A minha pátria é a humanidade

A pátria é o lugar que escolhemos para lutar pela humanidade, penso que foi Brecht, dramaturgo alemão, refugiado em fuga à guerra, que o disse. Eu sou muito portuguesa. Cada vez mais: gosto da língua de vogais mudas, da luz, das tascas, do cheiro dos tojos dos pinhais da minha infância, de oregãos e hortelã da ribeira, como miolos com laranja e cabeça de peixe, gosto da serenidade do Alentejo e da imponência dos socalcos do Douro, do pragmatismo dos camponeses do Oeste e da contida alegria dos intelectuais com quem partilho este “ser português”. Mas a minha pátria é a humanidade. Como tudo na vida o acolhimento dos refugiados tem que ser feito de forma decente, em segurança , com condições. Mas voltar-lhes as costas é desistirmos da humanidade.

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Cardápio da pátria lusa

Uma vez que o meu facebook se encheu de comentários xenófobos contra refugiados e outros ofensivos da minha pessoa, em pessoa pessoalmente, como dizia o Cataré, o telefonista ignorante do grande comissário Montalbano, do escritor siciliano Camilleri, deixam-me hoje partilhar convosco não uma pedaço da história de um mundo feito de guerras e refugiados, de migrações e solidariedades, de conflitos e cooperação, de escolhas, portanto, mas o negócio possível para salvar a pátria lusitana, intacta, branca, cristã, ou não sejamos nós 15 milhões – 5 milhões espalhados pelo mundo.

Trocamos:
Passos Coelho e os 400 mil imigrantes forçados do seu governo por 20 sirios;
Se levarem Passo e Portas e os negócios de submarinos com investidores alemães juntos, subimos a parada para 50 sírios;
Se levarem António Mexia e os seus investidores chineses, 100 sírios – a EDP não vale menos;
O Grupo Melo nos Hospitais privados e os seus capitais alemães que têm destruído o SNS português 200 sírios;
Pires de Lima, a TAP e os investidores americanos e brasileiros que a compraram, com a dívida garantida pelos contribuintes portugueses, 250 sírios;
Se tirarem do país Américo Amorim e os investidores estrangeiros da Galp, não vale menos de 300 sírios – a gasolina a preços comportáveis não é para qualquer um;
O português Luís Amado e os capitais do ditador Guiné 300 sírios. E, claro, o dinheiro da recapitalização do BANIF de regresso ao bolso dos portugueses.
Zeinal Bava e os investidores franceses da Altice, 400 sírios – queremos a PT de volta, é nossa, branca, lusitana!
Família Espítiro Santo e os investidores chineses, 500 sírios. Só o cristão rentista Ricardo Salgado vale pelo menos 100 muçulmanos trabalhadores;
Se ainda tiverem espaço na mala e defendenderem com unhas e dentes a pátria de Camões, a raça pura que nos une, levem Cavaco Silva – trocamos por 1000 sírios.
Se continuarmos a trocar todos os portugueses de raça, cristãos, brancos que venderam este país por sírios ainda acabamos a descobrir que Portugal existe. E é nosso. No meio do caminho ajudamos famílias que fugiram a uma guerra. Com um negócio destes ainda há cidadãos a ofender-me?

Agora, um segundo sério. Digam-me lá, assim, com coragem, olhos nos olhos, quem é que tem feito mais por este país: eu, que fiz milhares de km a fazer 3 centenas de palestras em 2 anos a defender os bens públicos do país, e fi-lo gratuitamente, e que hoje defendo receber refugiados de guerra? Ou vocês, que aqui vêm explicar-me como se defende a pátria e dar-me lições de história? Tenham vergonha! Como o Cataré – vergonha em pessoa pessoalmente.

O parasitismo privado Estatal

Ontem coloquei aqui os números reais da falência das start ups – 97%. Dívidas, dívidas e mais dívidas – é o que têm os empreendedores neste país. A ideologia de quem despede 1 milhão e meio de pessoas, asfixia com impostos as pequenas empresas e depois as manda fazer uma empresa para se endividarem à Banca. É isso o empreendedorismo. A maioria das pessoas reagiu contando a sua história e dando exemplos de como foram asfixiados por ter caído nesse conto do vigário, que as TVs insistem em passar como medida contra o desemprego.
Mas dois ou três empreendedores, donos de empresas, que me dei ao trabalho de verificar que são empresas de formação profissional ou economia social que vivem de financiamentos públicos e especializadas em colocar estagiários não remunerados ou pagos pelos fundos públicos portugueses ou europeus em empresas privadas, contribuindo assim para a maior pressão e queda sobre os salários, vieram indignados dizer que o empreendedorismo é fruto de uma sociedade livre, onde se pode escolher. Já o pleno emprego seria o inverso. Vou ser didáctica, evitando o mais possível o sarcasmo com a ideia de que vivemos numa “sociedade livre”, já que colocar 1 milhão de pessoas e meio no desemprego, 2 milhões no terror da precariedade e 400 mil no exílio, na imigração forçada não é propriamente um campo de flores sem arame farpado. É a definição mais próxima de prisão em que tivemos a força de trabalho nas últimas 4 décadas – uns forçados à real perda de cidadania e família na imigração; 1 milhão e meio presos em casa, apresentando-se para termo de identidade e residência de 15 em 15 dias no centro de emprego e 2 milhões de precários que vivem aterrorizados de perder o emprego. Livre de deixar falir o restaurante com 23% de IVA e perder o negócio de uma vida; livre de não atender um doente porque o médico tem 15 minutos vigiados para o fazer; livre, como os agricultores do oeste ou os lavradores do Douro, de vender ao Continente ou a uma casa exportadora de vinhos uva e alfaces a preços de custo ou abaixo deste.
Se há coisa que este Governo, e os anteriores, fizeram, foi fazer do viver-do-trabalho um drama – em Portugal quem vive-do-trabalho não vive, é espoliado pelos cortes para transferir para quem vive destas empresas de sucesso, sucesso à conta do Estado – privadas sim, mas com dinheiros públicos. O nosso dinheiro é a festa destes parasitas, cujo a ideia inovadora foi dedicarem-se a preencher papeis 14 horas por dia para ganhar concursos em que gerem estes dinheiros públicos – o que é isto perto de um médico, de um motorista de transportes, de um cientista, de um professor…
Não é fácil gerir, nem nunca será em nenhum modo de produção, uma força de trabalho. Como as pessoas trabalham bem é uma grande pergunta cujas respostas nos devem mover – uma sociedade deve produzir bem e saber como fazê-lo é uma arte, que a pouco e pouco vamos desvendando. Mas o pleno emprego, não só como direito à vida – e esse é inquestionável – , mas como produção correcta da riqueza é, até hoje, o melhor sistema desde logo porque é o mais justo – todos devem contribuir para a produção da sociedade e todos devem poder viver do trabalho sem esmolas; também porque as boas condições laborais aumentam a produtividade; e, não menos importante, porque é o modelo mais produtivo e com mais escolha – no pleno emprego, com leis correctas, há escolha, as pessoas podem mudar de um trabalho para outro, ou ser forçadas a mudar com limites bem definidos, para onde são melhores e/ou mais felizes, em vez de fazerem cada vez mais desmoralizadas e com menos produtividade o que fazem porque têm medo de não ter outro emprego.
Liberdade de escolha, neste Estado fiscal totalitário, com 47% de pobreza e os sectores médios asfixiados, é conceito que por pudor devem os empreendedores abster-se de usar porque nós, os defensores do pleno emprego, damos lições sobre liberdade de olhos fechados aos parasitismo e rentismo privado de dinheiros públicos, rentismo que é cada vez mais sinónimo da palavra Estado.

Organizem-se! Organizem-se! E não deixem!

7 anos certos – o ciclo industrial, a nova crise cíclica. Disse-o pelo menos 20 vezes na TV e outras tantas em artigos este ano, disse-o ao lado de quem, a maioria dos comentadores, falava de crescimento do PIB, como se isso medisse a riqueza ou a estabilidade da produção. Mas foi na base da mitologia do “estamos a sair da crise” que o Governo disse que vai tudo melhorar, o PS disse que vai criar emprego e a oposição de esquerda mantém a defesa da negociação e não do confronto político de base – a ponte que a CGTP nunca passou foi um tractor sobre os salários; a falta de reacção dos pequenos empresários esmagou as duas cidades maiores do país, transformadas em parques de diversões de turistas, que a nova crise vai tirar daqui mais rápido do que colocou. É assim um país que vive de hostels e não de educação para formar médicos e saúde; vive de estradas e não de ciência pública; vive de desemprego e remuneração de títulos e não de produção de bens e riqueza colectiva. Disse que ia acontecer entre o último semestre de 2015 e o 1º de 2016, deixei-o, com essas datas, escrito em livro. Ei-la, com todos os tormentos, desafios e também oportunidades para reagir socialmente à barbárie. Não sou cartomante, não é esse o meu dom, é outro, tive a coragem de escolher estar ao lado dos mais corajosos, que se recusaram a ler os manuais de gestão MBA altamente bem classificados das nossas melhores universidades – não sobra pedra sobre pedra dessa ideologia de Estado oficial, o liberalismo – , as barbaridades deterministas da URSS, as fantasias keynesianas que a esquerda abraça. Fiquei ao lado, aprendi, estudei, sou grata, aos que estudaram há décadas o funcionamento da economia pelo Capital de Marx e toda a tradição livre, herética, do marxismo critico, não amarrado a nenhum Estado – ei-lo, de novo, em páginas abertas, na experiência dolorosa dos cataclismas sociais. Desta vez, e da outra, e da outra antes e da outra antes dessa – 2008, 2001… há 200 anos que andamos a dizer que a queda tendencial da taxa de lucro é a lei da gravidade da economia. E a crise não é problema algum para quem como nós não detém titulos. As medidas para sair da crise são um drama porém: cortar salários, reformas, destruir o Estado Social para remunerar estes capitais é que é o problema – e aí a questão passa de objectivamente económica a politica. É a economia política e a teoria das revoluções sociais. Nem por acaso hoje estarei na abertura de uma conferência internacional na UFF, no Rio de Janeiro, onde o tema é este, crises e insurreições. Organizem-se!Organizem-se! Organizem-se! dizia o discurso famoso de um líder cartista, os pais da democracia na Inglaterra do século XIX. Porque vem aí um tsunami de sabotagem da produção, dos que hoje perderam nas bolsas milhões, e usando o seu Estado vão pela dívida ou destruição dos serviços públicos elevar o desemprego para cortar na massa salarial. Será, se deixarmos, a “saída da crise”. Organizem-se! Organizem-se! E não deixem!

“Vai trabalhar malandro!”

Ricardo Salgado está em prisão domiciliária. Junta-se assim a 1 milhão e meio de desempregados, que não roubaram ninguém, mas foram despedidos para Salgado “sair da crise”. Espíritos Santos em casa não fazem milagres – enquanto os activos não forem confiscados, e as dívidas continuarem a ser nacionalizadas, os desempregados vão continuar em prisão domiciliária, tendo milhares deles de se apresentar para termo de identidade, residência e humilhação de 15 em 15 dias no centro de (des)emprego. Não vão gratuitamente no carro da polícia como Salgado mas de transporte público, entretanto privatizado para “honrar as dívidas dos mercados”. Supomos que Salgado não será obrigado a frequentar um curso de “empreendedorismo”, “barman” ou “inglês”- são os cursos que o IEPF, sempre a cuidar de um futuro sólido, costuma oferecer a trabalhadores despedidos aos 50 anos de idade. A realidade neste país é sempre mais dinâmica do que a imaginação. Se tivéssemos um Fellini a esta hora já havia uma comédia em cena com uma visão moderna do operário escanzelado – porventura hoje com sobrepeso e angustiantemente deprimido – em cima de uma árvore em frente da casa de Salgado gritando compulsivamente, em desespero, não o clássico “Voglio una Donna!”, mas um rouco “Vai trabalhar malandro!”.

 

Camões anda de Metro

Em mais um dia de greve contra a privatização do Metro, em forma de parceria público-privada, escreveu-me um cidadão de Trás-os-Montes lamentando “pagar o Metro de Lisboa com os seus impostos”. Por azar o exemplo não podia ser pior. Trás-os-Montes, terra que eu adoro – da comida nem falo porque sou capaz, se posso, de desviar caminho 100 km para comer uma posta barrosã -, fica, como o nome diz, para trás dos montes, ou do sol posto…onde judas perdeu as botas. Cada estrada que lá chega, cada electricidade cintilante, cada fio de comunicação, tem um custo gigante de impostos para todos os cidadãos deste país, e estes custos permitem por exemplo aos agricultores locais exportarem as suas castanhas, azeite, etc.. Esse custo recai sobretudo para os que estão nas cidades e no litoral, que são os que mais pagam, dado que o número de habitantes e pagadores de impostos nessa região é muito reduzido. Atenção, transmontanos, que eu sou a favor que os paguemos! Não só pela defesa incondicional da alheira de Mirandela mas porque tem que haver uma gestão correcta e harmoniosa do território, que implica pagar para não ter o interior isolado, implica pagar para ter uma relação cuidada cidade-campo. Implica por exemplo, ter maternidades deficitárias e, em troco disso, pagar uns euritos para o Metro de Lisboa ser público e a cidade de Lisboa funcionar bem, permitindo por exemplo, escoar produtos agrícolas de Trás-os-Montes. Pagamos e devemos pagar mais do que os Transmontanos para Trás-os-Montes. O que não aceito, nem sob tortura de nunca mais na vida comer uma sopa de castanhas com presunto em Bragança, e depois ir passear letárgico à volta do Castelo enquanto conversamos mais uma hora sobre a sopa que acabámos de comer (os portugueses têm como tema de conversa depois do jantar o conteúdo do próprio jantar, já se sabe), é que depois se venham lamentar que pagam o Metro ou a Carris em Lisboa. Porque o território e o bem estar é de todos nós. Como Camões é nosso, do Algarve ao Minho: “Porque, saindo a gente descuidada, Cairão facilmente na cilada”(Lusíadas). Longa vida a Trás-os-Montes e aos transportes públicos de Lisboa!

A Verdade é Saudável

Acabo de ouvir Passos Coelho no Parlamento dizer que, «pese embora as dificuldades no SNS aumentámos as transferências, há mais médicos, mais camas, mais actos praticados». Não é sério nem para levar a sério. Aumentaram as transferências para o SNS mas deste saiu mais dinheiro para os hospitais privados, atinge já hoje 40% do financiamento directo destes hospitais; o número de médicos formados com alta qualificação mais velhos tem abandonado o SNS e têm sido substituídos por médicos mais jovens, com menos experiência, que ganham menos, a desmoralização destes profissionais de saúde é óbvia e a prova disso é a demissão em massa de norte a sul do país das direcções clínicas dos hospitais que se demitem, sem excepção, alegando não ter meios para tratar os doentes; o número de consultas aumentou porque diminui o tempo que cada médico está com o seu doente. Passos Coelho é o responsável de um SNS onde há 2 semanas um doente para ser tratado humilhou-se me frente das câmaras de TV e, recordo-o, ameaçou o ministro de saúde em directo na TV. Hoje, a presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH) disse “esperar que a demissão de directores nos hospitais não se transforme numa nova forma de gestão hospitalar”. Numa metáfora, Passos Coelho é o primeiro-ministro de um país que considera um sucesso resolver as avarias de um carro mandando o carro por um precipício abaixo.
Aqui o quadro verdadeiro do número de consultas/médicos (Quem Paga o Estado Social em Portugal? coord. Varela, Raquel, Lisboa, Bertrand).

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Feliz 2015

O que seria essencial em 2015, tenho-me perguntado. Um dia aqui pelo facebook troquei uma conversa de admiração, mutúa e sentida, com um psiquiatra muito conhecido no nosso país, que eu conhecia de um livro, irónico e denso, seu. Quando a conversa entrou na alma humana ele disse-me “bom, deixo-a a trabalhar que tem coisas mais importantes para fazer”. Repliquei que a única coisa importante na conversa era mesmo a alma humana…De lá para cá, talvez há 3 meses, pensei muitas vezes nesta conversa. Foi o Estado Social, erguido da resistência colectiva à II Guerra Mundial na Europa, e em Portugal da revolução dos cravos – processos gregários e colectivos – que nasceu o espaço fundamental para o indivíduo. Essa segurança permitiu a muitos um grito de liberdade raro na história do século XX: escolhas mais amplas, mais seguras, e por isso mais ousadas. Nós e o mundo andámos para a frente quando aceitámos o desconhecido, o novo. Saltámos alto porque por baixo havia uma rede. A muitos, nesta segunda metade do século XX, isso permitiu uma construção inédita de descobertas científicas, literárias, experiências afectivas densas, de criação artística. Muita gente caiu fora da rede, mas muitos outros chegaram onde não sabiam ser possível. A defesa do Estado Social é a defesa da verdade, cuidada, das contas públicas, que com seriedade pode e deve ser contabilizada ao cêntimo. Mas é mais do que isso, é a “alma”, a dignidade colectiva reconhecida para que possam entrar no reino da liberdade. É ter mais medo de ficar com o conhecido do que abrir a porta do desconhecido, ou seja, numa palavra, maltratada mas lindíssima, é o progresso.
Roubei a imagem, de uma beleza que não saberia colocar em palavras, ao José Gameiro, mecânico especializado da manutenção do metropolitano de Lisboa, há mais de 30 anos. No seu facebook, que vejo todos os dias, por cada luta social que ele divulga, por cada denúncia do despudor governativo com a coisa pública, por cada grito de ética que dá, ele põe em triplo imagens, palavras e sons de paixão, beleza, amor, afecto, verdades e mentiras dos meandros complexos da essência humana. Acrescento-lhe um pedaço de Ovídio – que outro poeta para a passagem de ano, justa noite de excessos, poderíamos evocar? -, aqui pelo filósofo Leandro Konder, em jeito de homenagem ao mesmo Konder, que morreu neste ano que finda, e desejando assim a todos vós um feliz 2015, um 2015 em que o acessório, a sobrevivência, seja garantida, para que todos nos possamos dedicar ao essencial, que acho que é irmos além de nós, como indivíduos e como sociedade.
“Ele sentia um fascínio, uma sensação de arrebatamento, quando via o corpo de sua namorada, Corina. Aos que lhe cobravam maior amplitude temática, e achavam que devia evocar as grandes personalidades do passado, ele respondia que, de facto, poderia cantar Tebas e Troia, os grandes feitos históricos de Júlio César, mas “foi só Corina que me incitou à poesia”.
Feliz ano novo, a todos.

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Uma outra Europa

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Escolho-a como foto do ano. Julie é estivadora, dirigente sindical, no norte da Noruega no porto de Fellesforbundet, Tromsoe. Tirou esta foto esta semana, com 5 graus negativos, para mandar em solidariedade para os estivadores do porto do Pireu, na Grécia, privatizado e controlado por uma empresa chinesa, e onde não há, hoje, no século XXI, nesse pedaço da Europa, em Atenas, junto ao mar, liberdade sindical, porque os empresários chineses que controlam essa parte do porto, vendida pelo governo grego, proibiram os sindicatos, de facto. Vejo a foto da Julie, forte, corajosa e de sorriso delicado, e penso como uma imagem faz cair por terra tanto. Faz cair o chauvinismo norte-sul. Faz mais pela igualdade de género do que mil arrobas a atrapalhar a escrita. É também uma imagem de liberdade, porque carregada de sedução, sem medo. Da Noruega para a Grécia, de uma jovem dirigente sindical livre para velhos estivadores acossados pelo despotismo patronal, de uma mulher para os homens do porto de Pireu. É toda uma outra ideia de Europa.

Economia Pararela e Perpendicular

Como as palavras ganham vida própria. Foi hoje noticiado, com indignação, que há em Portugal uma economia paralela equivalente a 26% do PIB. Economia paralela, inclui, dizem, economia ilegal (droga por exemplo), economia oculta (fuga aos impostos), economia informal (cabeleireira do meu bairro e pescadores pobres da costa) e ainda, que país inventivo este nosso, agricultura e produção de subsistência – portanto, caros, o traficante de droga, o pescador e os tomates biológicos do meu pai, que desonradamente comemos sem “passar pelo mercado”, faz tudo parte do…mesmo. Pergunto-me, curiosidade apenas, se a economia legal que faz com que o SNS financie os hospitais privados; com que a Segurança Social pague salários nas empresas; com que a educação pública sustente colégios privados e com que o dinheiro de todos nós lance o bote salva-vidas aos banqueiros, para que estes não percam o valor das suas acções, essa economia, uma vez que cruza o público com o privado, pode ser chamada de perpendicular?Ec

A II Guerra Mundial e a actual crise económica

A História da II Guerra Mundial, em acesso livre, da autoria do historiador Osvaldo Coggiola, da Universidade de São Paulo. Destaco, como no livro anterior do autor que aqui partilhei, que esta é a melhor história geral das causas e consequências da guerra – entre as que li, naturalmente. Duas notas muito importantes: as medidas keynesianas de Roosevelt não reverteram a não ser de forma muito parcial, durante 2 curtos anos,  a crise de 29 – foi outro keynesianisno, o militarismo, que fez retornar aos EUA uma pujante taxa média de lucro; o nazismo não resultou da ausência de apoio aos partidos liberais mas justamente de ausência de apoio, por parte da URSS e da social-democracia, aos projectos revolucionários da década de 30. Em acesso livre aquiOC Segunda Guerra Mundial-2

Papeletas da Ladroeira

Um dia destes passamos ali por Torres Vedras, para ir comer um bacalhau assado ao oeste, e como a Câmara está falida, entregamos um euro; no Domingo seguinte vamos caminhar com os miúdos para à Arrábida e mais 2 euros para o Parque Natural, crianças têm 50% de desconto – conservação da estrada sabe?; quem quer em alternativa ir a Sintra, paga 3 euros – é património mundial, compreende?. António Costa, aliás, o PS, o PSD e o CDS, estão desde o início dos anos 90 a utilizar os impostos para remunerar os capitais e, todos os serviços que deviam ser pagos pela caixa comum dos impostos, são pagos de facto com taxas, que há dezenas, porventura centenas em tudo o que pagamos todos os dias. São em tudo idênticas às taxas medievais que foram abolidas no tempo do capitalismo progressivo que, e bem, no século XIX – aliás, bem é como quem diz, foi mesmo com uma guerra civil – acabou com os parasitas que viviam à conta das taxas e taxinhas. Dizem-me que agora é para o Estado e não para os privados. Mentira: como os privados, um grupo de senhores feudais modernos, ficam com o dinheiro dos nossos impostos, as taxas substituem-se. E a esquerda social democrata que apoia António Costa só sabe gritar que Passos Coelho é pior, tipo gosto mais que me batam com chicote do que com cinto.

Na revolta da Maria da Fonte chamavam a este saque todo “papeletas da ladroeira”. Havia gente séria lá no Minho. Espero lá ir comer cabrito com arroz de feijão, com um vinho verde e um pudim de abade de priscos – que já tem menos sabor por causa dos 23% de IVA, portagens na auto-estrada, impostos na gasolina…-, e não ter que pagar portagem ao Marquês de Amorim ou ao Conde Champalimaud, mesmo que seja um eurozito, ali à entrada de Viana. Já dizia o velho provérbio popular do século XIX quando mercenários, criminosos fugidos, contrabandistas, pegaram em espadas para ficar com os bens nacionais e aí foi-lhes dada terra roubada e um título que vigora até hoje na Quinta da Marinha, século em que começaram a formar os chamados “grandes grupos económicos”, famílias de “grande tradição e história”: «Foge cão, que te fazem barão! Para onde se me fazem conde?».

 

PS: esclarecimento, usei o exemplo de Torres Vedras (não sei se está ou não falida como a CML), e outros metaforicamente

A “pátria nacional do Capital”

Nada contribuiu tanto para o descrédito do marxismo como a sua interpretação ter ficado na mão de aparatos fiéis à URSS numa versão dogmática e mecânica que nada tem a ver com a obra de Marx. A frase o capital não tem pátria – que até o Jornal de Negócios cita! – nunca quis dizer que o poder dos Estados se tinha diluído num qualquer poder multinacional. Não era para dizer que as empresas não tinham o seu Estado mas que estavam dispostas a acumular em qualquer parte do mundo. Empresas chinesas, norte-americanas, alemãs, portuguesas são e continuam a ser empresas nacionais – as grandes e as pequenas filiais – mas acumulam em qualquer pedaço do mundo ou, se possível, em Marte. Cada empresa é rigorosamente controlada e protegida pelo seu Estado, se necessário, com exércitos na frente. E nem sequer é necessário terem a maioria do capital para serem nacionais de um país. As chinesas são chinesas e quando chegar a hora de uma nova crise cíclica norte-americana vêm cá buscar o capital, que não lhes vai também servir de nada porque os EUA vão deixar a China – que toda a gente apregoa como um novo poder – de rastos porque essa lei extraordinária que todos os escribas de economia ignoram olimpicamente, e por isso não conseguem explicar nada, a da queda tendencial da taxa de lucro, actua, quer gostem quer não – os custos com o trabalho na China estão, como se sabia, a subir vertiginosamente e a acumulação na China é baseada nisso, na exploração da força de trabalho física e uma pequena subida desses custos implica a implosão do modelo de acumulação chinês. A única notícia boa será, se se concretizar, uma revolta massiva do maior exército de trabalhadores do mundo. Pode ser que a aí, os da Europa, acordem.
Última nota rápida – não existe dinheiro em paraísos fiscais: os paraísos fiscais não têm lá dinheiro parado, são uma forma de fuga aos impostos mas o dinheiro não está lá, está investido em empresas, com quotas nacionais claras, chamadas de multinacionais, títulos da dívida pública e fundos de pensões de empresas, todas elas com passaporte. A mesma empresa que foge daqui para um paraíso fiscal no mesmo dia investe esse valor em títulos da dívida pública aqui, cuja remuneração bem sucedida depende de cortar mais salários e despedir mais funcionários públicos.
O assunto é sério – anda-se há muito tempo a lutar contra poderes imaginários para desculpar a inércia e a cobardia interna. A EDP, capitalizada pela população enquanto empresa pública e a seguir privatizada, por exemplo, não é um problema chinês, é um problema de falta de força política para expropriar a sua propriedade, aqui, a alguns metros de nós, e não num paraíso. É uma questão de luta contra o Estado português, que é o guardião destes negócios. Pedir ao Estado para regular tudo isto é pedir ao lobo para guardar as ovelhas. E, pior, é não ver que o país está a ser literalmente destruído.
Um dos grandes académicos argentinos fez este livro, Atilio Borón, aqui em acesso livre, onde põe em causa toda a teoria de Negri sobre o Império, em que este argumenta a suposta diluição do poder dos Estados e a famosa teoria do “capital sem Estado”, um absurdo, mas como muitos outras teorias sem chão, dominante na comunicação social e relativamente forte na academia.

Ler também sobre este tema Raça Empreendedora de Raquel Varela e Para que servem as “lojas chinesas” à República Popular da China? de Renato Guedes

http://lahistoriadeldia.wordpress.com/2009/11/12/atilio-a-boron-imperio-imperialismo-descargar-libro/

A Borrifar Bactérias

Pedir aos enfermeiros para desconvocar a greve porque há um surto de legionella é sintomático da incapacidade de quem governa este país proporcionar o bem estar da população. A greve dos enfermeiros é justamente – e há 2 anos que chamam a atenção para isto – para lembrar que a gestão de serviços públicos não pode ser feita com serviços mínimos, escassa mão de obra, gente exausta, que se sucede em turnos e salários de sobrevivência/manutenção. Para além de algo que não tem valor – o bem estar dos profissionais do SNS – há outras coisas que têm um valor económico muito importante e que se centram na contabilidade equilibrada dos custos prevenir/tratar – é sempre mais caro tratar do que prevenir, é sempre mais caro resolver os erros do que impedi-los. Nos serviços públicos e privados há uma série de profissões ditas “inúteis” que são os de prevenção, de manutenção, de fiscalização, etc. Num país bem gerido há enfermeiros a mais para situações de emergência, que às vezes estão para ali a jogar “paciências”. Como há fiscais de higiene e segurança no trabalho, daqueles que vão ver uma fábrica e depois não têm muito para fazer e vão comer uns tremoços – tremoços saborosos e muito mais baratos do que a conta do SNS de tratar 300 doentes com legionella, já para não referir o custo de perda de vidas, que não tem preço. Num país bem gerido também não há torres de refrigeração a vaporizar a população com bactérias. E que fique de alerta a quem acha há 5 anos, há 10, há 15, que isto agora é que vai ficar melhor, os indicadores são bons, o défice desce e outros pensamentos mágicos: isto só vai piorar enquanto prevalecer a política de que os impostos servem para remunerar activos falidos em vez de servirem para garantir serviços à população. Feitas as contas isto não é um crime ambiental que num qualquer relatório daqui a 2 anos vai aparecer como “erro humano” – é uma coisa mais profunda, é uma política criminosa que vê o mundo pela velocidade de remuneração da acções a 1 ou 2 anos e que implica despedir pessoas, no público e no privado, incluindo os mais experientes, com 45, 50 anos, para daí a 1 ou 2 anos concluir, com surpresa, que as empresas estão falidas ou…a borrifar bactérias.

Uma nota final para o meu espanto sobre os comentários que oiço, face a este escândalo (que está a tentar aparecer como “normal”), que dizem que os mortos tinham já problemas anteriores – ora uma sociedade onde há pessoas com problemas de saúde só tem obrigação de concluir que deve prevenir ainda mais e não que é normal terem morrido. Isto não é evidente?

Honoris Causa – Horta Osório

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António Horta Osório, banqueiro, Presidente desde 2010 do Lloyds Banking Group, esteve em Portugal e disse que os portugueses vivem acima das possibilidades, isso já ninguém duvidava, há 47% de pobres, podíamos ter 67% ou 77%, ainda há muito para melhorar. Mas HO disse mais, disse que também o ” mundo vive acima das possibilidades” e que a Caixa Geral de Depósitos – e reforçou-o na mesma semana em que se tornou público que a CDG iria pagar o calote do BES – tem que ter “mais presença na economia” e que o Governador do Banco de Portugal actuou de forma correcta no BES. Reforçou que não há “alternativa” às políticas de erosão salarial e salvação dos activos desvalorizados a que Horta Osório, e tantos, chamam de “austeridade”. Compreendo agora porque o Jornal de Negócios considerou o banqueiro de uma instituição inglesa o 44.º mais poderoso da Economia portuguesa. Portuguesa, leram bem.

O Lloyds Bank, em 2009, perdeu num único dia 1/3 do seu valor em bolsa e mais 30% nos 4 dias seguintes (a isto chama-se falência) e foi de facto – cito palavras de um quadro do Banco de Inglaterra – nacionalizado. Pouco tempo depois AHO assumiu a liderança do Banco e fê-lo – todos os dias isto é citado em jornais portugueses – “regressar aos lucros”.
Fazer bancos regressar a lucros depois de terem sido injectados com quantias apocalípticas de dinheiros públicos é algo que só alguém muito experiente consegue…por exemplo, um CEO que gere de forma privada dinheiros públicos, o que em Portugal começa a ser sinónimo de ser agraciado com um doutoramento honoris causa. Ontem, no programa Barca do Inferno, dediquei o minuto final a entregar a Horta Osório um doutoramento honoris causa, antecipando-me ao dia – daqui a 1 ano e meio ou 2 -, em que o Lloys vai colapsar outra vez à boleia de uma nova crise cíclica com epicentro na produção industrial norte-americana e uma universidade portuguesa galardoará o banqueiro por toda a dedicação e criatividade deste em prol da humanidade.
Horta Osório merece-o também, é preciso salientá-lo, porque é um homem com coragem – e oh se já há poucos! É que ele disse isto tudo num país com 47% de pobres, onde 80% da população por conta de outrem ganha menos de 900 euros por mês, onde 10% dos que trabalham não conseguem chegar ao fim do mês e onde há fome oficialmente reconhecida e Horta Osório ganha 9 milhões de euros por ano, que, claro, são fruto exclusivo do seu árduo trabalho. E por isso o banqueiro tem direito a fazer parte daquele pedaço do mundo, 2% de acordo com a ONU, que detém 50% da riqueza mundial total, ou seja, a que é produzida pelo conjunto de toda a população produtiva. Um banqueiro assim merece o nosso reconhecimento, isto é que é mostrar aos ingleses como nós os portugueses mantemos o espírito guerreiro e ousado de sempre. Que orgulho!

PS: Desapareceu o “causa” do doutoramento! Foi por lapso meu mas acabo de concluir que foi escrever certo por linhas tortas…