Esclarecimento Público – Comemorações Oficiais do 25 de Abril – 40 anos

Circulou publicamente que eu estaria a “colaborar” com o Governo ao ser coordenadora científica do Itinerário Histórico das Comemorações oficiais do 25 de Abril – 40 anos, financiadas pelo Estado, promovidas pelo Governo de Portugal.

Gostava de começar por dizer que todo o trabalho intelectual e público deve estar sujeito à crítica pública. Os intelectuais não podem ser alvo de reverência nem podem achar que estão imunes ao controlo público. Com muito gosto receberei as críticas face ao percurso do Itinerário, os textos, as escolhas científicas. Todo o meu trabalho é avaliado interpares com regularidade e vejo isso com muita satisfação.

A coordenação científica não é um cargo político mas uma encomenda técnica, cuja origem está exclusivamente no facto de eu ser especialista na história da revolução, sobre a qual tenho projetos de investigação, várias orientações de mestrado e doutoramento em curso e, hoje, mais de uma centena de seminários organizados em várias instituições de investigação e seis livros publicados.

O critério de realização do Itinerário foi o convite a uma série de testemunhos e investigadores e historiadores de todo o País que guiarão pelas ruas de Lisboa, Porto, Peniche e Santarém uma história da revolução. Este convite dizia expressamente, com nome, anexo explicativo e logótipo, o seu objectivo e organização. Os convites foram aceites por dezenas de pessoas que guiarão os participantes, num Itinerário de acesso gratuito para a população.

Entre as inovações deste Itinerário está o facto de se combinarem testemunhos com intervenções de investigadores com trabalhos de fundo na área – incluindo jovens investigadores com teses novas –, testemunhos novos (e não a repetição dos mesmos) e a associação a este Itinerário de um espaço virtual onde todos os Portugueses poderão deixar o seu testemunho de como viveram o 25 de Abril. É uma rara oportunidade para ouvir, com acesso a um grande público, vozes de anónimos que participaram nos acontecimentos dos dias entre 25 de Abril e 1º de Maio de 1974.

Acabámos de sair das Comemorações Oficiais da República, propostas pelo Governo Sócrates e nomeadas pelo  Presidente da República, Cavaco Silva. Comemorações que financiaram centenas de investigadores em trabalhos de mérito e relevância muito importante. O facto não suscitou qualquer polémica então. Na minha opinião corretamente.

Sobre as questões do financiamento cabe-me fazer o seguinte comentário. Sou investigadora de uma universidade/fundação pública. Há mais de 10 anos que trabalho para o Estado e sou financiada pelo Estado. Convém, aliás, não confundir Governo e Estado, já que nas nossas sociedades não existe de facto um orçamento do Governo, mas um Orçamento do Estado, e é dele que provém todo o financiamento público. A minha investigação já foi financiada pelo Estado português, pelo espanhol, pelo alemão, geridos por diversos governos. O projeto que coordeno de estudo dos operários navais no mundo tem financiamento da Academia Real de Ciências da Holanda, presidida pelo rei. Também tenho em curso projetos financiados por associações locais e sindicatos. Em qualquer destes lugares jamais sofri qualquer pressão no sentido de inflectir o meu trabalho nesta ou naquela direcção. Mas já passei por situações em que essa pressão existiu, noutros espaços, e o que fiz então foi recusar o trabalho em causa.

O único critério a que preside o Itinerário do 25 de Abril que dirijo é o científico. Isso é uma boa coisa num País onde as comemorações, oficiais e não oficiais, são muitas vezes condicionadas pelos protagonistas ou por quadros políticos e não por historiadores. Levando, aliás, a situações de claro revisionismo histórico que marcaram e marcam, até hoje, as celebrações, nomeadamente pretendendo associar o início da revolução (25 de Abril de 1974) ao golpe que encerrou o período revolucionário (25 de Novembro de 1975), já que uma parte dos heróis do primeiro foram também protagonistas do segundo. Ter convidado historiadores (e não políticos) para fazer Um Itinerário Histórico do 25 de Abril é, aliás, uma das raras coisas que me recorde em que posso estar de acordo com este Governo.

A neutralização ou cooptação dos intelectuais pelos poderes é um assunto sério nas nossas sociedades. Frequentemente ela passa pela adaptação das ideias aos financiamentos – essa pressão real existe e deve ser por nós controlada e rejeitada. Mas muito mais frequentemente ela passa por posições dúbias, desonestidade intelectual, escolha criteriosa de autores críticos “cómodos” e mesmo escolha de temas a investigar que evitem aos investigadores científicos o confronto político com os poderes. Há porém, e felizmente, centenas de exemplos de pessoas cujo critério continua a ser a liberdade. Esse é também o meu.

O debate histórico sobre a revolução não pode estar dependente de um critério eleitoral (ampla frente contra o Governo à porta das eleições europeias), nem de um critério de força dos partidos dominantes, nem da luta política e por carreiras que surge dentro das universidades atiçada pela escassez dos financiamentos. A qualidade do trabalho de investigação está dependente da nossa coragem, seriedade e financiamentos e de boas condições laborais e sai prejudicada quando se pretende criar na universidade capelinhas que reflectem a luta política.

A acusação de “colaborar com o Governo” dirigida a uma pessoa como eu, cujo percurso público nos últimos anos foi de séria e frontal oposição a este Governo, resulta de uma forma retorcida de fazer política e não tem qualquer fundamento sério. A minha vida pública tem sido marcada pela defesa intransigente de políticas de ruptura com este modelo social, e não sufraga obviamente nem a política deste Governo nem a da “Oposição de Sua Majestade”.

É legítimo discutir a oportunidade de aceitar fazer um trabalho encomendado pelo Governo, como é o caso deste Itinerário do 25 de Abril. Tal como é legítimo discutir a oportunidade de um engenheiro ou um arquitecto aceitar construir uma obra encomendada pelo Governo. O que não é legítimo é, ignorando o mérito próprio do trabalho encomendado, aproveitar essa circunstância para caluniar o autor dessa obra como “colaborador” desse governo. O Itinerário do 25 de Abril é um trabalho sério a que me honro de ter associado o meu nome. Agradeço a todos aqueles que nele colaboram. E espero que sirva ao povo português, sobretudo aos mais jovens, para conhecerem melhor a revolução que em 1974 mudou o nosso País.

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