Precisamos de falar a sério sobre o COVID

Precisamos de falar a sério sobre o COVID. Mantive-me em silêncio sobre o tema estes meses não porque não sou médica mas porque não sabia se ia cá chegar. Nunca tive dúvidas da gravidade. A partir do momento em que a economia chinesa decreta uma quarentena a 40 milhões de pessoas era óbvio que não estávamos perante uma gripe. Estamos perante um vírus de altíssimo contágio, e que por isso atinge com rapidez muitos, e uma parte, minoritária, ainda assim enorme porque é de alto contágio, precisa de cuidados emergenciais, e os sistemas de saúde, todos, mas os pós troika pior, não estão preparados para tal. Em Itália já há casos em que os médicos escolhem quem vão ou não reanimar por falta de meios de ventilação – Portugal não pode deixar isto acontecer. É sério: mesmo os menos doentes têm uma lenta recuperação, 4 semanas; e ainda não sabemos que sequelas vão ter uma parte deles. É preciso ouvir a OMS – não é uma gripe.

Não sou médica mas conheço como poucos em Portugal, com uma equipa vasta, a organização do trabalho médico e de enfermagem, coordeno como sabem a equipa que mais estudou em 2 projectos nacionais na UNL e no Técnico a organização do trabalho no SNS português, com o nosso Observatório para as Condições de Vida e Trabalho, que reúne dezenas de especialistas em saúde e trabalho. Se antes da Troika, ou em qualquer época, medidas excepcionais teriam que ser sempre tomadas para lidar com este nível de internamento e cuidados urgentes, depois da troika o nosso desafio é gigante. Não posso dizer se estaremos à altura, mas posso assegurar que se não estivermos todo o nosso edifício social de confiança mutua ruirá.

Temos clareza em algumas medidas a propor:

1) dotação orçamental para contratar mais médicos (Mário Centeno, algo a dizer?), e incentivos materiais aos médicos reformados; pagamento duplicado de horas extra aos profissionais de saúde, com imposição da licença sem vencimento no sector privado – imposição pelo Estado, no caso em que ela não for dada voluntariamente por estas empresas de saude privada;

2) depois de aumentar os salários – só depois! antes seria um desastre e uma possível debandada – retirar o relógio de ponto e outras medidas de vigilância da força de trabalho, e deixar as equipas funcionar em gestão democrática e autonomia; confiar nos profissionais de saúde tem menos riscos do que vigiá-los, desmoralizando-os; garanto-vos que os médicos e enfermeiros não vão fugir por falta de relógio de ponto, vão trabalhar mais horas do que estava previsto, mesmo mais do que o extra que lhes pagarão – em tempo de guerra quem trabalha nunca recuou;

3) permitir a eleição dos coordenadores destas equipas que lidam com o COVID nos casos em que as hierarquias não são respeitadas porque são de prévia nomeação política, sem critérios de autoridade clínica ou de boa gestão – não é possível um sistema complexo emergencial funcionar sem autoridade e a autoridade só pode vir da legitimidade democrática nos locais de trabalho. Isto não é uma medida ideológica, é uma medida de gestão da força de trabalho em tempo de excepção. O que significa? Em emergências é preciso tomar medidas que não se discutem, de força, e esse força só vai funcionar no terreno, ser exequível por quem recebe as ordens, se estiver previamente legitimada pela eleição ou, casos que há, por nomeações que são respeitadas. A prazo – insistimos -, os directores clínicos têm que ser eleitos, sempre;

4) Tudo isto só funcionará se obviamente não faltarem meios aos profissionais de saúde – não é hora de improvisar bens materiais, aí claro deixo a quem é especialista o que fazer em termos de reorganização hospitalar. Não se pode pedir a alguém que esteja de corpo e alma a enfrentar uma guerra pela vida dos outros, usando toda a sua força, e ainda faltem camas, máscaras, medicamentos…, ou que ande a perder tempo a pedir favores aqui ou ali para ter meios elementares de trabalho.

Neste campo dos meios devo dizer, e esta é apenas a minha opinião pessoal (que não quero que envolva os meus colegas de trabalho sem os escutar), deve ser feita uma requisição civil aos hospitais privados, que devem assumir os custos sem compensações. Não porque são capitais Chineses, argumento ridículo e xenófobo, mas porque têm taxas de lucro gigantescas acumuladas com o trabalho de médicos e enfermeiros formados pelo sistema público e pagos em grande medida pela ADSE – este lucros devem ser colocados ao serviço de salvar todas as vidas. Se são os mais velhos e doentes os mais atingidos – e muito há por se saber neste campo -, mais razões para termos mais meios e não menos. Numa sociedade decente são os mais velhos, que tanto nos deram, a quem tanto devemos, e os mais doentes, que tanto precisam, que devemos procurar proteger com rapidez. Numa sociedade doente é que olhamos para isto como Malthus, defendendo o darwinismo social.

Finalmente duas notas:

É evidente que é preciso fechar as escolas e outras empresas privadas e fábricas (como será com centenas de trabalhadores de call centre? ou numa linha de montagem como temos com 800 e 1000 trabalhadores?, nos transportes públicos?)- hoje aliás os directores das escolas já o vieram pedir ao Governo. Para isso são necessárias medidas excepcionais de licenças, com salário, e sem despedimentos, incluindo medidas excepcionais para os precários, que são mais de 30% da força de trabalho em Portugal.

É evidente que é preciso lavarmos as mãos, porque o contágio se dá em corrimões, portas, mesas. Isto não é uma brincadeira. O nosso papel individual é uma parte que também conta. Este detalhe no todo é fundamental ser respeitado, é a nossa parte individual. Não podemos ser desleixados nisto.

Não posso deixar de dizer por fim que o Governo foi mais rápido a injectar dinheiro no Novo Banco do que no SNS em pleno surto. Essa é a crise que temos que discutir assim que o surto estiver controlado. Estes cavalheiros – que estão no comando do mundo e do país há algumas décadas – não têm condições de nos governar. De nos cuidar, proteger e dar bem estar. Enfim, em tempo de guerra não se mudam generais, diz-se, mas assim que a guerra passar é bom saber que não temos generais ao comando…, há muito. Temos gestores políticos do declínio.

5 thoughts on “Precisamos de falar a sério sobre o COVID

    • Para clarificar, eu não acho mal que se fechem as escolas, mas o governo precisa de ter um plano para acautelar esta situação. E quem diz os profissionais de saúde, diz muitos outros serviços essenciais incluindo as redes de distribuição de alimentos, etc. etc.

  1. E de lamentar ; que esta senhora só fale em médicos e enfermeiros, quando a organização de um hospital também consta de outros profissionais também com elevada formação !

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