A França, isto é uma revolução?

Vou contar-vos as coisas magnificas que aconteceram em França nestes dias. Extraordinárias. Polícias que retiraram capacetes e cantaram com os manifestantes a Marselhesa; bombeiros que numa homenagem em frente à prefeitura viraram as costas aos políticos vestidos com cores da França e abandonaram a homenagem; manifestantes de extrema-direita expulsos das manifestações por coletes amarelos; portagens ocupadas pelos manifestantes que impedem que se cobre passagem; há sindicatos da polícia que aderiram já à manifestação de amanhã, e sindicatos ferroviários que decidiram não cobrar bilhete aos manifestante que se dirigem amanhã a Paris. Greves e assembleias gerias de estudantes. As centrais sindicais do status quo pedem recuo nos protestos, mas representam no total menos de 7% dos trabalhadores franceses. A França vive uma revolta – não sei se é uma revolução, mas não é um movimento social como outros. É, na minha opinião, a primeira batalha perdida pelo neoliberalismo, depois da sua grande vitória, marcada pela derrota dos mineiros nos anos 80 por Margaret Thatcher. Um novo processo histórico nasceu este mês na França. Tudo pode acontecer – a história acelera agora a uma velocidade que nos parece estonteante. Em 3 dias Macron recuou 2 vezes, não é certo que o seu mandato sobreviva. O movimento já está na Bélgica.

Vi com encolher de ombros a facilidade com que tantos aqui acreditaram que era a extrema-direita a dirigir aquele que já é o maior movimento europeu contra o neoliberalismo.

Continua a espantar-me a facilidade com que acreditamos no senso comum, a credulidade, a ausência de sentido critico. Mas alguém imagina que a extrema-direita tem de perto ou longe alguma organização para dirigir milhões de pessoas nas ruas há 3 semanas? Não, as pessoas acreditam porque querem acreditar. Desta vez não é necessário um aguçado sentido critico, bastava ler o Le Monde, o El País e ver a Euronews para perceber o susto na cara de Le Pen nos últimos dias, o pânico na face de Macron e a situação de crise no poder do Estado. E, sobretudo, o esforço que Macron fez para que Le Pen apareça como responsável e líder de um movimento. Ora, a esquerda aderiu ao Movimento formalmente, e há vários relatos da extrema-direita expulsa das manifestações. Também há de centrais sindicais amarelas – o que a meu ver é errado. O fascismo não pode ter espaço algum, porque é inimigo das liberdades, o reformismo, por pior que seja, deve ter liberdade de manifestação. A cólera do Movimento dirige-se contra as prefeituras, centenas foram atacadas e uma totalmente queimada. A crise dos partidos tradicionais é total, a separação entre representantes e representados de massas. Macron lembrou-se finalmente que foi eleito com menos de 25% dos votos dos franceses. Quantas vezes temos insistido que força eleitoral não é representação social, António Costa e Geringonça?

A França está a viver uma situação inédita desde o Maio de 68. São trabalhadores, professores e cientistas, reformados e no activo, ferroviários e estudantes, sectores médios proletarizados em massa. O centro da luta é a chamada Diagonal do Vazio, uma área geográfica de pequenas e médias cidades que vai do nordeste ao sudoeste do país. Nevers foi o epicentro. Nestas cidades os manifestantes – todos senhores e senhoras, como poderão ver pelas reportagens, envergando o seu colete amarelo – explicam que têm que usar o carro, idosos, para ir às compras a 10 km de distância porque o grande comércio destruiu as mercearias – conta o El País; o saque das pequenas lojas é mínimo, a maioria das lojas destruídas são as de alta costura e os grandes armazéns – diz o Le Monde. A revolta começou contra os impostos, estão “fartos” de em nome da “economia dita verde” pagarem para serem cada vez mais excluídos, do acesso à cidade também; uma senhora conta que chega ao fim do mês com 70 euros; outro que “não tolera viver num país onde o PM veste um fato de 45 mil euros, 3 salários anuais de um operário”; um engenheiro não sabe se “metade dos manifestantes concorda com a outra metade” mas não vai “sair da rua” até que as coisas mudem. A pressão fiscal em França já é mais de 45%. Querem emprego e não o rendimento mínimo. Não são contra a imigração mas defendem que a solução está nos países de origem e que as políticas dos países ricos têm que mudar radicalmente.

Não gosto de violência. Nem de vandalismo ou destruição. Nunca mostrei simpatia pelos jovens desempregados ou sub empregados da periferia que vêm para a rua partir carros em França e Inglaterra. Ao contrário da direita, acho que eles não nasceram vândalos, acho que são animalizados pela exclusão social que a direita promove. Ao contrário de uma parte da esquerda organizada não acho que eles sejam uma esperança, nem uma forma de resistência – só vejo no vandalismo desespero e desistência. Sei também que a violência é mínima, a maioria, larga maioria, dos bairros pobres tem gente que com um esforço incrível vive do trabalho mais mal pago, e não desiste de viver. São os milhares de jovens que trabalham no comércio, construção civil, a vida deles não é partir, mas trabalhar por quase nada. Tenho muitas dúvidas sobre se os “partidores” pertencem à classe trabalhadora – sei que são filhos dela, não sei se não estão mais próximo do lumpen-proletariado. Misturar estes fenómenos, recorrentes na Europa, e minoritários, com o Movimento dos Coletes Amarelos é confundir uma tosta mista com um banquete em Versalhes.

Macron está a caminho de sair mal entrou não porque houve pancadaria no Arco do Triunfo, mas porque os coletes amarelos pararam a circulação de mercadorias há 3 semanas questionando a autoridade do Estado, que não os conseguiu impedir. E viram costas às autoridades políticas locais. O Movimento conta com o apoio oficial de 60% dos franceses.

Sabem que mais? Estou tão feliz estes dias. Ando há anos ouvir falar da “aristocracia” operária europeia e da esperança na periferia do mundo, qualquer movimento camponês com 200 pessoas pessoas na Ásia é mais aplaudido pela esquerda do que uma greve de médicos na Alemanha, logo apelidados de “privilegiados”. Foi por isso que escrevi um livro de História da Europa, que lembrasse o passado de resistência na Europa, a importância dos sectores médios, a centralidade da produção de valor nos países centrais, a tradição de consciência de classe na Europa – superior a qualquer parte do mundo – os trabalhadores na Europa, sem os quais não haverá solução civilizada no mundo. Passámos de um eurocentrismo para ujm periferocentrismo absurdo. Agora…sorte, sorte, sorte mesmo, porque tal precisão temporal não pode ser atribuída à previsão cientifica, é que o meu livro Um Povo na Revolução foi publicado em França justamente este mês. Eles não fazem ideia, os coletes amarelos, como esse pedaço de coincidência irrelevante para a história da humanidade me divertiu. Vou ceder no meu gosto por roupa bonita e vestir o tal do colete amarelo amanhã.

Não sei se é uma revolução. Pode ser. Ou não. Se não for, será adiada mas não evitada. Se estão com medo do mundo do trabalho, não imaginam que a ele devemos tudo o que de mais civilizado possuímos. Não olhem para o Arco do Triunfo em chamas, essas imagens de caos, mas para o triunfo da defesa organizada da cidade humanizada, do emprego com direitos, de um mundo justo, sem impérios e brutalidade social. Os coletes amarelos são isso, quanto mais apoio tiverem de pessoas que acreditam na vida civilizada mais serão ainda parte da solução.

9 thoughts on “A França, isto é uma revolução?

  1. Cara Professora,

    Muito obrigada pelo magnífico texto que me

    esclareceu sobre o que se passa em frança.

    Cordiais cumprimentos. antónia lázaro

    Raquel Varela escreveu no dia sexta, 7/12/2018 à(s) 10:22:

    > Raquel Varela posted: “Vou contar-vos as coisas magnificas que aconteceram > em França nestes dias. Extraordinárias. Polícias que retiraram capacetes e > cantaram com os manifestantes a Marselhesa; bombeiros que numa homenagem em > frente à prefeitura viraram as costas aos políticos ” >

  2. Na(o) Sex, 7 de dez de 2018, 10:22, Raquel Varela escreveu:

    > Raquel Varela posted: “Vou contar-vos as coisas magnificas que aconteceram > em França nestes dias. Extraordinárias. Polícias que retiraram capacetes e > cantaram com os manifestantes a Marselhesa; bombeiros que numa homenagem em > frente à prefeitura viraram as costas aos políticos ” >

  3. “Macron lembrou-se finalmente que foi eleito com menos de 25% dos votos dos franceses. Quantas vezes temos insistido que força eleitoral não é representação social, António Costa e Geringonça?”

    A eleição de Macron foi mais um exemplo, espero que o último, da estupidez do “voto útil”, mesmo que disfarçado, como foi o caso, de “voto contra”. Em Democracia não se “vota contra”, vota-se “por”. Por um programa, por um presente com futuro, por melhores condições de vida, enfim, por uma tradição ou por uma cultura que não se quer deixar morrer ou dissolver no globalizado cinzentismo inculto que nos querem vender como “inevitável”.

    Numa eleição, vota-se “por”. E quando nenhum dos candidatos ou dos partidos concorrentes corresponde aos nossos interesses, não se vota. Não se vota no “menos mau”, porque muitas vezes apenas _parece_ menos mau; e, mesmo que seja de facto “menos mau”, continua a ser mau. O erro das forças que em França se auto-intitulam democráticas foi terem apelado à concentração de votos em Macron; porque o que ele está a fazer não é surpresa para ninguém, é a coerência com o seu passado político e com o seu penssamento político. Melhor teria sido deixá-lo sozinho, a percentagem de votos que o teriam elegido seriam certamente muito menor.

  4. Este não é nenhum movimento de massas genuíno ou espontâneo – mas, apenas mais uma tentativa de “revolução colorida” (h*tps://pt.wikipedia.org/wiki/Revoluções_coloridas) das muitas que têm ocorrido noutros países que não alinham com certos interesses ocidentais.

    (Razão pela qual – tal como ocorreu na “Primavera Árabe”: h*tps://blackfernando.blogs.sapo.pt/que-se-fa-a-constituicao-38423?thread=72983#t72983 – os média de massas tanta cobertura lhe dão, para incentivar a mesmo…)

    Tal como no “Maio de 68” (h*tps://blackfernando.blogs.sapo.pt/o-celebre-maio-de-68-explicado-em-muito-78960) trata-se de uma tentativa de correr com um Presidente de França que não está alinhado com os interesses neoliberais que estão por trás da União Europeia e outras organizações.

    O Macron, antes de ser Presidente de França, trabalhava para a família Rothschild. E, a família Rothschild é uma conhecida família de “sócios” da família real britânica – que está por trás do Brexit, eleição do Donald Trump e outras coisas (h*tps://blackfernando.blogs.sapo.pt/obviamente-tratar-se-a-de-mais-um-153103).

    E, aos interesses que querem manter o “IV Reich”, não interessa ter um Presidente de França que faça parte da facção das elites que quer acabar com este superestado europeu em que vivemos.

    Logo, toca a manipular a típica malta que usa o Facebook (acéfalos que oferecem os seus dados íntimos e privados a uma empresa de fachada da CIA – h*tps://blackfernando.blogs.sapo.pt/ja-aderiram-ao-facebook-49568 – que está ainda sob controlo neoliberal) para aderirem a mais um (de tantos) movimentos que são controlados pelas próprias elites.

    Tivesse este gente alguma coisa na cabeça, faziam parte de novos partidos políticos e tentavam avançar com soluções. O querer meramente que certo líder se vá embora, é a típica exigência dos movimentos controlados cujo real objectivo é apenas substituir umas elites por outras.

  5. Ms. Varela! You clearly din’t make your homework!! Please read more and try to read in between the lines. What you are saying is just plain ignorant. The fact that sections of the left are participating in the protests does not make this a movement one of the left! Saying that Le Pen is in panic is just stupid. Imagine a movement put forward to establishment of the perfect situation for the far right to win the election in 2022 making Le Pen panicking! Please go back to your PhD, which apparently you didn’t finish and read the history of fascism. Also I think you should read a lot more abou the new dynamics of these movements and not trust so much on Le Monde, El País, etc. because not even them still got a clue of what’s goin on yet! Much less you!

  6. Depois do que li sobre os acontecimentos na França, fico me perguntando se um dia o pivô brasileiro , tbm, se revelaria contra a perda de seus direitos que ocorrem todos os dias.
    Se agiriam assim para condenar a pobreza a que é submetida grande parte da população.
    Contra a falta de escolas decentes, saneamento básico, segurança, moradia, emprêgo, saúde e etc…
    VAMOS BRASIL!!! QUE OS FRANCESES SEJAM UM EXEMPLO PARA NOS. QUE NAO QUEIRAMOS SÓ SEUS PERFUMES MARAVILHOSOS, E SIM SEU EXEMPLO DE LUTA!!!

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