em que o lado colonizador progressivamente perdia. Ao passo que observamos – e relembramos com José – o passar do tempo, também aprendemos imensamente qual era o contexto social da época – com toda a didática e propriedade que uma dedicada professora e pesquisadora de história pode nos presentear.

Os traços esfumaçados de Vilalba, por vezes leves, em outras precisos ou pesados, expressam com maestria a sensação de estarmos “sonhando” uma lembrança, mas também experimentando outras possibilidades de “estarmos juntos”.

Mesmo que a Revolução de Abril tenha sido efêmera e definhado nos conluios da contrarrevolução após 1975, disfarçados pelo discurso de “normalização democrática” – e as contradições desse processo são abordadas na obra – ela foi responsável por inúmeras melhorias nas condições de vida da população e demonstrou como é possível acabar com a dinastia do autoritarismo, da tortura e do colonialismo.

Extremamente sensível e didática, Utopia é como os cravos nos canos das armas dos soldados portugueses é um gesto forte e singelo de corações abertos e sedentos para e por uma nova história. Um gesto que ensina.

O Fascismo não são ideias, é Violência

50 deputados neofascistas, normalizados como Parlamentares, entrevistados por jornalistas como normais membros de “direita radical” ; e agora milícias a atacar imigrantes com o líder Ventura a explicar que se trata também de fazer justiça contra roubos ( para quê tribunais se tudo se pode resolver à porrada? Porque não armar a população e resolver tudo assim, sem verificar quem rouba, se rouba, sem tribunais, apenas com pancada sem julgamentos?)

Ao mesmo tempo que Ventura não debate as posições de Marcelo, mas imitando todos os fascismos na história ameaça silenciá-lo e a quem ao Chega se opõe usando a justiça (pública, sendo que o Chega recebe 4 milhões ano de subvenções dos nossos impostos, são para pagar o fim da liberdade de expressão com ameaças em tribunais?). Para quando uma gigante manifestação em Portugal contra o fascismo e a violência, o racismo e a barbárie ou vamos esperar que o mesmo Estado que legaliza e promove estas ideologias nos media as combata? ; uma manifestação contra os processos de Ventura contra a liberdade de expressão que vão de Ricardo Araújo Pereira, jornalistas críticos até Marcelo? Ou o país vai ser assim: à facada e com processos em tribunal contra o debate livre?

Uma pergunta: algum grupo/partido fascista alguma vez disse uma palavra sobre empresários que usam mão de obra migrante semi escrava e a seguir despede os migrantes abandonando-os? Ou são as leis do mercado a funcionar? Outra pergunta : é uma prova de honra da “família tradicional” um homem mais forte bater num mais fraco ? Um legal num sem-papéis ? Um armado num desarmado?

Retornados

Alguns retornados – nome que em Portugal são referidas as pessoas que regressaram das ex colónias em 1975, sobretudo -, escreveram-me porque acham errado, alguns mesmo indecente (vivemos num mundo de gente indignada e pouco debate de ideias), eu ter afirmado, que não “tinham direito a nada”. Afirmei e disse mais – o facto de que muitos nunca tinham vivido em Portugal não lhe dá direito a nenhum bem, terras ou propriedades em Angola, Moçambique ou Guiné. É essa a minha opinião.

Didier Eribon tem um livro “Regresso a Reims” onde escalpeliza o seu passado numa vila operária de França e lembra que a avó foi colaboracionista, pela pobreza tornou-se amante de um oficial alemão nazi que ocupava a França, quando veio a libertação a avó foi humilhada e ostracizada publicamente e acabou por fugir abandonando os filhos, e isso teve um impacto na vida dele, na mãe dele, abandonada, sem poder estudar, além de uma série de traumas e relações tóxicas. Há milhares de mulheres pobres que decidiram ir para a resistência ou pelo menos trabalhar em fábricas para não se prostituírem com nazis. Está na moda equiparar e “respeitar” todas as escolhas. Não. As pessoas não são iguais. Milhares de judeus fugiram de Israel nos últimos anos, alguns foram presos por estar contra o Estado ocupante de Israel, estão do lado dos Palestinianos. Outros estão banhados em sangue de crianças palestinianas e nunca se lavarão desse drama que vai ditar quem são, como pensam, como são incapazes de amar ou viver em paz até consigo próprios.

Milhares de portugueses, sobretudo nos anos 1940-50, alguns antes, foram colonizar as terras de África ao serviço dos grupos económicos e do Estado-português que enriqueciam com o trabalho forçado até 1974. Foram colonizar depois das “campanhas de pacificação” e massacres, guerras armadas sistemáticas desde o fim do século XIX até 1961 levadas a cabo por Portugal. Depois começa a guerra. Sangue, sangue e mais sangue essa é a história idílica por trás das festas de África, com pedras de gelo, ao fim da tarde, que paisagem inesquecível… Ao serviço dos Mello e Champalimaud, Lima Mayer entre outros notáveis. Os colonos – mais tarde retornados – trabalhavam na construção até à administração, uns tinham vidas frugais outros enriqueceram.

Outros milhares de portugueses, na verdade mais de 1 milhão, preferiram ir para França para não ser colonos, e para fugir a matar “pretos” e “terroristas” na guerra colonial, e foram trabalhar como escravos nas fábricas automóveis ou como porteiras. Outros ainda foram para a resistência ao fascismo. Há PIDES e há quem lute contra os PIDES. E há quem colabora e há quem fuja, mesmo optando por vidas piores. Somos as nossas escolhas e as nossas escolhas arrastam-se por décadas – foi isso que escreveu Eribon.

Nos últimos anos tem havido um revisionismo histórico feito, por exemplo pela jornalista Helena Carmo, idealizando o mundo dos retornados. Ora a obra da historiadora Dalila Cabrita Mateus há 3 décadas demonstram que os informadores da PIDE em Portugal-metrópole se escondiam, já nas ex colónias andavam sem vergonha na rua e quando entravam num hotel os colonos levantam-se e faziam-lhes vénias…

O preço do colonialismo foram décadas de trabalho forçado e na guerra 100 mil mortos entre 61 e 74 do lado dos movimentos de libertação e civis. Cem mil! Guardem este número de uma vez. Esse número esquecido – que publiquei pela primeira vez na “História do Povo na Revolução” -, quando a historiografia e os media publicavam apenas os mortos do lado português – 9 mil. Escolhas. Mais uma vez, somos as que fazemos.

Claro, há muitos retornados decentes e até muitos que apoiaram os movimentos de libertação. Tenho amigos entre eles, grandes amigos. Gente igual por dentro gente igual por fora. Porque não somos só passado, somos o que escolhemos ser hoje. Muitos retornados, uma minoria, escolheram estar do lado dos oprimidos e não dos opressores. Fizeram a escolha mais difíceis porque em geral significava um combate contra o regime e contra a família.

Este texto não é sobre reparações. Escreverei sobre isso noutra altura. Para mim não há lugar a reparações, há lugar a lutar hoje por mudar o mundo. Este texto é apenas para dizer que os judeus que estão a apoiar o Estado de Israel tomaram uma decisão que vai determinar quem eles são. E os judeus que estão contra o genocídio em Gaza também, bem como os jovens judeus estudantes que acampam nas universidades pela Palestina. Somos as nossas escolhas. E deixamos esse legado.

A descolonização foi trágica. Mas, apesar de tudo – até porque os retornados foram essenciais como base de apoio ao golpe do 25 de Novembro para pôr fim à revolução – meio milhão foram recebidos, numa das maiores pontes aéreas da história, com grande sucesso, incluindo em hotéis na linha de Cascais, e claro pelos familiares. Mas a descolonização não foi trágica por causa de Mário Soares, é outro mito (nunca fui apoiante de Soares, já agora) – a descolonização é sempre trágica porque a colonização é uma tragédia.

Para mim, que sou socialista (tenho que repetir, a la século XIX, defendo a propriedade comum dos meios de produção, não a casa, que é propriedade pessoal) – não devia haver fronteiras nem muros e quem vivia em África e queria lá ficar devia ter tido condições para ficar. Mas isso implicava ter ficado em condições de igualdade e não de ocupação ou neo-colonialismo como é até hoje. Em capitalismo o jogo é soma zero, a casa para um é a expulsão do outro.

Tudo isto é trágico, para quem saiu, para quem ficou, o mundo é bárbaro. Apesar de tudo não podemos igualar quem faz parte da barbárie ou com ela foi cúmplice, e quem luta contra a barbárie. Não sou a favor de reparações mas a haver deviam ser pagas por quem enriqueceu em África, a começar pelas famílias dos grandes grupos económicos, cujo vinhos que bebem hoje, os bons colégios onde estão os filhos a estudar na Suiça, têm a marca da barbárie de ontem – do trabalho forçado, e não do trabalho esforçado dos pais e avós que herdaram, como gostam de dizer.

Tive sorte, mais do que o Eribon, na minha familia, dos dois lados, há gente presa e/ou perseguida a lutar contra o fascismo. Deixaram-se essa herança, a mais valiosa que tenho, nenhum pedaço de terra no mundo compra a consciência. E a consciência é um gigante que vive connosco e nunca dorme.

A People’s History of Portugal

“In A People’s History of Portugal, written with Roberto della Santa and not yet translated into English, we develop the idea that Portuguese capitalism was dependent on British capitalism, in the sense of Ellen Wood’s notion of capitalism being exported by the British Empire to the periphery and semi periphery.

The Portuguese bourgeoisie started to make their own revolution to establish capitalism and overthrow the monarchy in the 1820s.  But they could only finish it as a counter-revolutionary process, under a fascist regime, in the 1930s. It is the last attempt of the bourgeoisie to create a nation state. The dictatorship was based on a rural, peasant society, where women had to provide kids for the labour force  to support the process of industrialisation. Portugal had had one of the strongest anarcho-syndicalist movements in all Europe in the late 19th century and beginning of the 20th century. Under the fascist regime strikes and political parties were forbidden and brutally repressed. 

The third part of this dictatorship was the use of forced labour on a massive scale in the Portuguese colonies, which directly connected with apartheid and South African capital accumulation. So again, very connected with British capitalism.

There was also a fourth pillar of the regime. It was the so-called industrial ‘conditioning’. The state allowed the bourgeoisie to create their own monopolies so there would be no competition in certain areas. So, it was a typical Bonapartist state that managed the bourgeoisie’s business. But during the Spanish Civil War (1936-39) there was an Iberian revolutionary process, and we argue in A People’s History of Portugal that this produced a directly fascist regime in Portugal. As a result, in the late sixties, less than 20% of the population had access to a proper water supply orproper houses; 30% were illiterate and there was the highest rate of child mortality in Europe. At that time there was a huge strike of forced labourers in Baixa do Cassangein Angola. The strikers were smashed by the Portuguese army, 5,000 were killed, maybe 10,000, nobody really knows the right figures. This is the beginning of the colonial wars from the perspective of the Portuguese state, and it’s the beginning of the anti-colonial wars from a socialist perspective. The colonial war is the name used by the Portuguese state. We talk about anti-colonial revolution. The anti-colonial revolution started a colonial war. Over the next thirteen years the Portuguese army recruited 1.1 million to fight the war in Africa. This from a population of almost ten million. There was only one more militarised society at that time, which was Israel.

To avoid accommodating the higher pay and conditions demanded by strong unions in core countries after the Second World War, and in the face of the decline of profits in the sixties, investment flowed from core countries to Portugal. Many industrial areas of foreign capital were concentrated around Lisbon, Setubal and Oporto. In addition, 1.5 million workers were recruited from Portugal to go to Luxembourg, Switzerland, France, Britain and Germany to work. This led to a situation where objectively workers were in a strong position, because the labour force inside Portugal had shrunk because of the colonial war and migration. And then on top of this we had the oil shock, the so-called oil shock crisis, which is the crisis of the end of the reconstruction after the second world war.

In Portugal the bourgeoisie split because at the time 40% of the national budget was for the colonial war. People didn’t have clean water, but 40% of the budget went to the colonial war. All these contradictions developed intensively after May 1968 in France and the civil rights movements in US. A huge number of students were inspired to rise up against the war. In Portugal we call it the ‘academic crisis’. And there werea huge number of strikes. My hypothesis, which I develop in the new book with Roberto della Santa, is that Portugal was a kind of 21st century revolution. A huge proportion of the people that took part were engaged in the service sector and in intellectual work. Doctors, nurses, teachers, public servants, journalists; all these sectors were involved in dual power organisations, in workers commissions and in the self-management organisation of hospitals and schools.”https://www.rs21.org.uk/2024/04/25/remembering-the-portuguese-revolution/?link_id=5&can_id=4baefe34b378fd195d877e750a1a4a9f&source=email-anti-militarism-congo-neurodiversity-palestine-pay-revolution-theatre&email_referrer=email_2297578&email_subject=cass-review-political-tradition-portugal-at-50-snp-crisis-1974-and-more

1.° DE MAIO: «O TEMPO CONTRA O TEMPO»

As lutas operárias contra os longos horários de trabalho vão dar origem ao feriado mais festejado, ainda hoje, no mundo inteiro – o 1.o de Maio. Inspirado nos trabalhadores mártires de Chicago, violentamente reprimidos numa manifestação pública, pelas oito horas de trabalho, em 1886, o nome «Primeiro de Maio» deu título, em Portugal, a 22 periódicos entre 1890 e 1974.177 Abel Botelho descreveu o cortejo do 1.o de Maio em Lisboa, em 1895 no romance Amanhã, numa prosa realista que o historiador Carlos da Fonseca considera verosímil, provavelmente apoiada em jornais da época:

«Às 7 da manhã, já era enorme a multidão que esfervilhando se acumulava de roda do obelisco, no extremo sul da Avenida. A partir daí tomavam escalonadamente lugar, pela ampla artéria acima, os peões que deviam servir de pontos de reunião às diversas associações e grupos, segundo o programa publicado nos jornais e procurando o seu número de ordem nas pequeninas tabuletas suspensas das árvores, desde a praça dos Restauradores à rua das Pretas. O Mateus viera muito cedo presidir à concentração – todo de negro, gravata branca, e na botoeira do jaquetão flamulando um grande ramo de perpétuas. E a cada momento em volta dele o bulício, o pitoresco, a animação cresciam.
«(…) Sobre o leito do carro erguia-se uma elegante tarima, a ver- melho e oiro, profusamente festoada e guarnecida de toda a espécie de ferramentas, as quais, entressachadas com bandeiras, lhe rodeavam ainda à guisa de troféus o vértice, donde rompia para o azul um braço com um facho, e ao lado um estandarte vermelho com esta legenda a branco: Progresso e Trabalho. Na frente do carro, entre cestos vindimos, pás e ancinhos, lia-se em grandes letras de fogo: QUEREMOS 8 HORAS DE TRABALHO; e na cauda: A JOSÉ FONTANA, O POVO, FARTO DE SOFRER. Aos lados baloiçavam-se escudetes com os dísticos: PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNAMO-NOS! E BREVE CHEGA A NOSSA HORA. O carro dos Catraeiros vinha soberbo; arrancava na passagem clamorosos aplausos à multidão. (…) Nos flancos os retratos de João de Deus e Antero, à frente José Fontana, todos em molduras de flores e algas marinhas. (…) Passava, depois, a carruagem dos Operários de Tecidos de Seda – com um belo cortejo artístico.»

A comemoração do 1.o de Maio expandira-se mundialmente depois do Congresso Internacional de Paris em 1889 onde participa- riam dois delegados portugueses. Portugal começa a celebrá-lo em 1890.

As celebrações são acompanhadas por cortejos alegres, onde vão os centros socialistas, as filarmónicas, as cooperativas. Por vezes, o anticlericalismo é notório no desfile. Os carros alegóricos ainda evocavam o mundo do trabalho agrícola e artesanal: a festa dos Ramos e o Corpus Christi, celebrado pelos mestres artesãos. São, no início, desfiles sobretudo masculinos, veem-se poucas mulheres nos corte- jos. No cortejo de 1895 as costureiras levavam uma máquina Singer onde se lia: «Mata sem ruído.»
Segundo a imprensa, os cortejos juntaram 3 mil pessoas em 1894, 20 mil em 1896, 25 a 30 mil em 1897. No 1.o de Maio de 1897, um quarto da população de Lisboa não trabalhou.

Os operários tabaqueiros conquistam as oito horas de trabalho depois de uma greve. Mas é um epifenómeno. A partir de 1891 surgem os primeiros regulamentos a limitar o trabalho de menores e mulheres nas indústrias, mas com escassa fiscalização e aplicabilidade; no campo, o flagelo era ainda pior porque os pais não podiam abdicar da força de trabalho dos filhos menores.

O feriado do 1.o de Maio não será comemorado livremente durante a ditadura do Estado Novo. O primeiro celebrado depois do 25 de Abril de 1974, o 1.o de Maio de 1974, é a maior manifestação pública até hoje da história do país. Ao todo calcula-se ter envolvido nas avenidas e nas praças de todo o país mais de 2 milhões de pessoas. Ou seja, mais de 20% da população esteve em festa nas ruas.”

In Breve História de Portugal, de Raquel Varela e Roberto della Santa, Bertrand, pp. 244-246

Que fazer, outra vez?

“Ao contrário do desespero reinante acredito que hoje as condições para construir uma sociedade não capitalista livre e igual – realmente socialista – são muito mais favoráveis, a escassez da URSS que levou ao estalinismo não existe, o pacto social morreu, e as classes dominantes estão em crise profunda incapazes de governar, as classes médias aproximaram-se do mundo do trabalho com a proletarização”. O PREC, a revolução, a esquerda dominante no mundo, a reboque de políticas marginais do Partido Democrata norte-americano (feminismo, imigração, uma outra proposta revolucionário como seria?), e a utopia para hoje, numa entrevista que dei ao António Martins, editor do jornal Outras Palavras, e ao Glauco Faria. O Outras Palavras é um excelente órgão de comunicação que há muito leio, recomendo pela qualidade do trabalho jornalístico que este jornal faz. Aqui fica:

https://www.youtube.com/live/tfpoFZAZpmM?app=desktop&si=2h0cjU5hQy8gsZUr&fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR2x4ZheTHeT2CWzfLVNYgHXtu6njggw0BE6UMG89krHR_saDTKS_-q1EeE_aem_Ae9qyE9tEF7xawEQJoMn1FoePtEhGZly4x_Ol11UnQc2GyXamdMDjWkTdq8Zm-JxZ2xR5hbKfeYChpSrGPcBZWa0

Dar Tudo a Todos

O que aconteceu ontem é politicamente central. Mais de milhão de pessoas só em Lisboa, 600 mil talvez, maior ou pelo menos do tamanho da Geração à Rasca, um milhão em todo o país contando Porto, outras cidades, e os milhares de associações e grupos que o festejaram. A manifestação tinha milhares de jovens, impressionante, com cartazes e exigências, claras, de direitos sociais. Uma festa de gente decente, alegre, famílias, amigos, abraços entre iguais. Não foi convocada pelas celebrações oficiais, pelo contrário, são milhares de grupos auto organizados, sindicatos, movimentos sociais, que foram pelo seu pé, sim financiamento Estatal, gente individual e gente organizada, na rua, pelo direito ao futuro. Foi um “voto com os pés”, na rua, contra a degeneração expressa na votação de 10 de Março e a eleição de grupos neofascistas. Os media insistem numa agenda irrelevante e, perdoem, nas redes sociais vão atrás da “banana”: Bogalho, discursos de Marcelo, tudo isso é fait divers. Ontem aconteceu algo a sério – uma massa de gente veio para a rua dizer direito ao trabalho, Palestina livre, fim ao genocídio em Gaza, direito a casa própria, democracia no trabalho, também lá estávamos, ser livre, em cada esquina um amigo, fascistas não passarão. Um voto de protesto com os pés, em movimento. Que bela festa pá, um dia assim por dia e já os nossos problemas como sociedade tinham “milagrosamente” sido resolvidos, como em 1974-1975 quando “caíram do céu”, lei-se das lutas colectivas, direito ao trabalho com direitos, casas, SNS, educação.

O 25 de Abril e a Revolução dos Cravos — Nunca tanta Gente Decidiu Tanto

Era uma vez um homem, ou quasi-homem, que queria comer o fruto do alto duma árvore. Olhou, calculou a distância, decidiu que queria (acto consciente) comer o fruto e pensou em como fazer-se chegar lá. Começou por uma liana, que se partiu, refletiu sobre o peso, e pensou que podia produzir, com as próprias mãos, uns “degraus”, até que construiu uma escada. E quis ensinar à sua comunidade o que era uma escada, como fazê-la, como usá-la, e, por isso deu nomes – à corda, à escada e ao acto de ir além, ir mais alto. Os signos complexos e a imaginação em acto: a linguagem e o pensamento. E a (auto)educação. Transmitir o conhecimento. No limite, a cultura letrada. Tudo tem origem no trabalho. Somos trabalho, e só por trabalharmos somos humanos – a linguagem, o pensamento, a cultura (com a mesma raiz de colo/cultus/culturus – fecundação, agricultura, religião etc.) diz-nos quem somos. Sem trabalho, não somos nada. É através do trabalho que tornámo-nos humanos, com ele transformamos o mundo e a nós próprios. O homem que faz (faber), que sabe que sabe (sapiens sapiens) e imagina (imaginosus). O homem que fez a escada, nomeou-a e ensinou-a. O Homem inventou tudo, das guerras às revoluções contra as guerras. O seu e o seu contrário.

Quero defender, nesta breve peça, uma ideia-chave: a história social, a história dos de baixo, ou do povo, não é a história de uma parte da população ou de um tema específico, como seria a história das ideias e mentalidades, dos hábitos de alimentação, ou a história militar ou -. aquela que é dominante no nosso seio desde os anos 1980, e a entrada no período de declínio acentuado do capitalismo global, o neoliberalismo – , a história política e institucional. De reis e senhores passámos, sob a influência da resistência ao nazi-fascismo e das revoluções anticoloniais a uma difusão da história social nos anos 1970. E a uma história, após 1986-89, de Estados e de estruturas, isto é, as instituições.

A história do povo é a história como um todo, é esse o argumento central deste texto. Quando a fazemos mobilizamos não só como sujeitos quem trabalha, e as dinâmicas sociais, convocamos o âmago daquilo que é central para explicar as sociedades humanas e, mesmo, a humanidade. O que determina toda a vida social – o trabalho. Explico-me: a dita tese da “centralidade do trabalho” não é apenas uma opção de historiadores marxistas, enamorados pelas classes trabalhadoras e os seus épicos, porém, também, trágicos, e contraditórios ditos e feitos. O mistério do trabalho vai da definição de quem somos, tema que apaixona psicanalistas, até às forças tectónicas que levam ao embate entre classes e movimentos sociais, as revoluções sociais. O trabalho é tão importante que é o que define o modo como vivemos em sociedade e o regime que regula as relações sociais. Ellen M. Wood (1942-2006), historiadora marxista canadiana, uma voz de rigor e honestidade intelectual, fez uma defesa fascinante da ideia de que na Grécia Antiga tinha nascido a democracia porque havia autonomia do trabalho – os escravos, claro, não tinham sequer direitos, mas a base da democracia política e, por isso, da (até hoje fascinante) esplendorosa cultura grega era a quantidade de homens livres na cidade, Polis, mestres-artesãos, artífices, que ao terem autonomia no seu próprio trabalho possibilitaram um resplandecente florescimento das primeiras organizações democráticas no ventre da cidade-Estado. Não há democracia sem democracia no local de trabalho.

A história social – que procurámos fazer na História do Povo na Revolução Portuguesa e na Breve História de Portugal (ambos publicados pela Bertrand)– permite-nos subir ao alto da montanha e, daí, enxergar a linha do horizonte. Coloca-nos num lugar que permite compreender as diferentes sociedades não na sua aparência (troca mercantil, forma-dinheiro, “coisas” etc.) ou na sua figuração (partidos, Igreja, direcções etc.), mas na sua essência – tudo o que é produzido em sociedade vem do trabalho e só o trabalho é que produz valor. E o trabalho, no capitalismo realmente existente, não é um arranjo contratual assinado entre pessoas livres, essa é só a sua representação jurídica formal, mas uma relação social entre classes sociais distintas: a burguesia e os trabalhadores. Estas classes não são as únicas que existem, mas são, depois de consolidadas no período contemporâneo do capitalismo avançado, as que determinam toda a estrutura social em que trabalhamos e, portanto, todo o modo de pensar, sentir e viver a vida. E assim, chego ao meu segundo ponto, o trabalho. A história do trabalho e o seu mundo não é a história dos trabalhadores, é, na verdade, a história da sociedade como um todo.

Cerca de 3 milhões de pessoas terão estado envolvidas em formas de democracia participativa na vida social e política em Portugal entre 1974 e 1975, “quando o futuro era agora”, na expressão feliz, cunhada por Francisco M. Rodrigues (1927-2008), e que remete para a noção de pré-figuração. Mas o que é isto? Que palavra é esta, “pré-figuração”? Também se explica pelo trabalho – o trabalho e seus desdobramentos permitem aquilo que nos distingue dos animais e que o fundador da psicologia concreta do homem denominou as funções ou processos psíquicos superiores (atenção dirigida, decidimos dar atenção a, focar em; memória volitiva, não é a memória involuntária; abstração conceptual; imaginação criadora). No fundo o que Liev S. Vigotski (1896-1934) diz é que pela educação – daí que seja bárbaro assistir à degradação da educação escolar – é que é pela educação que nós aprendemos a nos desenvolvermos e sermos senhores das nossas próprias decisões, regulando a nossa própria conduta, entre elas aprendemos a criar, decidimos criar, escolhemos inventar. Nas revoluções sociais trata-se da prefiguração política em acto – criamos em colectivo toda uma nova sociedade, em permanência, “fazemos” o que “sabemos”, e assim o futuro desejado se afigura na acção. Esse é o significado mais profundo da história do povo na revolução portuguesa, e que só a história social pode analisar, interpretar, descrever, narrar, explicar e compreender: nunca antes tanta gente decidiu tanto em toda a história de Portugal. Nunca antes tanta gente aprendeu tanto a decidir o que e como fazer aquilo que virá a ser.

Sem esperar pelo Estado e muitas vezes contra as instituições, tomaram decisões que foram fulcrais para o país e que determinaram um salto de tigre da idade média para a modernidade e a contemporaneidade. Mudaram o país e mudaram-se a elas mesmas. A política deixou então de ser, num Portugal com 300 anos de inquisição e 48 de ditadura, uma profissão de poucos e passou a ser a gestão da coisa pública, comum, de muitos, de todos. A guerra colonial terminou, celebrada nas ruas “nem mais um soldado para as colónias”, no cano das espingardas alçaram-se cravos rubros. Mas só quer tudo quem não teve nada: os professores em cada escola organizaram a gestão destas, com representantes eleitos, debateram pedagogia e didática, conteúdos e currículos, sempre entre pares; os médicos decretaram que nunca mais a transfusão de sangue humano seria comercializada, os hospitais privados seriam então inseridos num Serviço Nacional de Saúde cujo primeiro esboço é desenhado em 1974 e 1975 com a nacionalização das velhas misericórdias e a abertura de novas urgências, exigidas pelos médicos para ampliar cuidados à população e, assim, o próprio saber-fazer médico. Nas empresas e nas fábricas os trabalhadores reuniram-se, pela primeira vez na história do país, de forma inteiramente livre, e impuseram limites ao trabalho nocturno, salários acima dos mínimos, direito ao trabalho e direito ao descanso, férias pagas, segurança social; centenas de milhar de pessoas tiveram acesso a uma casa arrendada ou autoconstruída.

A liberdade chegou a sério, conquistada e aprimorada: teatros e ballets, onde os artistas debateram o que é a arte, porque é uma necessidade fundamental, actuaram nos locais de trabalho, as mulheres passaram a decidir lado a lado com os homens onde fica a creche, porque as rotas dos autocarros devem servir todos os bairros, mas também passaram a decidir sem os homens, questões essenciais da intimidade, e, até, do sentido da vida – a propriedade privada dos meios fundamentais de produção social encolheu-se, e a liberdade individual de milhões anónimos, libertados do espartilho da escassez brutal, ampliou-se, como nunca antes. O liberalismo português, iniciado em 1820, nem o direito ao voto garantiu, mas a Revolução dos Cravos, o biénio do PREC, não trouxe só o direito ao voto, reunião, associação, e liberdades e garantias individuais e colectivas, trouxe o direito a viver em democracia, sem medo, no local de trabalho e em todas as esferas da vida.

“O povo é quem mais ordena, dentro de ti oh cidade!”. A revolução portuguesa, que se sucedeu ao 25 de Abril de 1974, e durou sensivelmente quase dois anos a fio, foi o período não só mais extensamente revolucionário, como mais profundamente democrático da história de Portugal. A democracia substancial – muito mais do que a democracia procedimental das urnas eleitorais – ensinou-nos que há outro modo possível de vida e trabalho, em cooperação, solidariedade e liberdade.

Esse passado hoje é glosado e temido pelas classes dominantes que querem fazer do PREC (Período Revolucionário em Curso) um tempo de balbúrdia, confusão e caos generalizado, omitindo que esse tempo histórico, esse sonho lindo porque real, foi o tempo em que mais gente, de forma mais livre, responsável e empenhada (re)construiu o país, trazendo-o da guerra colonial, do trabalho forçado e dos salários miseráveis na metrópole, para um lugar onde se entrava numa escola com alegria e desejo de transformação, num hospital para ser acolhido de braços ternos e abertos, e seguros e nos locais de trabalho. À paixão triste do medo contrapôs-se , com lutas sociais e colectivas, a paixão alegre da esperança. 50 anos depois devemos celebrar esse tempo para construir o futuro, perceber como podemos, de novo, envolver-nos todos na coisa pública e assim ampliar a nossa liberdade individual e colectiva, a nossa própria humanidade, reconhecermos…em cada esquina um amigo.

Publicado na Revista Somos Livros.

Hoje dá o 4 episódio da série “De Pé Sobre a História” – o mundo do trabalho. Chama-se “O Povo já não tem medo” A Revolução. Logo às 20:30 marcamos encontro na RTP 2, a quem vai descer a avenida, o encontro é já daqui a pouco.