Motoristas de Matérias Perigosas ou Centeno para o FMI?

Caros, a matéria mais perigosa na vida é a falta de curiosidade. O “saltar para conclusões” sem saber nada de um assunto, nicles, rien. Em matéria da greve de matérias perigosas estamos ao nível dos “5 mil euros dos estivadores”, e os “enfermeiros a matar doentes com a greve” – é o nível zero do conhecimento, aqui reduzido a “malandros, mafiosos”, que têm um “advogado que tem um bom carro”. Nem sei que vos diga…é tanta a superficialidade dos comentários que me dão uma certa vergonha alheia.

Em primeiro lugar nunca vi ninguém queixar-se de que os patrões são sistematicamente representados por advogados, gestores de recursos humanos e agências de comunicação pagas a contratos de até 100 mil euros por ano. Em Portugal nunca patrão algum deu a cara em nenhum conflito laboral. Aliás com frequência colocam o Governo a fazer esse papel por eles, o que o Governo tem feito com gosto. Aqui ninguém sabe o que a Antram pensa porque o Governo não evita falar em nome da Antram – tem isto um nome na ciência histórica, neo-corporativismo. E nem o Governo nem a Antram explicam que o patrão real são os accionistas da Galp e da Repsol, que fixam o preço/Km e que se prepararam para cortar 400 euros no salários dos motoristas. Sendo que de todos os motoristas estes, até agora, foram os únicos a opor-se a esta mega-valorização dos accionistas da Galp. Escusado será dizer que Paula Amorim, dona da Galp, um dos patrões-mor deste conflito, está na capa das revistas cor de rosa a inaugurar espaços gourmet na Comporta. Enquanto o Ministro do Governo ameaça – perdão “avisa” – os motoristas que por causa deles não vamos de férias em Agosto para a Comporta.

Daqui decorre a segunda ideia. Podemos gostar ou não do advogado. Mas cabe ao sindicato decidir quem o representa, e não a nós. Felizmente ainda não sou eu, nem vocês, nem o Governo, a escolher quem representa sindicatos. Foi assim 48 anos, no Estado Novo. Já não é.

Finalmente o carro. Para mim falar de carros é…olhem, ainda há 15 dias coloquei gasolina em vez de gasóleo no meu. Sei tanto de carros como vocês de greves e relações laborais – zero, nicles, nestum. O meu sonho era nunca mais conduzir e ter sempre um motorista, como Centeno vai ter no FMI. Mas o FMI é o último lugar da terra – depois de um jantar a dois com Trump -, onde gostaria de estar. Pelo que vou continuar sem motorista, a confundir gasóleo com gasolina. Já vi que tantos consideram o FMI um lugar de prestígio, onde há um carro charmoso. E por isso não admitem que um advogado de motoristas ande com mais do que um utilitário, produzido ali na Auto Europa, com trabalho aos Domingos.

Agora a greve – já que toda a discussão anterior é de uma enorme inutilidade. Vamos ao que interessa. A Fectrans, dirigida maioritariamente pelo PCP, está ligada eleitoralmente ao apoio ao Governo actual. Ao romperem uma regra de ouro do sindicalismo – manter a independência face a qualquer Governo – os dirigentes da Fectrans abriram a porta a uma ruptura com a sua base. E resolveram assinar um acordo onde os motoristas passariam a receber de facto menos 400 euros por mês e sem limite de horário real. Este grupo de motoristas (de matérias perigosas) achou que a vida ia virar uma geringonça – que só na aparência saía do mesmo sítio. E resolveu sair da Fectrans e fez um Sindicato novo. E uma greve que paralisou o país, e ameaçam com outra greve. Podemos ser contra ou a favor. O que não podemos é inventar desculpas que atacam pessoas individuais (e carros!), para eludir a compreensão do problema. Tudo indica que já se escreveram centenas de peças sobre o tema mas ninguém leu o acordo assinado pela Fectrans. Eu li, claro, todo.

Estes motoristas, bem como quase todos no país, ganhavam até aqui da seguinte forma: salário base mínimo de 600 euros, mais 500 ou 600 euros em “ajudas de custo” – em que os patrões não pagam impostos – ; e mais 100 euros em horas extraordinárias. O que correspondia a um total real de 15 horas por dia de trabalho quase sempre e um salário trazido para casa no valor de 1200 a 1300 euros.

A Fectrans assinou com os patrões um acordo em que deixa de haver de facto limite de horas extra (é introduzido a laboração contínua, como foi na Auto Europa), mas o salário aumenta 100 euros na base e mais 300 euros em horas extraordinárias (não interessa se fazem mais 10 ou 100, o valor a mais é sempre um fixo de 300 – como na Auto Europa o valor ao fim de semana passou a ser fixo). Assim, os patrões passam a pagar o mesmo, cerca de 1200 euros, mas entram 300 euros desses em impostos a Centeno, e os motoristas no fim ficam com um salário real que trazem para casa de 900 euros (e com horas extraordinárias ilimitadas).

Acrescento que o número máximo fixo por lei de condução é 9 horas, mas 15 por dia no total – cargas, descargas etc, ou seja, estes homens trabalhavam 15 horas por dia e traziam para casa 1200 euros e agora trabalhariam 15 horas por dia e iriam trazer para casa 900 euros. Centeno vai para o FMI de Bentley, pois consegue como prémio mais um valor de impostos para pagar tiutlos de dívida pública-privada. Eles, os motoristas, vão para a estrada arriscar a vida – mas destas vez a vida vale menos 300 euros.

Em vez disso resolveram fazer greve, por um aumento real do salário, e que lhes permita viver sem trabalhar 15 horas por dia. A Galp, Repsol e grandes empresas fixam um preço Km, subcontratam às empresas que por sua vez subcontratam a empresas ainda mais pequenas – no fim da cadeia estão estes homens. Que vieram dizer ao país que não vai ficar no fim da cadeia, que querem salários decentes. O país não gostou, deles, do advogado e do carro.

Conhecem aquela velha canção norte-americana, cantada pelos membros dos seus mais poderosos sindicatos, e pelo magistral Pete Seger? Chama-se “Which side are you on?” – De que lado estás?. Ela desafia-nos a pensar até onde vai o nosso cinismo. Ou o nosso sentido de justiça social. São estas escolhas que decidem no fim do dia quem somos, e quem queremos ser.

9 thoughts on “Motoristas de Matérias Perigosas ou Centeno para o FMI?

  1. Obrigado pelo esclarecimento. Mais uma vez. Eu — e muitas outras pessoas, estou certo — dificilmente conseguiria ter uma opinião esclarecida sobre os contratos em causa, pelo facto de os órgãos de informação não nos darem esses dados, faltando, mais uma vez, ao seu dever de informar. E só sabendo o conteúdo do que está, verdadeiramente, em causa, se pode formar opinião. Não sei se a minha coincidirá exatamente com a sua, Raquel, pois ainda não refleti o suficiente sobre este assunto, mas de uma coisa estou certo: estou, após ter lido o seu texto, em muito melhores condições do que antes para fazer um juízo sobre a posição dos motoristas e encarar os efeitos da eventual greve com outra disposição.

  2. Excelente texto, preciso, objectivo e coerente é pena que a maior parte das pessoas fiquem pela superficialidade das suas opiniões
    Parabéns

  3. Alguma coisa não bate certo no n.º de horas ou então está-se numa violação da lei: O tempo máximo de condução diária também está definido. A regra geral são 9 horas, com possibilidade de, não mais de duas vezes por semana, poder ser alargado até um máximo de 10 horas.

    Em termos do período máximo de condução semanal, o condutor pode conduzir durante 6 dias consecutivos, mas respeitando um máximo de 56 horas. 56/7 = 8

    • Tal e qual como disse, mas as 9 ou 10 horas de condução acrescente cargas, descargas e outros trabalhos, o novo cctv prevê uma amplitude horária de 15 horas a troco do pagamento de 8 horas mais a clausula 61 que paga 1.37horas diárias, ou seja pagam 9.36h e o motorista tem de fazer 15h, ou seja 5.24 h de borla diários.
      Esta é a verdade e lendo o cctv que está ou pelo menos estava disponível no site da ANTRAM facilmente se percebe isso.

    • Tem toda a razao, mas os motoristas embora possam conduzir só essas horas, o resto do tempo e efectuado em cargas e descargas. O que o português não sabe, e que muitos começam as as 7h da manha carregando o seu camião. Depois passados duas horas pega no camião e vai descarregar. Quando vai para descarregar , as empresas ainda querem que o motorista descarregue o camião. O que e proibido por lei, pois se tiver um acidente a descarregar o seguro não cobre. Resumindo o motorista sai de casa as 6h da manha e entra em casa as 21h a correr bem. para ganhar 1000 euros, isto a trabalhar entre 12 a 15 horas por semana.. Gostava de ver se algum dos iluminados que esta muito indignado por se ir greve aceitar trabalhar de graça.. Mas o portugues e um ser humanos muito mesquinho. Só pensa no seu bem estar, nem que os outros estejam na miséria,.

  4. Tudo esclarecido. E será que é aceitável para todo o país POR TEMPO INDETERMINADO? Os direitos DE TODOS OS OUTROS não devem ser protegidos? É admissível haver greves sem fim à vista?

  5. Subscrevo a 100%!!
    Que diriam os seus colegas do “último fecha a luz”?
    O Rodrigo, diria o que todos dizem, com sotaque de direita. O Joaquim, com o seu ar de pessoa sensata, ponderado, diria o que toda a gente diz, com sotaque de centro-esquerda. A Inês, sempre muito de alegadamente de esquerda, diria com sotaque de qualquer coisa, o que toda a gente diz. O que toda a gente diz é a superficialidade das coisas, sempre orientando a sua opinião na defesa dos seus interesses. Pior que ter opiniões que não são efectivamente opiniões mas a manifestação dos seus interesses, é o facto de, no fim do dia, apoiar-se sempre a parte mais poderosa em detrimento dos mais vulneráveis. Por muito “imparcial” que se seja, pende-se sempre para o lado do poder.
    Por isso, cara Raquel,a sua lúcida opinião fundamentada e, principalmente, intelectualmente honesta, toca a muito poucos.
    Obrigado pela sua opinião

  6. Os governantes defendem ANTRAM, porque muitos são os Antram!
    Durante as obras da expo 98,muitos governantes passaram a ser donos de grandes empresas de transportes!
    Onde durante a noite se tiravam terras do pavilhão de Portugal para estaleiro da mota companhia, pagas ao peso de ouro, durante o dia a mota companhia pagava a mesmas terras, para aterros na castanheira do Ribatejo, ou para pedreiras na zona de pêro negro!
    Foi assim que governantes se encheram dinheiro, e passaram a ser os senhores da ANTRAM, em conjunto com outros!
    Foi nessas alturas que os transportes poderiam começar a circular todos dias e a todas as horas, incluindo aos sábados domingos e feriados!
    Por estas altura é também ao serviço das modis e pingos doces, podíamos fazer transporte para lojas, mas no regresso tínhamos de ir à PSP ou GNR buscar uma licença para retomar os aos armazéns das modis e pingos doces, etc.
    Foi nessas altura, que se fez um grande atropelo às leis dos transportes e daí em diante nada mais se alterou, porque tudo se preparava, para ser igual nas obras do Aeroporto da Ota!
    Foi só um pequeno desabafo, mas atrás de grandes empresas, estam muitos governantes ou familiares, daí a razão da Antram ser protegida pelo governo.

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