Nasceu em Cascais, a 15 de Outubro de 1978. Tem uma costela alentejana e outra de Alcobaça. É casada e tem dois filhos gémeos. Professora universitária, investigadora na Universidade Nova de Lisboa e investigadora no Instituto Internacional de História Social de Amesterdão, Raquel Varela especializou-se em História do global do Trabalho, História do Trabalho, das condições de Trabalho e História da Europa do século XX. Coordena um grupo de estudos do trabalho na Universidade Nova de Lisboa, o único do País e tem mais de 30 livros publicados. É utente do Serviço Nacional de Saúde e tem médico de família. Diz-se apaixonada por viagens, montanhismo e natureza. Adora Portugal, os portugueses, o vinho e a gastronomia e é fã de jazz.
Historiadora que se destacou na defesa dos Enfermeiros durante a greve cirúrgica, está a realizar um estudo para a Ordem dos Enfermeiros sobre as condições de trabalho e de vida da classe de Enfermagem em Portugal. Raquel Varela promete uma radiografia inédita das condições de trabalho dos Enfermeiros em Portugal
O que a levou a enveredar pela área do Trabalho?
O trabalho é a coisa mais importante da nossa sociedade. A nossa principal identidade é o trabalho. Quando nos queremos definir, dizemos o que fazemos. Diz-me o que fazes, dir-te-ei quem és! Temos sempre grandes notícias sobre as empresas, mas nunca sobre as pessoas que trabalham nessas empresas. Eu tenho um enorme respeito pelo que cada um faz, já que permite não só a reprodução da existência, mas também a arte, o desenvolvimento da ciência, descobertas tecnológicas, coisas simples da vida.
Como é que a sociedade percepcionou o braço de ferro entre a classe de Enfermagem e o Governo com a requisição civil?
Eu acho que a força que o PS teve ao utilizar a requisição civil é menor do que se pensa. A ausência de uma maioria absoluta teve precisamente a ver com a forma como reagiu, com mão pesada contra sectores profissionais absolutamente cheios de razão, como os estivadores, motoristas, Enfermeiros e outros que disseram que os seus salários eram acintosamente baixos. Na verdade, o salário mínimo real em Portugal está calculado em 1000 euros e nós temos todas estas categorias a ganhar abaixo deste valor. Acredito que o PS perdeu a maioria absoluta, em grande medida, como contestação política pela forma como reagiu com estes sectores. A chamada greve cirúrgica é uma belíssima ideia e não é uma ideia nova. Há 200 anos que é praticada por várias associações de trabalhadores, ou seja, para um sector e outros solidarizam-se. É, aliás, o que se passa nas escolas. Os professores solidarizam-se com os funcionários, os estivadores mais velhos com os mais novos e é assim que se fazem greves bem-sucedidas. Demonstrou uma capacidade de mobilização absolutamente extraordinária. As greves mais solidárias e eficazes são as greves dos Enfermeiros canadianos e norte-americanos, todas recorrem a fundos públicos de solidariedade. É algo absolutamente usual. Cá é que, para tentar destruir a greve, o Governo tentou fazer uma campanha contra o fundo de greve, quando este permite apenas a capacidade dos trabalhadores aguentarem uma greve que faz o outro lado ceder. Mas também diria que os Enfermeiros deviam ter sido mais eficazes a passar a ideia de que no SNS são os primeiros a defender a qualidade de vida dos doentes. Sabemos perfeitamente que ninguém morre por causa de uma greve de Enfermeiros e que se morre por longas listas de espera, que não são cumpridas fora de tempos de greve. Eu, como cidadã, reivindico a coragem, o rigor e o papel desta greve. Devemos apoiar uma greve baseada em revindicações justas e feita por pessoas sérias, com sentido de justiça e foi-o inteiramente.
Considera que houve uma embate político entre o Ministério da Saúde e a Ordem dos Enfermeiros?
O Ministério da Saúde tentou personalizar esta greve na figura da Bastonária, o que foi um erro, porque se colocou contra 70 mil Enfermeiros, muitos dos quais são votantes da esquerda e apoiaram a greve. O sindicato mais afecto à esquerda, o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, teve uma posição titubeante face à greve e perdeu muito espaço com essa posição. A mim parece-me que os Sindicatos têm de ser independentes de qualquer Governo. O sindicalismo tem de dar resposta aos anseios dos seu sector e não do Governo A ou B. Tentaram transformar uma greve justíssima contra a figura da Bastonária e contribuíram para que esta fosse eleita com uma votação absolutamente histórica, mostrando os Enfermeiros massivamente unidos em defesa da classe. Por isso é que foi usada a bomba atómica da requisição civil, como modo de dissuadir outros sectores do serviço público e do estado social.
E a bomba atómica, funcionou?
Eu acho que em parte funcionou. A greve não foi vitoriosa e não alcançou os objectivos. Não houve uma derrota histórica e muita água vai correr debaixo da ponte nos próximos anos. Por outro lado, os Enfermeiros demonstraram uma capacidade de união, uma nova forma de fazer greves e serviram de exemplo para outras classes. É muito curioso que, a seguir à greve dos Enfermeiros, os Professores tenham criado um fundo de greve idêntico mas não o tornaram público. Isso significa que há muitos sectores a olhar para os Enfermeiros como exemplo de novas formas de luta. Foi isso que a greve dos Enfermeiros demonstrou, ao contrário do que o Presidente da Republica, de forma muito descuidada, chamou de movimentos inorgânicos. As pessoas deram a cara, organizaram ‘sites’, fundos de greve, viram as suas vidas pessoais e profissionais indecentemente escrutinadas. Mais transparente não podiam ter sido.
Neste momento, está a realizar um estudo para a Ordem dos Enfermeiros sobre as condições de trabalho e de vida da classe de Enfermagem em Portugal. Embora ainda esteja a decorrer, há análises que pode já destacar?
Está numa fase preliminar e vai ser um trabalho longo durante dois anos. Vamos ter uma radiografia das condições de trabalho dos Enfermeiros em Portugal e vamos relacioná-la com o ‘burnout’ e o desgaste. Ou seja, de que forma é que estas condições de trabalho têm impacto no desgaste e esgotamento emocional dos profissionais. Ressalvo, neste momento, a importância do sentido de trabalho. Estamos a lidar com profissionais que não estão a montar carros, estão a cuidar de pessoas. Isto é profundamente humanizador. Há um sentido humano da profissão, que é profundamente essencial para o estudo. A outra questão que destaco é o sentido de enorme injustiça porque é uma profissão muito qualificada, que sofreu grandes transformações ao longo das últimas três décadas e que não tem o reconhecimento devido a esse nível. Se relacionarmos o valor do salário com o tipo de formação, percebemos que temos umas das profissões mais mal pagas em Portugal. Temos lidado com profissionais com uma enorme consciência do seu trabalho, do que é ser Enfermeiro e quais são os seus desafios. Estamos a lidar com um enorme grau de desmoralização do sector. Há muita gente entristecida com o rumo da profissão. Os níveis de exaustão são muito perigosos, tal como o excesso de horas e tarefas a cumprir.
Qual é a percepção da sociedade relativamente àquilo que os Enfermeiros recebem no final do mês?
É preciso distinguir a opinião pública da publicada. Eu não vejo, nas nossas investigações e no contacto com os trabalhadores, ninguém a opor-se a melhores salários e ninguém a apoiar esta política miserabilística dos sucessivos Governos. Acho que é importante distinguir o que a população pensa do que se pensa que a população pensa.
Entre as redes sociais e os órgãos de comunicação tradicionais, existe um grande fosso. Como é que se pode encontrar o pulso aos temas que importam no meio de tanta informação?
O mundo do trabalho em Portugal tem de ter os seus próprios media. É a resposta essencial. As pessoas têm de ter acesso à verdade e não à opinião de cada um. Eu não posso ter a opinião sobre se os Enfermeiros ganham bem ou mal, se não discutir factualmente quanto é que ganham e qual é o custo de vida, independentemente da minha opinião. Não podemos estar a mandar bitaites sem ter informação clara e para isso é preciso ter mais conteúdo para além dos meios de comunicação do Estado ou empresariais. Os sindicatos, associações cívicas, as ordens devem produzir o seu próprio jornalismo porque deve existir confronto de opiniões.
O Serviço Nacional de Saúde continua problemático. É possível resolver as várias questões ou é necessário olhar para o SNS de outro modo?
É preciso reestruturá-lo de baixo para cima e há três coisas que precisam de ser feitas. Têm de ser introduzidas carreiras para os profissionais de saúde com exclusividade e salários e contratos de trabalho atractivos e penso que se isso for introduzido, a maior parte dos profissionais não vai para o privado. A segunda é a gestão democrática, ou seja, os trabalhadores têm de ser ouvidos. Eles pensam muito e têm de ser escutados em questões laborais. A terceira é o SNS deixar de concorrer consigo próprio. Deve ser um serviço realmente nacional, planeado e coordenado. Estas três condições são elementares para termos um SNS robusto. Nós só temos uma saúde de excelência se tivermos uma saúde para dez milhões de pessoas. Só posso ter um enfermeiro especialista de excelência se fizer muitos partos complicados portanto precisamos de escala. Para ser um SNS de excelência, deve ser bom para todos.
Porque é que sucessivos Governos não executam essas reformas e as põem em prática?
Com muita sinceridade, penso que os vários Governos do PS e PSD têm feito é abrir espaço para os privados. Ideologicamente, comprometem-se com o mercado e olham para ele como um espaço de liberdade e de negócio. Olham para a saúde como um negócio porque representam esses interesses. Nós acabamos por ter uma espécie de cavalo de tróia dentro do SNS.
O Orçamento de Estado para 2020 é suficiente para enfrentar os problemas que referiu?
Não, de todo. Há uma suborçamentação crónica e serve para pagar dívidas em atraso. As contratações que vão ser feitas são em moldes que têm sido constantes nos últimos anos e acabam por ser geridas em declínio, como disse uma deputada socialista quando lhe fugiu a boca para a verdade.
Concorda que se diga que existem duas facetas do SNS, uma nas zonas do interior do país e outra nas grandes metrópoles?
Sim mas esse não é um assunto fácil de resolver. A litoralização do país e a desertificação do interior são problemas complexos mas podemos pegar em exemplos de países que lidam com esses assuntos há mais tempo, como o Canadá, e perceber quais podem ser os mecanismos de compensação, como reformas mais cedo, melhores salários, redução de horário de trabalho. Temos de olhar para países com políticas bem sucedidas nesta área e ver como é que podemos adaptar ao nosso país, senão só estamos a servir uma fatia do país.
https://www.ordemenfermeiros.pt/noticias/conteudos/cuida-62-já-dispon%C3%ADvel-online/
“A nossa principal identidade é o trabalho.”
Com tantas dimensões identificativas existentes em cada um de nós, esta está “lá em cima”…