Democracia e Revolução

Existe um período de regime distinto entre o fim da ditadura – a 25 de Abril de 1974 – e o início do regime democrático-liberal ou democrático-constitucional, cuja construção se inicia a 25 de novembro de 1975, passam hoje 39 anos. Trata-se de um período de 19 meses marcado por aquilo que se designa historicamente como formas de democracia direta (que outros autores classificam de democracia industrial, ou poder operário[1]) ou como a existência de uma dualidade de poderes, com um poder paralelo ao do Estado marcado pelo protagonismo dos trabalhadores, de diversos setores/frações desta classe social). Poder paralelo – assente nas comissões de trabalhadores, moradores, soldados, com representantes com mandatos revogáveis e eleitos directamente – poder que não se confunde com as tentativas de controlo do aparelho de Estado – que existiram naquele período – por parte do PCP e do PS. Nunca tanta gente decidiu tanto, nunca houve tanta democracia em Portugal, como naqueles 19 meses. 3 milhões de pessoas sensivelmente envolveram-se directamente nas escolhas políticas de como queriam produzir, viver, morar, com um grau de organização, e maturidade social que torna a revolução dos cravos um dos exemplos mais importantes a nível mundial em todo o século XX. E é isso que incomóda o poder hoje, essa memória da civilização das pessoas comuns.

Se é verdade que o regime democrático representativo não é um prolongamento do Estado Novo, interrompido abruptamente por um processo revolucionário, também é verdade que a democracia liberal não é um prolongamento da revolução, mas sim da sua interrupção abrupta, ou seja, da sua derrota. A revolução e a contrarrevolução são dois momentos distintos, assinalados desde logo por regimes diferenciados.  Creio que é um equívoco associar a revolução à construção do regime democrático liberal, porque esse equívoco confunde formas de Estado, regime e governo. Sobretudo, não permite distinguir a revolução do seu contrário, a contrarrevolução.

O Estado neste período foi sempre, mesmo em crise, um Estado capitalista (nunca houve um Estado socialista em Portugal, mas um Estado em crise marcada pela existência de poderes paralelos, em 1974-1975). Mas houve vários regimes no quadro desse mesmo Estado: ditadura, os regimes que perduraram durante a revolução, o regime democrático representativo.

Está por discutir, e não o fazemos aqui, qual a natureza dos regimes, se é que houve mais do que um, durante o biénio 1974-1975. Teria sido dominante durante este biénio um regime kerenskista, por alusão ao regime de Kerensky depois de fevereiro de 1917 na Rússia? Há um regime semibonapartista (com características ditatoriais) depois de 11 de março de 1975, primeiro pressionado pelo PCP (Documento Guia Povo-MFA) e depois pelo PS e a direita (VI Governo)?

Independentemente dos regimes que vigoraram no biénio 1974-1975, a revolução tinha um curso, que influencia e é influenciado pelos regimes. Mas ainda assim um curso independente, marcado pelos organismos de ‘poder popular’. O Estado não se impunha, não havia «estabilidade», tinha que negociar sistematicamente com esses organismos (organizados de facto ou não, até maio de 1975, e a partir daí coordenados regional ou sectorialmente). Assim, é conceptualmente mais preciso considerar que a democracia direta é filha da revolução e a democracia representativa é filha da contrarrevolução.

Muitas vezes esta expressão – a contra revolução – é de imediato alvo de críticas que consideram que ela acarreta uma visão mais ideológica do que histórica. É uma pressão injusta, porque a outra visão, que omite ou desvaloriza a existência de uma situação de dualidade de poderes, é muito mais alvo da pressão ideológica de um País que não ainda ajustou contas – e por isso tem mais dificuldades em fazer história – com o seu passado:

  • Um passado em que os mesmos militares que fizeram uma guerra terrível contra povos quase indefesos em África, alguns deles, corajosamente, derrubaram a ditadura a 25 de Abril de 1975;
  • Um país onde muitos destes militares (Grupo dos Nove) que derrubaram a ditadura se juntaram numa ampla frente para pôr fim à dualidade de poderes, à revolução, num golpe de Estado a 25 novembro de 1975, que termina com a prisão em massa dos militares afetos às perspetivas revolucionárias que pugnavam por um deslocamento do Estado e não só do regime (a maioria naquilo que se chamou então teorias «terceiro-mundistas»).
  • Um país onde a democracia liberal encaixou os partidos constituintes do regime desde então num amplo pacto social que implicou desmantelar a origem da pressão para o deslocamento do Estado, isto é, a dualidade de poderes nos lugares de trabalho (comissões de trabalhadores), nos bairros, na administração local e na reprodução da força de trabalho (comissões de moradores) e finalmente, a partir de 1975, aquilo que Mário Soares designou como a «sovietização do regime», isto é, a dualidade de poderes emergente nas Forças Armadas.
  • É ainda uma memória que pesa porque o partido que teve um papel heroico contra a ditadura – o PCP – aceitou não resistir ao 25 de novembro, assumindo publicamente, pela mão do seu líder de então, Álvaro Cunhal, que a esquerda militar se tinha tornado um fardo para o PCP porque a sua atuação punha em causa o equilíbrio de forças com os Nove e os acordos de coexistência pacífica entre os EUA, a Europa Ocidental e a URSS.

Foi a partir de 25 de novembro de 1975 que se iniciou um novo regime – lentamente é verdade, uma vez que a revolução leva mais de dez anos a ser derrotada, a força de trabalho a ser “flexibilizada” (a partir de 1986-89), a contrarreforma agrária (1982) a ser realizada, bem como a progressiva erosão do Estado social, com as privatizações (1989). Mas foi nesta data que se deu o retorno à disciplinação da produção para a acumulação de capital, aliás reconhecida publicamente no discurso do chefe militar do golpe, Ramalho Eanes, nas celebrações do segundo aniversário do 25 de novembro de 1975[2].

Existe ainda hoje uma intensa polémica à volta do que foi o 25 de novembro – e há dados que ainda não estão totalmente esclarecidos. Porém, é indiscutível que esta data marca o início do fim da revolução e a consolidação daquilo que António de Sousa Franco, economista e cientista social, chamou a «contrarrevolução democrática»[3] e que, fruto da força ideológica dos vencedores, é hoje apelidado de «normalização democrática».

A revolução portuguesa encontra o seu marco histórico na conjugação de uma crise nacional (financeira, política, militar) e na entrada na arena política das massas estudantis e trabalhadoras. Estas massas inicialmente – usamos o conceito de massas no sentido de não serem ainda grupos organizados com um programa político, daí este conceito, aliás preciso, de massa disforme, disruptiva – evoluirão depois para a organização em estruturas de base, comissões, associações, partidos ou sindicatos. Paulatinamente, organizam-se grupos de trabalhadores e moradores, estudantes e mais tarde soldados, que serão o centro nevrálgico da revolução. São estes que determinam o curso da crise de Estado e de acumulação, que se saldou não só na amplitude de direitos políticos mas teve como resultado a maior erosão de sempre do capital, saldando-se naquele que é historicamente, entre nós, o maior ganho dos rendimentos do trabalho sobre os do capital. Passam de ser o equivalente em 1973 a 50% do PIB para o trabalho (salário e contribuições sociais) e 50% para o capital (juros, lucro e rendas) para, em 1975, serem quase 70% para o trabalho e 30% para o capital. Esta transferência, por força das lutas sociais, dá-se na forma de intervenção das empresas descapitalizadas (pagamento de salários e investimentos), aumentos diretos dos salários, aumento do salário social (nascimento das funções sociais do Estado), rendas de casa subsidiadas, congelamento de preços, etc.

Historicamente existem várias configurações de revoluções e várias formas de contrarrevolução. Da mesma forma que uma revolução é um processo histórico que não se resume a um golpe militar, uma quartelada, a contrarrevolução não é um processo histórico que possa ser resumido a um golpe violento que instaura uma ditadura. Na verdade, da experiência da contenção da revolução portuguesa pela via pacífica e democrática, aplicada preventivamente em Espanha com grande sucesso, surge um laboratório de processos contrarrevolucionários que nada têm a ver com o modelo chileno (um golpe contrarrevolucionário feito sob as botas de uma sangrenta ditadura militar). Este modelo “pacífico” de contrarrevolução (hoje enquadrado pelo conceito teleológico de «transições para a democracia») será adotado pelos EUA para sua política externa, a “doutrina Carter”, aplicado depois à América Latina com a substituição progressiva das ditaduras por regimes de filiação democrática[4]. Um modelo que se centra na ideia de pôr fim às revoluções ou evitá-las criando uma base social eleitoral, no quadro de um regime democrático representativo, isto é, uma transição para uma democracia liberal que evite ruturas revolucionárias.

[1] Ver capítulo sobre o controlo operário.

[2] Eanes, Ramalho, «No 2.º aniversário do 25 de novembro», Discurso proferido em Tancos. In Secretaria de Estado da Comunicação Social, 1978, p. 10.

[3] Franco, António de Sousa, «A Economia». In Reis, António (coord.). Portugal 20 Anos de Democracia. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, p. 207

[4] Lemus, Encarnación. En Hamelin…La Transición Española más allá de la Frontera, Oviedo, Septem Ediciones, 2001.

In História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-1975 (Bertrand, 2014).

1507-1

2 thoughts on “Democracia e Revolução

  1. Pingback: 25 novembre 1975 : retour sur le jour qui stoppa le processus révolutionnaire portugais | Raquel Varela

Leave a comment