Des – educar

A Fundação Belmiro de Azevedo publicou um estudo onde afirma que com melhores professores há melhores alunos. Na verdade esta foi a gorda que os jornais escolheram – se fosse o estudo, estaríamos mal – seria como afirmar que quem anda à chuva molha-se. A questão é como teremos melhores professores e como mudamos o cenário para uma escola pública de excelência para todos. Sobre isso a entrevista de Cláudia Azevedo, citada no ECO, é clara – automatizar ainda mais o processo educativo para um mercado automatizado. Vou explicar de forma simples mais uma vez: se eu ensino ciências fundamentais complexas e raciocínio abstracto e filosofia, eu consigo não só mexer num telemóvel como criar o telemóvel; andar de carro como criar um motor; ir ao jardim como desenhar uma cidade; ler um livro como escrever um livro. Se só ensinamos tecnologia do outro lado só se aprende a operar máquinas, não a criá-las. Nos países ricos faz-se ciência, nos pobres ensina-se a usar (e comprar) tecnologia. Num produz-se conhecimento, noutro aplica-se, um é independente, o outro dependente. Em Sillicon Valley os filhos dos criadores da tecnologia não só estão em colégios onde não há telemóveis, como se ensina filosofia grega clássica.

O nosso problema não é falta de máquinas na escola, é excesso delas, concomitante com a falta de de conhecimento e de amor ao conhecimento – sim, vivemos numa sociedade que promove e enaltece a ignorância todos os dias. O conhecimento só pode ser dado com muito bons professores, bem pagos, formados em muito boas universidades, onde chegam depois de ter muito bons professores no ensino secundário, onde chegam depois de ter muito bons professores no ensino primário, que ali chegaram porque tiveram muito bons professores na Universidade. E assim, em ciclos de conhecimento, interligados.

Que a SONAE, e o editorial do Público, propriedade da SONAE, cujo mercado opera em áreas cada vez mais automatizadas, da logística à distribuição, no fundo como alguém disse os dois homens mais ricos do país estão à frente de duas gigantes mercearias (Pingo Doce e Continente), onde se recebe a pronto e se paga a 3 meses, diga que lhes falta programadores para automatizarem as suas linhas de produção, é compreensível. Fazem o que devem para ter lucro e mercado – dois lugares que confesso não frequento. Que Ministros e jornais acarinhem estas estratégias, achando que é de mercearias que um país vive, e da operação de máquinas, é revelador sobre a concepção de educação que o Estado tem para quem anda na escola pública.

A Escola serve para dar o melhor do conhecimento produzido pela humanidade a todos – não serve para servir um mercado de trabalho cada vez mais pobre e desinteressante, desumanizado.

Um nota de simples de decoro. Nem no Brasil, onde a escola pública já foi destruída e a educação é defindida por instituições privadas, o Ministro da Educação frequenta apresentação de estudos privados. Por óbvia incompatibilidade de interesses. Em Portugal um estudo para a escola pública de uma empresa privada tem uma apresentação na abertura do…Ministro da Educação, e a presença de vários dos ministros anteriores. O que creio seria impensável há 3 décadas, por óbvio conflito de interesses. Falta-nos uma escola pública de excelência para todos, porque também nos falta saudável distância do mercado, e decoro político.

6 thoughts on “Des – educar

  1. A denúncia da Raquel e de outros comentadores sobre o estudo da Sonae faz todo o sentido e é extremamente oportuna. Parece-me, no entanto, que devemos desconstruí-lo também por outra via, não menos importante.
    Esse e outros posicionamentos semelhantes pretendem insidiosamente chegar a outros patamares para além da automação em curso. Ao colocar o fulcro exclusivamente nos professores, estão a fulanizar um problema, estão a dizer que a culpa do estado da educação é dos docentes que são maus, estão a fazer com que os ensinantes se autodesconsiderem e se sintam profundamente culpados pela situação. Pior ainda, ao fazer isto, ao passar esta mensagem subliminar, estão a ilibar o sistema económico, as elites, os governos, os ministros, as políticas (des)educativas, os sucessivos desastres que as cliques instaladas fazem chover sobre o sistema educativo e face aos quais, os professores são obrigados a fazer os impossíveis para continuar a leccionar o melhor possível, apesar dos pesares.
    É esta subversão propositada dos factos que torna o referido estudo um instrumento pernicioso e particularmente nocivo para os reais interesses do país, dos alunos e dos profissionais no terreno.
    Não menos lamentável é o seguidismo carneirístico com que os media gulosos e as cliques governamentais pretenderam surfar a onda para obviamente sacudirem a água do capote e passarem pelos intervalos dos pingos de chuva.

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  3. Só tenho um reparo lógico em todas as condicionais utilizadas. Uma vez que o antecedente é apenas condição suficiente do consequente, isto quando se utiliza a forma “se… então…”, o consequente pode acontecer por motivos diversos (como no caso da frase: “Se chover o chão fica molhado.”; o chão pode ficar molhado por outros motivos – mangueira, garrafa, etc.) por isso a utilização da condicional não é a melhor forma de fazer uma causa depender de um efeito. Por outro lado o consequente é condição necessária para o antecedente (o que não interessa nos argumentos apresentados no primeiro parágrafo). Depreende-se assim que, mesmo que eu não ensine raciocínio abstracto e filosofia, ainda há outros antecedentes que tornam a criação possível – podendo até ser o ensino da tecnologia. O que explico aqui não é de pouca monta, uma vez que os raciocínios daí inferidos estão condenados por uma falácia da implicação.

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