Duvido, logo existo

Como sabem ninguém sabe o que se está a passar. E desta vez todos mais ou menos assumem-no, e nem a culpada variante inglesa é dado como certa. Depois de meses de falsas certezas, dedos apontados, e decisões erradas, estamos a assistir aos que tinham mais certezas admitir que não sabem o que se passa. Tirando uma lamentável entrevista de Carlos Antunes ontem no Público, onde pede “que o medo volte” – sic – muitos dos que têm delineado as políticas junto do Governo e o Governo começam a admitir que não sabem tudo. Não há nada de errado em admitir o desconhecimento. E, quando é assim, diz o método científico que devemos parar de insistir com as hipóteses anteriores e fazer novas questões e colocar novas hipóteses. Perguntar, questionar. Não sei o que se está a passar mas temo o pior – temo que o drama não esteja nem na variante nem no vírus mas na organização e estratégia delineada. As questões que a mim, conhecendo o país e o SNS, me surgem são estas. Haverá outras, porque muito está por saber.

Há 10 mil infectados entre os profissionais de saúde, que estão por isso afastados do SNS, sem pessoal suficiente, este número é normal e comparável a outros países? Idem nos lares, há centenas de lares com o pessoal e todos os utentes infectados, segundo relatos (não há dados concretos), isso significa que idosos estáveis que estavam nos lares estão a ser mandados para os hospitais, entupindo-os, ou significa que não há pessoal para atender as doenças de base destes idosos, que estão a morrer não de COVID mas da falta da assistência noutras doenças? É o caminho mais correcto – pergunto com sincera dúvida – tirar o pessoal de saúde dos lares e hospitais porque testam positivo mas não têm sintomas? Esta atitude, que seria talvez a ideal numa situação normal, não é pior do que ficarem sem ninguém de todo? Como há tantos surtos dentro dos hospitais? A divisão entre COVID e não COVID, só recorrendo ao teste positivo mas não ao diagnóstico da doença, foi a mais correcta para enfrentar a pandemia, no meio desta avalanche, e assim atrasando brutalmente as triagens e mesmo assim não evitando a expansão do contágio? Confundir casos com positivos não foi o erro primordial aqui nisto tudo? Cada vez mais com o vírus espalhado na comunidade quase todos darão positivo. Mesmo os que estão doentes de outras coisas. Estamos a ter uma táctica de combate que provavelmente está a ser a pior de todas. Junta-se a isto a pobreza, o frio e sermos um dos países mais envelhecidos da Europa.

Sei que querem insistir, e o medo hoje suspendeu o uso da razão, que a solução para tudo isto é o confinamento, e que a culpa de tudo isto é falta de confinamento. Desde sempre, e agora cada vez mais, essa é a resposta menos consistente com a ciência. A resposta sempre foi o distanciamento físico, lavar as mãos, cuidar dos idosos, e reforçar o SNS. A “maldita” Suécia tem as crianças na escola, em ensino misto em algumas regiões, até aos 16 anos sem máscara, restaurantes abertos sem máscara, e agora as notícias da Suécia são sobre o descalabro de Portugal. Idem para a Rússia, Japão, etc, há muitos países que não tomaram estas decisões de confinamento a não ser em momentos muito excepcionais, e estão menos mal do que outros que as tomaram como Portugal, Inglaterra ou Israel. Todos a braços com números descontrolados, pese embora a expansão da vacina e dos confinamentos. Porquê? Não sabemos, o que sabemos é que confinar ou não confinar não responde à expansão do vírus. Quem foi sempre contra o confinamento nunca foi contra salvar vidas – o que disse desde o início era que os confinamentos não iriam evitar a expansão do vírus. E não evitaram.

É fácil dar respostas simples – estivessem fechados no Natal! – mais difícil, porém, é olhar para a realidade que nos questiona todos os dias. Penso que Portugal está a assistir à tempestade perfeita, um país envelhecido, pobre, e um SNS destruído. Para mim o grande sinal que me leva a esta conclusão vem dos profissionais de saúde, em particular mas não só dos médicos – era daí que deviam chegar os sinais de confiança e segurança, a razão e não as emoções desesperada, é daí porém que vêm os relatos mais perdidos – e que acho que são reais. Acho, é a minha hipótese, que a desorganização crónica do SNS levou os profissionais de saúde a não terem meios – entre os meios conta-se o ânimo, a confiança, as relações entre pares sólidas, o domínio da organização seu próprio local de trabalho (com o fim da gestão democrática), etc – para enfrentarem aquela que é certamente a mais complexa situação da sua profissão até hoje. Não estão a decidir como organizar um hospital para salvar vidas, pergunta que teriam que lhes fazer em Março e há décadas, e que nunca lhes foi feita (todas as decisões virem sempre de cima), mas estão a, segundo eles próprios, levá-los a decidir quem não vão tratar. Só se fala em ventiladores – esqueceram-se que a motivação e o domínio autónomo do local de trabalho é fundamental para salvar vidas. Em qualquer circunstância, quanto mais numa pandemia.

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4 thoughts on “Duvido, logo existo

  1. Naturalmente que há verdade na análise da Raquel e muito sentido nas questões e dúvidas levantadas. Eu tb não sei muitas coisas, é verdade, mas sei bem as desculpas todas da narrativa oficial.
    Há uma coisa que eu sei. Imensas pessoas hospitalizadas não precisavam de o ser se houvesse na rectaguarda o tratamento e a prevenção que deveria. Existem diversos medicamentos que curam o C-19 sem necessidade de hospitalizar os doentes. Esses não são usados porquê?? As Ordens dos Médicos impedem a sua aplicação porquê???
    Há substâncias que reforçam bastante a nossa imunidade natural. Não se aposta na prevenção porquê??
    Creio que o nosso amigo Bill Gates sabe bem as respostas.
    Porque será???

  2. Raquel, na Irlanda 6834 profissionais de saúde infectados nos últimos 14 dias; população = 4,5 milhões, novos casos na últimas semana em ligeiro decréscimo cerca de 2000 a 3000/dia, mortes diárias ainda a crescer todos os dias, 77 hoje. Irlanda em lockdown total desde 26/12, escolas fechadas desde 18/12.

    • Não sei em que Irlanda você vive, só se é a do Norte. Em Dublin está tudo tranquilo. Com algumas restrições, mas nada da paranóia que se vê~e em Portugal. Portugal parece um lugar de defuntos mascarados. Gente que já morreu por dentro… por fora é só uma questão de tempo. E ainda votam no presidente que os está a ajudar a afundar… mais sinistro que isto..

  3. Brilhante artigo de opinião. “Duvido, logo existo.” É exactamente isso Raquel Varela. Deveria ser a primeira lição dada em qualquer escola. Porque duvidar é o mínimo que podemos fazer, em relação a tudo o que nos rodeia. Desde há muito tempo que sigo uma regra: quando chego a um local onde todos pensam e agem da mesma forma, começo por duvidar. Prefiro sempre um conjunto de opiniões diversas, dá mais trabalho (e prazer), mas as conclusões, se existirem, serão mais fundamentadas e sinónimo de uma base crítica e livre.

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