Interdito a Cães e Italianos

Um dos mais belos filmes que vi nestes anos. Entre os melhores. Trata-se de uma animação, para todas as idades, da história da resistência e do trabalho na Europa, através da vida de uma família de italianos que migram para França, desde a colonização italiana no Norte de África até à resistência ao nazismo. Belo, justo, bom. Estarei a comentá-lo, no dia em que vai passar na sala Castelo Lopes, em Lisboa. Coloquem na agenda. 

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Critique Conference 50

No próximo fim de semana decorre em Londres o aniversário da revista mais longeva académica de estudos da história do socialismo. O 50ª aniversário da Critique, Journal of Socialist Studies. Estarei no debate da tarde, a Nova Desordem Mundial, onde falaremos entre outros temas da crítica ao conceito de “sul global”, e defendermos que nas ciências sociais e históricas é mais importante e relevante, pela sua capacidade analítica, o conceito de imperialismo ou de sistema-mundo ou ainda o desenvolvimento desigual e combinado do que o de sul global. Vai ter transmissão online directo.

Critique 50th anniversary conference

Thai lecture Theatre

New Academic Building

London School of Economics

London WC2A 3LJ

10 June 2023, 10.00am – 5.00pm

Admission Free – also on Zoom

Register to attend online

Morning Programme

Time: 10:00 – 10:15

Critique 1973– 2023

Opening remarks

This year’s Critique conference celebrates the journal’s 50th anniversary. Critique’s continued relevance is due to the explanatory power of Marxist analyses in an increasingly complex and opaque global political economy.

Time: 10.15 – 12.00

Title: Back in the USSR

Speaker: Hillel Ticktin

Critique initially made an impact by developing robust theory about the Soviet Union. Its analysis came at a time when the Left was divided by its understanding of the nature of the USSR, relying on pithy slogans such as ‘state capitalism’, ‘degenerated workers state’ or ‘bureaucratic collectivism’. Unlike many of these debates, Critique offered insight based on direct research in Russian within the Soviet Union itself. That direct access, so difficult to gain at the time, afforded a rigour and depth that exposed the weaknesses of the Left’s debates then current. Hillel Ticktin and others will talk about the early issues of Critique, how the analysis of the USSR was developed, why the ‘Russian Question’ was so central to the left at the time and its continuing legacy.

Afternoon programme

Time: 14.00 – 15.15

Title: Russia, China and the war in Ukraine

Speaker: Mick Cox

The collapse of the USSR did not lead to a new liberal order in Russia allied to the West but instead to Putin and a close alliance between Russia and Xi’s China. How did this happen? And what role has the strategic partnership between Moscow and Beijing played in shaping the war In Ukraine?

Time: 15.45 – 17.00

Title: New world disorder

Roundtable

Thirty years ago the West announced it had achieved victory over what it called ‘communism’ and that the world could now look forward to a new international order underwritten by American power and shaped globally by the free market. Today that same order is in deep trouble – from Europe to Africa, Asia to South America. Globalization is in question everywhere and American hegemony faces a possibly more serious challenge from China than anything it faced during the Cold War.

O Trabalho e a Inteligência Artificial

Dia 22 de Junho estarei em Sintra a falar sobre trabalho e Inteligência “artificial” com moderação do Miguel Real, entrada aberta ao público, são bem vindos:

“A Alagamares promove no dia 22 de junho próximo, (5ª feira) pelas 18h, na Biblioteca Municipal de Sintra (Casa Mantero) um encontro com a historiadora e ensaísta Raquel Varela, subordinado ao tema ” O Trabalho e a Inteligência Artificial”, moderado pelo escritor Miguel Real. Entrada Livre.
Raquel Varela é historiadora e professora universitária na Universidade Nova de Lisboa. É coordenadora do SocialData (Nova 4 Globe/Observatório para as Condições de Vida e Trabalho) e investigadora honorária do Instituto Internacional de História Social, Amesterdão. Em 2020, recebeu o Prémio da Associação Ibero-Americana de Comunicação/Universidade de Oviedo, Espanha, pelo contributo para a história global do trabalho e dos movimentos sociais. Em 2020, foi também a primeira distinguida com a bolsa de investigação Simone Veil, Project Europe – Universidade de Munique. Em 2021, foi visiting fellow no Instituto de Estudos Globais Europeus da Universidade de Basileia, Suíça.”

Os Queixinhas e os Directores

Tive professores excelentes, bons, maus, péssimos, gostei de umas cadeiras e de outras não, o mesmo deles em relação a mim como aluna. O que não tive nem contribui nunca foi para um sistema pidesco de mercantilização do conhecimento. Sou de uma geração em que organizávamos greves contra os exames, em favor, por exemplo, de trabalhos de pesquisa, mas na minha casa queixa, desde que me lembro de ser gente é sinónimo de bufo e cobarde, nunca passou pela cabeça dos meus pais permitir que me queixasse de um professor ou que eles o fizessem por mim! Que vergonha. Directores a prestar favores já sabemos, não faltam no mundo. E se não regressa a democracia às universidades o caminho vai ser dramático. Sairão de lá alunos daqui a uns anos depois de ver 500 vídeos, não ler um livro, prontos para irem para o mercado de trabalho apertar botões e obedecer.

O assédio contra os professores universitários, em tempos de transformação digital e ensino-máquina, está aí. Estão a retirar-nos a liberdade de ensino para “adaptar a Universidade ao mercado de trabalho”.

Não, o mais grave na Universidade não é o poder dos catedráticos, é a destruição em curso da autonomia de ensino, ao ponto de termos alunos e gente nas televisões a debater programas de docência de centros de investigação dos quais não sabem nada, uma tropa de choque a lutar contra a liberdade de cátedra. A mão pesada do mercado.

Um país entregue a medíocres e clientes. Talvez sem catedráticos. Certamente com gestores-directores, a dar procedência a queixas que não são mais do que assédio contra professores, e que usarão estas queixas para chegarem aos lugares de gestão, onde ganham mais. Por “milagre” já se sabe os melhores professores, apaixonados por ensinar, críticos, exigentes, receberão mais queixas, os piores, que odeiam alunos, chegarão rapidamente ao topo da direcção onde exercerão o poder usando as queixas como arma.

Quo vadis Liberdade?

O caso do professor de literatura russa da Universidade de Coimbra é um must, imperdível. Despedido por email, sem nunca ter sido ele, colegas, ou alunos contactados ou ouvidos. Tudo o que vem a público é um artigo do Observador (o jornal-partido que em Portugal defende a aliança do PSD com o Chega), de dois auto denominados activistas que colocam um vídeo com 4 anos, ao que parece, e uma foto de um careca, sequer se vê a cara, a olhar para Putin, com uma bolinha vermelha à volta “é ele”. A foto é de 2017…Podia ser de hoje, mas por acaso é antes da guerra. Se fosse de hoje a minha perplexidade será igual. Com base nisto um professor, cujo contrato com a fundação russa já tinha terminado, que fundou um centro de literatura, e que estava, depois de reformado a dar aulas pro bono, é retirado das suas funções. O Reitor da UC acha que não deve explicações depois de tê-lo feito e ter vindo para os jornais a dizer que a “Universidade não tem ideologia. Sempre apoiámos a Ucrânia (…)”. Mais, o Observador orgulha-se de o mesmo ter sido demitido em função do artigo. O Reitor depois de tudo isto diz “não prestar declarações”. Com tudo o que sabemos público até agora, que afecta instituições públicas e direitos liberdades e garantias, estamos com estes dados perante um “saneamento selvagem”. Longe dos plenários e debates de 1974 onde se debatia abertamente, temos uma decisão pessoal do Reitor, e como tal assumida.

Não sei o que é pior. É tudo o fundo do poço. Se a estética de bufaria dos dois “activistas”; se o Observador acusar de propaganda alguém (esta é piada boa); se a imprensa geral noticiar isto sem primeiro ter ouvido todos os envolvidos e só o fazer a posteriori, perdendo toda a noção do que é o jornalismo; se um Reitor fazer isto, com total impunidade perante os pares e a tutela; se o desrespeito total por alunos e professores, bem como pelas instituições democráticas.

Como tantos juntei-me ao abaixo assinado que exige a reintegração do professor. Não o conheço, não sou pró Putin, ele pode ser que está no seu direito, a Universidade não tem nada que apoiar, nem a Rússia nem a Ucrânia, porque recordo o país, nosso, nunca declarou guerra a ninguém, pelos que nenhum instituição está vinculada a esta guerra infinita; os seus professores que apoiem quem quiserem, estão no seu direito, é assim a liberdade de ideias; eu não apoio nenhum dos Estados beligerantes, apoio a solidariedade entre povos russos e ucranianos e nossa, contra todos os Estados em guerra.

Assinalo que não conheço o professor mas um colega meu acabou de deixar público que foi seu aluno, fez um trabalho sobre dissidentes russos na cadeira dele e teve uma óptima nota. Podia não ter tido, que nada mudava, o professor tem autonomia de leccionação, há os mais justos e melhores, outros nem tanto. Como na vida.

O que há em Portugal, isso sim é factual e interpretativo, é uma completa degradação das instituições e da imprensa. A liberdade está em risco. Desde logo a liberdade de ensino, fundadora da Universidade moderna.

Gostava de dizer com toda a minha sinceridade que não sei quem são os cold play. Não sabia que este professor existia. Mas tive que comprar o El País para ter uma lista de todo o investimento europeu – incluindo o de Portugal, com os nossos impostos – em armas.

Lucrai Senhores

Hoje, em frente a montras com prostitutas, em Amesterdão, mulheres, todas migrantes, com um ar embrutecido, grande parte obesas e sem qualquer beleza (se fossem belas, nada mudava, assim é só mais um sinal do cenário económico repugnante), percebi que consigo agora explicar melhor porque sou contra a legalização da prostituição. Entre as montras um cartaz colorido dizia assim “My Body, my business” (o meu corpo, o meu negócio). Grupos de homens, grunhiam nos cafés em frente das montras, não sei se antes se depois de irem “ao negócio”. 
Elas exibidas como Gungunhana – o líder negro capturado pelo exército português no fim do séc. XIX e mostrado ao povo de Lisboa -antes de começar a captura em massa de trabalhadores negros forçados nas colónias, a partir de 1890, o que só vai acabar em 1974 com a revolução.

Explicar e compreender não é o mesmo. Compreender é digamos dominar, explicar é conseguir transmitir. 

Eu escrevi muito sobre este assunto e falei sobre ele mas tinha uma visão moral – e tenho. O sexo deve ser feito com prazer, amor e liberdade, nada disso existe. O “contrato de trabalho” não é uma escolha, é uma necessidade. 

Mas hoje percebi-o pelo sentido do trabalho – com o cartaz e o semblante daquelas mulheres, que um dia foram bebés, bonitas, como todos os bebés, e agora são um espelho da desgraça, desgraçadas, perderam tudo. O que é tudo? Hoje consigo explicar.

Vender o corpo ou o pensamento não é um negócio como outro qualquer. O capitalismo expropria-nos do saber fazer. Um marceneiro deixa de saber pensar um móvel e passa a montar com uma máquina peças; um médico deixa de fazer um bom diagnóstico e passa a apoiar-se no que lhes dizem exclusivamente as máquinas. A pouco e pouco o saber integral desaparece e passa para as máquinas. Os meios de trabalho autónomos vão sendo retirados às pessoas, da terra que era sua, ao consultório, do texto que sabiam interpretar ao barco para pescar.

O ChatGPT, os exames online, os telemóveis, os formulários, tudo isso alimenta a máquina IA, ao mesmo tempo que milhares de pessoas deixam de ser ensinadas e deixam de aprendem a saber ler um texto, explicar e compreender, escrever, pensar, transmitir. O capitalismo vai-nos expropriando do saber e do pensar. 
Milhares ao longo destes 200 anos insistiram em educar-se sabendo que teriam que vender a sua força de trabalho mas pela menos o seu saber era deles, o conhecer, isso ninguém lhes podia roubar, nem na prisão. 

No caso da prostituição tudo foi roubado aquelas mulheres, os seus meios de trabalho (que lhes permitiriam ter um trabalho livre), ao seu pensar, e até finalmente o corpo. Elas foram expropriadas do corpo, não é só o trabalho que vendem, como todos nós. Vendem o corpo. No caso delas foram de tudo expropriadas. E as marcas estão nos corpos, longe do glamour imaginado, da sensualidade, são exibidas como animais. O negócio tirou-lhes o corpo. Foram também expropriadas do pensamento – de quem as dirige politicamente e nelas manda com poder económico – que obriga-as a vender o corpo dizendo aos clientes que são donas do corpo: “o meu corpo, o meu negócio”. 

Imagino que uma das críticas que uma bolha pós moderna fará seja a de ter dito que as mulheres eram gordas e feias. Segundo a polícia das palavras o problema não é serem, é dizer-se que são. Na verdade o dito politicamente correcto não é mais do que uma tentativa de expropriar-nos o pensamento, e com isso deixarmos de retratar a realidade terrível que vivemos. 
O problema não é escrever-se a verdade, são gordas e feias, o problema é ser verdade. É um mundo onde há crianças que nascem bem alimentadas, cuidadas e se tornam bonitas e outras nascem igualzinhas e são tratadas como animais, até perderem a beleza, a auto-estima, o conhecimento, o direito a amar e ser amadas. O problema é condições de trabalho e vida que faz com que mulheres vivam lindas até aos 80 anos e outras estejam destruídas aos 30 anos.

Parece que o Tribunal Constitucional achou o proxenetismo um negócio como outro qualquer, não é crime lucrar – dizem. Porque não enjaular as prostitutas e passeá-las em Lisboa, como há 150 anos com os “pretos” e aumentar o volume de negócios? 
Na altura Portugal dava início ao recurso massivo ao trabalho forçado para alimentar os respeitáveis negócios da burguesia portuguesa que gritava por pautas, protecionismo do Estado e campanhas militares para trabalho quase gratuito em África. O exército “caçava pretos”, para as grandes empresas que aí tinham mercados protegidos. O lema era África é nossa, fazer negócios é bom, lucrar não é crime. 150 anos, com um intervalo de 2 aninhos em 74-75, o lema é o mesmo.

Liberdade Ideológica na Universidade

O Reitor da Universidade de Coimbra – segundo a imprensa – despediu um professor por propaganda russa. Como nós sabemos hoje, ler grande parte da imprensa é um exercício de investigação cuidada. Por exemplo, já se sabe que o professor estava reformado, pelo que não pode ser despedido, também se sabe que o Reitor recusa divulgar os factos, pelo que não se pode afirmar que o motivo foi “propaganda russa”. Ou seja, nem foi despedido nem foi por razões conhecidas. Cheira tudo a agência de comunicação da propaganda ucraniana vertida directamente nos jornais.

Calma, não só não sou “puntinista” como quando houver uma revolução na Rússia contra o Putin espero estar entre os primeiros a colocar-me num avião e celebrá-la em frente do Palácio de Inverno. O mesmo, lamento, para Zellensky, um oligarca que entregou o seu país à guerra eterna da NATO, da Rússia e da China pelo controlo das matérias primas indispensáveis à automação, IA e queda do preço da força de trabalho (preço do trigo). É no eixo Ucrânia, China, Rússia que está a mina de ouro da economia de guerra. Na Ucrânia hoje os homens não podem sair, há apenas um meio de comunicação autorizado, o do governo, e é proibido fazer declarações contra a guerra e a política do governo ucraniano. É uma ditadura. Como é a Russa.

Há quem defenda Putin e há quem defenda Zellensky – estão no seu direito. Eu tenho outra posição – não existem só duas opções e dois lados, um culpado outro vítima – isso é uma explicação para crianças de 4 anos. Há contextos, história, geopolítica. Pode ser-se contra a invasão, eu sou, sem estar ao lado do Estado da Ucrânia. Como fui contra a invasão do Afeganistão e não apoio os talibans – a vida é complexa.

Dito isto não posso deixar de ficar perplexa e nada surpreendida, com as declarações do Reitor da Universidade de Coimbra que, cito os jornais onde ele refere que não haveria “qualquer tipo de transmissão ideológica fosse de que espécie fosse” na Universidade.

Ora, a Universidade é um espaço de ideologias, por inerência. De ideias. O que faz a Universidade ser séria não é a neutralidade ideológica, que é uma mentira, é a objectividade e o compromisso com a verdade. Não é a ausência da ideologia mas o debate livre de ideias e ideologias. Uma Universidade não pode apoiar nem o Estado da Ucrânia nem o Estado Russo, os seus professores podem porém apoiar quem quiserem, incluindo a Rússia. A Universidade como instituição tem que apoiar o debate livre, profundo e sério sobre a guerra e as suas consequências.

Todos os reitores aliás – desconheço o caso concreto – são eleitos por organizações ideológicas e de interesses que se organizam dentro das universidades ligados a estruturas ideológicas (dos partidos, PS e PSD à cabeça, aos partidos de facto como a Opus Dei ou Maçonaria). O que é normal. As sociedades saudáveis organizam-se em interesses e defesa deles. Lamento sempre a fraqueza das ideologias de defesa dos trabalhadores na Universidade, em, defesa por exemplo, da Universidade totalmente gratuita e que regresse a um modelo pré-Bolonha, de uma Universidade que esteja contra as pressões dos Estados e do mercado, mas não posso lamentar – é isso a democracia – que haja organizações que defendem outras ideias e lutem por elas e apoiem reitores. Chama-se democracia.

Tive professores do PCP, do PS, do BE, do MRPP, do PSD e do CDS e fascistas que estavam dentro do PSD e do CDS e na altura disfarçavam. Na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois no ISCTE, e depois em várias universidades pelo mundo. Tive muitos com ideologia, sem filiação partidária, e muitos que pensavam não ter ideologia nenhuma e nos vendiam a tese da “independência” (estes eram os mais desinteressantes). Tirando um caso – fascistas não podem ser permitidos porque são os que querem proibir todos os outros – a ideologia dos professores quando é assumida, o que para mim é um acto de seriedade, não só é inevitável como torna a Universidade um espaço muito mais interessante. Não há Universidade sem liberdade ideológica.

E sim, são tempos sombrios. No Brasil de Bolsonaro inventou-se a “Escola sem partido” – nome para escola sem ideologias. No Portugal de Costa, de Passos Coelho e de Barroso, desde os tempos da guerra ao terrorismo, passando pela pandemia e agora pela guerra da Ucrânia a tendência para impedir o pensamento livre, com discursos fanáticos que sequer permitem debates. Os adversários são catalogados e o debate é assim impedido. O Estado e as instituições ocupam-se cada vez menos de nos prestar serviços públicos e cada vez mais da nossa vida privada e do nosso pensamento. Em 2023 ler que a Universidade “não tem ideologia” é simplesmente absurdo, que o Reitor o expresse é um sinal claro da democracia a esboroar-se. E da luta que vai dentro das Universidades para de facto retirar autonomia a todos os professores fazendo de nós transmissores de ideias pré-assumidas para alimentar o mercado de trabalho, daí que o silêncio dos sindicatos face a estas declarações não seja bom de ouvir.

Dia da Mãe é uma Aldeia

Tive duas prendas do dia da mãe. Um dos meus filhos trocou de curso, naturalmente expliquei que não dou para peditórios de gap year ou qualquer outra forma de lumpenização. Nesses meses sem estudar ele foi trabalhar. Primeiro com resistência, depois compreendendo que era o certo. Viveu a intensidade da restauração, das 10 às meia noite, às vezes à 1 da manhã, e ouviu tantas vezes de todos na cozinha, que nunca tiveram as oportunidades dele “M. volta a estudar, isto não é vida!”. Ontem disse-me – e não tenho como escrever aqui a ternura que ele tem na fala e no olhar, com os seus 2 metros de altura – “não foi um tempo perdido mãe, aprendi muito, sei-me colocar no lugar das pessoas que trabalham nos restaurantes e nos hotéis, e tive tanto desprezo por aquelas pessoas arrogantes que tratam mal quem trabalha”.

O meu outro filho chegou à noite, é distraído, doce, anda sempre noutro universo, às vezes blasé, perguntou se havia alguma coisa para jantar, sem tom algum de exigência, pelo contrário, ele mesmo cozinha mais do que eu, eu estava a ler na sala, intercalando entre 4 livros que sublinhava, à procura de algo, que feliz, ao fim de um par de horas tinha encontrado, disse-lhe com naturalidade que não, tinha outras prioridades. O meu marido lia também. Ele olhou-nos, riu-se com carinho sincero e perguntou-me: “Mãe, preciso de te fazer uma pergunta importante, os meus amigos querem trabalhar por dinheiro, ir para gestão ou outras coisas, para ter um salário para viajar, ninguém fala daquilo com paixão, tu és apaixonada pelo teu trabalho, trabalhas em qualquer lado, como se faz para ser assim, como escolho um curso para ser assim? Não quero trabalhar por dinheiro, quero viajar mas quero ser assim, ter paixão pelo trabalho”.

Tivemos depois uma longa conversa sobre escolhas, dedicação, resistência à frustração, ler, mercado de trabalho – o que o mercado quer de nós e o que nós fazemos contra o mercado. Fiz a minha milésima prédica contra o telemóvel em defesa da leitura atenta e complexa. É dia da mãe, tenho direito a repetir a ladainha, que já faço todos os dias. Na nossa sala não existe TV (só no escritório há acesso a ecrã). Além de eu não passar horas a cozinhar há um lugar colectivo onde somos convidados a conversar. Tudo isso ajuda a que nos encontremos.

Nunca fiz proselitismo com filhos. Nem com ninguém. Sou socialista romântica, a revolução é a transformação densa da humanidade, a liberdade e a igualdade são o azimute da minha vida. Só quem domina a política e o Estado passa a vida a ensinar aos outros que não devem preocupar-se com a política. Essa ideologia da não-ideologia é um ar do tempo. Mas não sou de sermões. Para ninguém. Lamento a despolitizarão, mas eles que façam o que quiserem da vida. Só faz sentido falar de política a quem se interessa pela política, se não é uma missa.

Porém, ontem disseram-me duas coisas profundamente humanas e radicalmente marxistas: a importância de saber distinguir classes sociais e de que lado estamos; e a centralidade do prazer no trabalho contra o trabalho alienado. O humanismo radical destas duas ideias fez o meu dia da mãe ter mais sentido.

Há muita gente que aos 60 anos (e as organizações de trabalhadores também!) ainda não compreendeu que nós temos uma classe social, e que o salário é necessário, mas ser apaixonado pelo trabalho é tão vital como receber e pagar contas. As reivindicações não podem passar só por salários, tem que se debater o sentido do trabalho. A maior das pessoas faz o que não gosta e o que não tem utilidade social. Mas dá lucro, serve o Estado e o mercado. Mas isso é autodestrutivo, não só do planeta, sobretudo destrói as pessoas. Na realidade a ideia marxista é mais radical: devíamos todos trabalhar com paixão, e o salário não devia existir porque os meios para trabalharmos seriam colectivos. É a minha. Trabalhar por um salário é uma pena que se leva às costas, até dobrá-las e nos fazer o que não somos.

Resta-me só uma nota final. Não sou a melhor mãe do mundo, deixo esse lugar para a minha e a de cada um. Mas fico feliz de os ver ser decentes, fazer perguntas importantes, resta-me insistir que o mérito não é meu. Para criar filhos é preciso uma aldeia – tiveram uma aldeia, pai e padrasto, avós, ama, tia, tudo no mesmo bairro!, amigos nossos, amigos deles, fantásticos, um grupo de miúdos maravilhosos, fomos todos e todos juntos, os meus filhos foram educados por uma aldeia. Talvez nisso eu tenha grandes responsabilidades – em ter percebido muito cedo que nada faz sentido sozinha, muito menos ser mãe.

É roubo, pois claro

Agora já todos sabemos porque nos pediram para sermos avaliados em artigos científicos online em acesso livre e porque isso conta muito mais do que dar aulas. São o alimento gratuito do ChatGPT. A inteligência artificial é um bom nome para o nosso trabalho ser despejado gratuitamente numa bimby que vai vender softwares de IA e pagar zero a nós, seus autores, em direitos. Não deixa de ser divertido ver a lata com que os defensores do statuos quo, que acham a propriedade dos banqueiros inviolável, acharem normalíssimo uma máquina engolir os nossos textos gratuitamente e a seguir vendê-los às postas.

Declaração de interesses: o que mais me preocupa na IA não é o roubo e o plágio do nosso trabalho (que deveria envergonhar os donos da bigtech e os governos que os aplaudem). O que mais me choca ainda é que isso vai prejudicar o acesso dos alunos e de todas as gerações ao conhecimento. Conhecer é compreender, apropiar-se para si de um saber. Não é repetir ou colar.

Aos liberais deste mundo fica a nota: o socialismo (nada a ver com o PS) que defendo é a produção colectiva e cooperativa para expandir o saber dos indivíduos e a sua liberdade.

O capitalismo é a apropriação privada da produção colectiva. Ainda por cima faz lucros produzindo ignorantes, padronizando os indivíudos, vendendo gato por lebre, a pessoas que vão a pouco e pouco perdendo a liberdade. E perdem o mais importante – saber re(conhecer) o que é a liberdade.

Assistencialismo, Pecado e Punição

O assistencialismo de que a esquerda fez sua bandeira – em vez de direitos (desde logo o direito ao trabalho em vez do direito ao subsídio de desemprego) levou a um olhar novo. Para grande parte da esquerda os trabalhadores não são seres complexos, mas planos, vítimas, nunca cúmplices, ou carrascos, sem possibilidade de transformação. Há para aí cartazes e panfletos de esquerda a pedir prisão para estes e aqueles, vigilância, denúncias, e creio que a maioria ficará a assistir a comissões de inquérito como uma série televisiva, esquecendo as grandes opções do capitalismo da Europa do pós -guerra que assentam na usura e na expulsão da força de trabalho. Mas, como tudo isto parece longe o melhor é mais uma comissão de inquérito, um processo. Tudo acaba no poço sem fundo dos tribunais, e nos media, que fazem as vezes destes num colapso moral generalizado. A sensação é que alguns editores de jornais foram buscar as caixas de comentários e fazem deles títulos dos mesmos. É uma lama infindável.

Ao não colocar na agenda um horizonte de transformação a esquerda coloca-se do lado do Estado a pedir clemência e punição. Nada mais. O contraste com o movimento operário do século XIX e os intelectuais de esquerda de então é atroz. Aí as condições de vida geravam, dizia-se, sem medo, uma completa degradação moral dos trabalhadores (e dos burgueses) que só podia ser vencida no campo das lutas coletivas.

Os partidos de esquerda hoje em grade medida são fracções de grupos de interesses pequenos, cujo objetivo permanente é ganhar espaço para o seu grupo, sem qualquer horizonte de transformação social. Degladiam-se por quotas e palavras, o horizonte comum é uma soma de subjectividades. Onde, sem qualquer surpresa o numero de oportunistas é já imparável. Os “pequenos processos de Moscovo”, os silêncios, os medos, cada pessoa hoje na sociedade, e nos partidos de esquerda, tem que olhar pelas costas a ver o camarada que vai dar a facada em defesa do seu grupo oprimido.

Para quem achava que os sindicatos eram uma quimera já que seriam sempre transformados em burocracia sindical, reproduzindo elites (o que em parte foi verdade no pacto social), o que dizer dos movimentos identitários dentro da esquerda, hoje, na sua maioria, fracções organizadas de poder, que deixam nos métodos espúrios qualquer dirigente sindical burocrata da velha guarda como um menino aprendiz.

Descansem os meus amigos e leitores de direita: as ideias de direita governam o mundo há 200 anos, e o resultado está aí. A concorrência é a mãe da catástrofe social. A concorrência trouxe mais Estado, mais autoritarismo, mais barbárie, mais guerra. E um total empobrecimento da criatividade e do indivíduo – hoje um miserável à procura de emprego ou de não o perder. A direita, em que vivemos há 200 anos, acredita na desigualdade natural, eu não. Porque a história foi implacável com o capitalismo. É um sistema de terror organizado que nos coloca sistematicamente a vida em risco, do desemprego à guerra.

Mas a mim interessam-me mais os erros da esquerda sempre a apelar ao Estado, ao assistencialismo, à punição, à vigilância, e até a novas formas de pecado. Não posso deixar hoje de ouvir a maioria dos “activistas” de esquerda e pensar nas semelhanças que têm com a doutrina social da igreja. Já há quem defenda que “em nome das vítimas” devem os empregadores decidir como adultos de 18 anos têm relações (caso do artigo de Susana Peralta no Público). É uma espécie de direito de pernada ao contrário.

Aqui um pedaço de uma esquerda que já o foi, pela voz do escritor anarquista Campos Lima (mas qualquer socialista do XIX diria o mesmo), advogado de presos por “delito de opinião”, expulso de Coimbra na greve de 1907 contra a ditadura de João Franco:

“ (…) o problema social não é unicamente uma questão de estômago. Ele contende com todas as grandes manifestações sociais. Em todas elas há que destruir e remodelar. A vida, desde o primeiro impulso instintivo até às maravilhosas vibrações de uma consciência para um ideal, é no momento presente uma coisa dolorosa e amargurada. Viver é ser-se continuamente contrariado nas mais justas e legitimas aspirações, ver tombar os sonhos mais queridos, contrafazer os impulsos generosos do nosso corações, sofrer a luta egoísta dos interesses e quantas vezes sucumbir miseravelmente numa transigência desonesta e vergonhosa” .

No fundo o que ele queria dizer é uma ideia de esquerda profunda. Maravilhosa. Os comportamentos individuais das pessoas são, salvo muito raras excepções, de gente que rema com risco contra a corrente, asquerosos, sejam de esquerda ou de direita, enquanto existir a luta de todos contra todos. O remédio é organizar politicamente ou sucumbir eticamente. Sem um programa socialista de transformação para o bem comum, vai continuar o elogio da subalternidade, que não devem comer ostras e devem casar só com quem o patrão diz. E claro, sempre com uma caixinha de denúncias onde todos os oportunistas poderão largar o seu ressentimento garantindo um tribunal para cada pessoa e um polícia ao lado de cada um. Para, se me permitem a inspiração anarquista, que o Santo Estado nunca nos falte e haja sempre uma comissão de inquérito para expiar pecados da TAP ao BES. Amém.

Já não é só de estômago, a crise.