Entrevista

“Nós passámos do eurocentrismo ao identitarismo e ao tribalismo localista e isso nega a ideia de processo e de progresso. Quantos milhares e milhões de brasileiros votam no Bolsonaro que são mulheres, negros e até pobres? E quantos fora do Brasil estão a torcer contra o Bolsonaro? Trump não chegou ao poder por acaso… A derrota das Primaveras Árabes e a resignação dos novos partidos como o Podemos, Syrisa ou a Geringonça, em Portugal, incapazes de resolver qualquer questão de fundo, pagaram um preço alto. O protecionismo não é só uma guerra comercial; o internacionalismo está ameaçado e a esquerda perdida, sem rumo – quer porque os problemas são tantos e os quadros dirigentes poucos, quer porque tem falta de sustentação teórica e medo da marginalidade – e respondeu a isso com uma agenda cada vez mais marginal. Veja: um programa de esquerda fala mais de famílias gays do que das famílias no seu conjunto, gays ou não. Creches, horários de trabalho, pagar contas básicas como alimentação, habitação, tempo para os filhos, educar filhos na família nuclear em sociedade urbana, isso são temas comuns a gays e a não gays, no entanto, todo o discurso é voltado para as minorias; como podemos governar assim?


Veja, no caso do feminismo dominante, por exemplo, é particularmente… interessante… perceber isto: a maioria das pessoas que morreram a defender direitos sociais na humanidade são homens heterossexuais, brancos e, provavelmente, machistas. Quem é que constrói os sindicatos que lutam por direitos elementares, como o é o direito ao voto? Na Inglaterra, o Cartismo, no século XIX, quando foram presos e mortos em massa. O que é que é a Revolução Russa? Tem uma participação importantíssima de mulheres – e homens como o são Lenin e Trotsky são os primeiros a reconhecê-lo; presto aqui homenagem a Kollontai – mas a maioria das pessoas que morreram na Primeira Guerra Mundial – e na luta contra a Guerra Mundial e que dirigiram a revolução russa, são homens. De repente, desapareceu a luta de classes e ficámos com a guerra dos sexos.


Sobre o eurocentrismo. Deixe-me voltar lá. O Marxismo, que é o que eu penso ser o nosso melhor instrumental para olhar para a História – não é psicanálise sobre o passado. Agora parece que os Europeus se têm de andar a chicotear num mea culpa judaico-cristão pelo seu passado. Primeiro, eu não andei a colonizar ninguém. Nasci há trinta e nove anos. O meu passado não tem nenhuma ligação – direta – com esta barbárie.
Segundo, as sociedades são divididas: a Europa tanto é o continente de Hitler quanto a Europa da Resistência ao Hitler, houve 300 mil alemães presos e mortos a lutar contra o Hitler; Franco, na revolução espanhola, apoiou-se nos marroquinos para derrotar tropas espanholas e inglesas. Portanto não há só alemães; há vários alemães.


Quando comecei, apaixonada, a estudar o que é a História Global do Trabalho – finalmente nós tínhamos uma visão internacionalista, o desenvolvimento desigual e combinado do Trotsky tinha chegado à Academia, ainda que pela mão da História Global do Trabalho, pelo Marcel van der Linden, que tanto admiro, portanto, de uma forma mediada – e, de repente, parecia que só havia um inimigo: o sindicalista branco europeu, o que é, relativamente, um absurdo!, porque nunca morreu tanta gente na história da humanidade a lutar por direitos como o sindicalista branco europeu. Que era machista, era; a nossa vida é assim, vamos precisar de 400 anos de socialismo para entrar na história e assistir à igualdade plena. Talvez 200, sejamos otimistas, eu sou! Se calhar, a minha avó era mais machista do que esses homens, e por quê? Porque a minha avó nasceu num determinado contexto efetivo em que ela era uma dona de casa e era trabalhadora doméstica (uma das minhas avós, a outra era uma trabalhadora, pequena proprietária agrícola, é diferente). Ela não deixa de ser uma mulher maravilhosa, mas ela é uma mulher da sua hora. Com marcas de seu lugar.


A História não é um tribunal de justiça, não é um divã de psicanálise.


Uma coisa é nós nos colocarmos e defendermos um lado, outra é fazermos julgamentos anacrónicos sobre a História. A colonização é pura barbárie social, mas também foi desenvolvimento técnico. Nós reivindicamos isto ou aquilo? Não! Não se muda o passado, muda-se o futuro. É, aliás, para isso que serve a história. Oliver Sachs, famoso neurologista, tinha um paciente que tinha perdido a memória dos últimos 30 anos e não conseguia recordar-se de nada desde há poucos minutos, a sua vida não tinha interesse algum, porque sem memória ele também não tinha futuro. Não interessava viver no passado, mas era necessário o passado para viver o futuro. Toda a poesia e desejos de transformação derivam de um futuro em aberto. O meu projeto como historiadora é analisar o passado, mas o meu projeto como ser social é uma projeção de futuro!


No futuro que eu defendo não existe barbárie. Não é preciso barbárie para haver desenvolvimento, mas eu não posso fazer essa revisão histórica, até porque isso, em última análise, diminui as classes trabalhadoras, as mulheres, os setores oprimidos e os povos periféricos; são sempre vítimas, nunca são sujeitos, são sempre os vitimizados.
É o mesmo da relação com o feminismo, aliás, a mulher aparece sempre numa posição de vítima, nunca aparece como um sujeito complexo, multifacetado, singular. É uma espécie de realismo socialista, heróico-sentimental. Por exemplo, a mulher, se aparece como mãe retratada nos media é porque é mãe, cria-se um grande debate chamando preconceituosos, ai ai!. Bom, mas as mulheres não são mães? Nós também somos mães. Acho que nós temos de chegar a um estágio, muito desenvolvido da Humanidade, para sermos outro tipo de mães, que é não sermos só mães.


Há riscos, claro, hoje, nesta onda de feminismo ser dominada pelos desejos do Banco Mundial (BM) de incorporar força de trabalho feminina criando competição com os homens – justamente aquilo que estava mal antes vem agora reforçado na onda de feminismo. Um estudo publicado pelo BM calcula em 160,2 triliões de dólares as perdas de “capital humano por as mulheres não estarem plenamente incorporadas ao mercado de trabalho assalariado em muitos países” (Quentin WODON; Benedicte LEROY DE LA BRIERE, 2018, p. 2).
Cuidado com o que desejas, já diziam todos os contos infantis. Pode tornar-se realidade. Com a automação e mecanização, as mulheres podem fazer os trabalhos de homens, estar numa linha de montagem da indústria automóvel 8 horas seguidas, com uma pausa de 7 minutos. Ele ajuda com as crianças e ela vai para a linha de montagem, intensificação à escala global da exploração. Na ordem da acumulação de capital, as empresas querem lucro e o gênero desaparece para sermos todos trabalhadores plenamente alienados, inclusive alienados do corpo e do sexo. No mundo do capital, somos todos nem homens nem mulheres, mercadorias sem sexo ou gênero. O que é um absurdo, há diferenças entre nós que têm que ser respeitadas, igualdade é respeito pela diferença.
(…)
A esquerda aderiu a esta marginalidade em peso. Há uns meses, em Porto Alegre, uma professora dirigente sindical, por acaso mulher negra – parecia um script encomendado, disse-me, em público, aliás, que era dirigente dos professores e numa reunião estiveram duas horas a discutir se devia haver uma casa de banho trans, e não conseguiram definir a pauta de luta contra os ataques trabalhistas. No mundo do capital perfeito, só vai haver uma casa de banho, a do trabalhador mercadoria. E a esquerda caiu nesta casca de banana como um patinho ingénuo. Pior: a direita aparece agora como campeã da liberdade de expressão e do bom senso. É terrível. Até nos calamos com denúncias públicas que transformaram algumas universidades em espaços aberrantes de perseguição a professores, onde todos desconfiam de todos, com murais públicos de denúncias! Conheço professoras mulheres que toda a vida lutaram por direitos acusadas de racismo porque exigiram mais trabalho a alunos negros para melhorarem as avaliações porque sabiam pouco, homens muito decentes acusados de abuso sexual porque as mulheres quiseram vingar-se. E tudo isto sem julgamentos ou advogados, é terrível, como nos podemos calar? E direitos processuais e jurídicos, não há?
Quando esta onda de denúncias sem olhar a meios tiver um fim, vai ser triste de ver; a reação dos homens enraivecidos e injustiçados, a direita a cavalgar o princípio da inversão do ónus da prova e a não presunção de inocência, como nos EUA, em que não há investigação e julgamentos com defesa pública, mas apenas shows televisivos com denúncias, quando tudo isto for dirigido contra os sindicalistas e revolucionários e intelectuais críticos, quando a direita vier dizer aos trabalhadores organizados “agora vão provar do veneno” da ausência de respeito pelas leis processuais, onde isto tudo vai parar?


A desigualdade entre sexos/género ou de etnia é um assunto tremendamente grave, não pode ser tratado com esta leviandade. É a defesa das mulheres e dos oprimidos que está em causa, não pode ser o vale tudo. No outro dia disseram a um colega meu emérito, um tipo que escreveu livros sobre igualdade de gênero quando não era moda, fez a tese sobre o tema há 40 anos, ninguém o fazia em Portugal, disseram-lhe, no Brasil, que ele não podia falar de racismo porque era branco. Patético! O que une a extrema-direita na Áustria, no Brasil e nos EUA não é a imigração, xenofobia, favelas, são todos casos diferentes, o que os une e lhes dá força é a derrota de um programa de esquerda universal e transformador, radicalmente reformadora que ofereça um programa de vida decente e feliz para toda a humanidade. A derrota sangrenta das primaveras árabes, o catatonismo dos novos partidos como o Syrisa ou Podemos, o caos na Síria, a destruição da Venezuela, sem revolução e sem governo; estamos a pagar um preço altíssimo…


A isto junta-se o risco sério de uma onda conservadora de retorno ao lar, à família nuclear, como espaço supremo da felicidade, em que o homem é chamado a dividir esse espaço em vez de ambos, homem e mulher, conquistarem, pela redução do horário de trabalho e o Estado Social, a esfera pública.
Por exemplo, eu penso que, hoje, um dos maiores retrocessos da Humanidade, e que o feminismo não quer enfrentar, é que uma boa parte das mulheres do mundo tem como o projeto de vida mais feliz das suas vidas ser mãe. E isso tem a ver com dois fenômenos, o que é o trabalho e o que não é a política. A perda de centralidade do trabalho criador, a degradação das condições de trabalho e vida, e as expetativas declinantes na esfera pública tornaram o lar o suprassumo da paz, o ninho que nos tira da guerra civil em que se transformou a sociedade. As mulheres não se reveem – nem as mulheres nem os homens! – no projeto de trabalho como protoforma criadora – e emancipadora.
O trabalho não é nada criativo, porque é padronizado pelo capital. E não é emancipador, porque ele não é um palco coletivo de luta política e de luta sindical, ele é um palco de subjugação permanente; os partidos, os sindicatos ou a mídia não existem, ou então são gestores do status quo com mais ou menos boas intenções.


E o retorno ao núcleo familiar restrito como único projeto é um retrocesso profundo, porque não há nada mais des-sexualizante do que passar um dia no trabalho, duas horas no metrô e ônibus, cozinhar, estender roupa, ajudar os filhos nos TPC e a seguir vamos quê, fazer amor? A maioria dos casais, na verdade, vai gerindo a vida em comum, com muita civilidade, aturam-se, não se desejam, querem ou emocionam. Até inventaram a teoria de que a paixão morre naturalmente. O que “mata naturalmente” é a vida competitiva em sociedade. A vida do núcleo familiar moderna, urbana, sem apoio, é insuportável. Muitos resolveram isso vivendo sozinhos e com animais. Mas o que nós temos é que mudar o modo de vida, reduzir o trabalho, lutar, transformar, viver sem medo, com segurança económica, direito à saúde – não há paz na escassez e no medo -, ter serviços coletivos e restaurantes públicos, lavandarias públicas, socializar o trabalho doméstico e viver intensamente a vida; aí sim, viver intensamente e com paixão a vida com os nossos maridos, mulheres, filhos, amigos. O trabalho no capitalismo está a destruir-nos como seres humanos plenos.


Ora, os sindicatos e partidos que são hoje sobretudo dirigidos ainda por homens podem ter um papel construtor nisto; os homens têm que perceber que, por terem mais força física ou poder, devem proteger as mulheres, não as ver como inimigas que vão roubar-lhes o lugar de trabalho ou colocá-los a lavar loiça. Se o Estado não tem creches, faça-as o sindicato; se uma mulher é perseguida, tomem a decisão de ir ter com o perseguidor e não o permitir; se uma mulher entra de novo no trabalho, lutem com ela e por ela por salário igual. Não é possível que uma mulher se sinta mais segura em ir denunciar um caso de assédio ao patrão do que ao sindicato! O sindicato tem que proteger as mulheres. Proteger não é criar a possibilidade de lançar o caos da denúncia pública e da desconfiança generalizada! Mas tem que proteger!”

Uma das entrevistas que fiz que mais me desafiou e permitiu aprender, o mérito é da investigadora Sara de Athouguia Filipe – no link a entrevista completa. Explico as minhas críticas ao feminismo ( e é na Revista de Estudos Feministas), da crise da esquerda, da Europa como centro da História e do internacionalismo que aí nasceu e aí morreu, de fantasmas do passado e do ofício de historiador. Da minha formação cultural. Da minha relação com os partidos, e da transformação do trabalho, e dos sindicatos. É muito longa e foi feita há 2 anos, como é numa revista académicas passa por revisões por pares, e só agora foi publicada. Espero que gostem, concordando ou não, que seja útil para ajudar a pensar o mundo hoje.

Sara de Athouguia Filipe é doutoranda no Departamento de História e Civilização do European University Institute. Suas áreas de investigação incluem História Cultural e Intelectual, História Política e Elites Políticas (séculos XIX-XX). Em 2016, lhe foi conferido o grau de Mestre em Ciência Política pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

https://www.scielo.br/j/ref/a/bjCwJFrmyFmVvfJYzC5yZbP/?lang=pt&fbclid=IwAR3Tp3_eaMVU0pqzeD7ISvTF2iw_d3ArPKpgEvV6zzKBF8P8vRfwVhttmzg

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2 thoughts on “Entrevista

  1. Querida Raquel. Gostei muito da entrevista. Voltemos ao básico. É isso. Concentrarmo-nos no essencial. Mas há muita gente a viver do fogo de artifício. Força. Carlos Matos Gomes

    Raquel Varela escreveu no dia quarta, 4/08/2021 à(s) 10:04:

    > Raquel Varela posted: ” “Nós passámos do eurocentrismo ao identitarismo e > ao tribalismo localista e isso nega a ideia de processo e de progresso. > Quantos milhares e milhões de brasileiros votam no Bolsonaro que são > mulheres, negros e até pobres? E quantos fora do Brasil estão a” >

  2. Excelente… Mas se me permite queria só salientar esta sua posição/análise, como tantas outras
    de excelente pensamento e de grande importância para todos nós…

    (…)” Mas o que nós temos é que mudar o modo de vida, reduzir o trabalho, lutar, transformar, viver sem medo, com segurança económica, direito à saúde – não há paz na escassez e no medo -, ter serviços coletivos e restaurantes públicos, lavandarias públicas, socializar o trabalho doméstico e viver intensamente a vida; aí sim, viver intensamente e com paixão a vida com os nossos maridos, mulheres, filhos, amigos. O trabalho no capitalismo está a destruir-nos como seres humanos plenos.

    Ora, os sindicatos e partidos que são hoje sobretudo dirigidos ainda por homens podem ter um papel construtor nisto; os homens têm que perceber que, por terem mais força física ou poder, devem proteger as mulheres, não as ver como inimigas que vão roubar-lhes o lugar de trabalho ou colocá-los a lavar loiça. Se o Estado não tem creches, faça-as o sindicato; se uma mulher é perseguida, tomem a decisão de ir ter com o perseguidor e não o permitir; se uma mulher entra de novo no trabalho, lutem com ela e por ela por salário igual. Não é possível que uma mulher se sinta mais segura em ir denunciar um caso de assédio ao patrão do que ao sindicato! O sindicato tem que proteger as mulheres. Proteger não é criar a possibilidade de lançar o caos da denúncia pública e da desconfiança generalizada! Mas tem que proteger!
    E as mulheres têm que deixar o “papel” de vítima, e ir para a frente dos sindicatos e partidos de esquerda e dirigi-los, em vez de só dirigirem grupos de mulheres dentro dos partidos. Dirigiam o conjunto das organizações e não a secção feminina das organizações. Têm que ter um papel de direção da sociedade como um todo e não só das questões ditas femininas. Precisamos de mais Rosas Luxemburgo.”!

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