Em defesa do direito à greve como garantia das liberdades democráticas

O direito à greve é um dos direitos estruturantes da nossa (e de qualquer) sociedade democrática, porquanto é o direito através do qual os trabalhadores atuam na defesa de interesses coletivos.

Independentemente da posição que cada cidadão tenha sobre a justeza ou razoabilidade da greve dos motoristas de matérias perigosas iniciada a 12 de agosto, é certo que nos termos do Art. 57º – Direito à greve e proibição do lock-out –, número 2 da Constituição, “Compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito”.

Preocupa-nos sim, à luz do texto constitucional, a atuação do Estado português, que coloca frontalmente em causa o exercício objetivo do direito à greve e, pior do que isso, abre um perigoso precedente para o futuro.

Essa atuação abusiva iniciou-se com a definição unilateral dos serviços mínimos a assegurar pelos sindicatos, uma vez falhados os mecanismos previstos na lei para a definição desses serviços. Nas vinte alíneas do Despacho n.º 63/2019 através das quais o Governo especifica os serviços a serem prestados, é exigida a mobilização de pelo menos 50% dos trabalhadores para todo o trabalho dos motoristas em greve. Na maior parte dos casos – 12 das 20 situações listadas – a definição de serviços mínimos exige a presença de 75% (em cinco situações) ou mesmo 100% (sete situações) dos trabalhadores, o que configura muito mais do que a “satisfação de necessidades sociais impreteríveis” prevista na Constituição (Art. 57º, nº 3), antes respondendo a uma decisão política de limitar os impactos económicos da greve através da definição de serviços máximos em vez de mínimos, cerceando dessa forma a liberdade sindical dos trabalhadores em violação deste princípio constitucional basilar e do Art. 538, nº 5 do Código do Trabalho, que determina que “A definição dos serviços mínimos deve respeitar os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade”.

Para além da forma como foram definidos os serviços mínimos, o Estado prosseguiu o ataque ao direito à greve através da forma como recorreu à requisição civil – desde logo invocando, ainda antes do início da greve, um conceito de “requisição civil preventiva” que não tem qualquer base legal e para a qual o Governo procurou escudar-se num parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (aliás inconclusivo). Mais do que isso, o Governo acionou a requisição civil no primeiro dia da greve, após tomada de posição da associação patronal e antes que se confirmasse de forma independente qualquer incumprimento, tendo mantido acionada a requisição civil mesmo em dias e nas situações em que se confirmava o cumprimento dos serviços mínimos por parte dos sindicatos.

Por último, é altamente perturbadora a mobilização de agentes da polícia e de militares das Forças Armadas para realizarem trabalhos de escolta de transportes de combustível e, pior, serviços de condução de veículos de transporte em substituição dos profissionais credenciados, numa clara violação da lei que configura a mobilização de agentes públicos da força armada do Estado para prestarem serviços a empresas privadas. Tal abuso da utilização das forças da ordem explica as situações já reportadas de redundâncias na prestação dos serviços mínimos, por exemplo nos aeroportos de Lisboa e Faro, onde veículos escalados para o fornecimento de combustível regressaram às bases por estarem cheios os depósitos destas instalações.

A mobilização das Forças Armadas afigura-se claramente ilegal, não só pela utilização dos militares como fura-greves fornecidos a custo zero à associação patronal que constitui uma das partes em conflito, mas por se fazer sem que tenha sido decretado o estado de sítio ou o estado de emergência exigidos pela Constituição e a lei. O Governo somou à requisição civil uma requisição militar, disponibilizando os militares às empresas privadas, no desempenho de uma missão que não foi planeada pela estrutura das Forças Armadas e não é executada em veículos militares ou militarizados, mas se resume apenas ao cumprimento de escalas de serviço definidas pelas empresas privadas beneficiárias desta requisição militar.

Todas estas medidas colocadas em curso pelo Governo, com a aquiescência do Presidente da República e comandante supremo das Forças Armadas, configuram não só um boicote objetivo e ilegal à greve atualmente em curso mas criam um precedente perigoso para o futuro. A ser aceite, a atuação do Estado concederá a qualquer Governo o poder prático de veto sobre qualquer greve convocada no futuro, através do abuso dos mecanismos de definição de serviços mínimos e de requisição civil, a que se junta a requisição militar com a qual, à margem dos Estados-Maior dos Ramos das Forças Armadas, será possível mobilizar trabalhadores pagos pelo Estado para, muito mais do que satisfazer as necessidades sociais impreteríveis previstas na Constituição, minorar ou eliminar os impactos económicos e políticos de qualquer greve, efetivamente anulando o direito fundamental consagrado na Constituição.

Por tudo o exposto, os signatários apelam ao Governo que, de imediato:

i) faça cessar a requisição civil e a requisição militar efetivamente em curso, por configurarem um ataque frontal ao direito à greve sem, como se vê, serem necessários à satisfação das necessidades sociais impreteríveis previstas na Constituição;

ii) revogue o Despacho n.º 63/2019, redefinindo os serviços mínimos de acordo com a letra e o espírito da Constituição e da lei, limitando-os às atividades necessárias para garantir a proteção da vida e da integridade física dos cidadãos, bem como da segurança nacional.

Apelamos também ao Presidente da República para que, no cumprimento das suas responsabilidades indeclináveis como comandante supremo das Forças Armadas, impeça a instrumentalização das Forças Armadas num conflito laboral entre organizações privadas, ordenando a sua retirada da missão que, ilegal e abusivamente, lhe foi atribuída pelo Governo.

16 de Agosto de 2019

Primeiros subscritores:

André Freire, Professor
António Garcia Pereira, Advogado
Carlos Marques, Engenheiro
Carmo Bica, Autarca, Engenheira agrónoma
Henrique Neto, Empresário
João Luís Barreto Guimarães, médico, Poeta
João Paulo Batalha, Consultor
Luís Aguiar-Conraria, Professor
Mário Frota, Jurisconsulto
Mário Tomé, Militar
Paulo Morais, Professor
Raquel Varela, Historiador
Rita Garcia Pereira, Advogada

Subscrevem ainda

António Branco, professor universitário
Bargão dos Santos, major general médico
José Mário Branco, músico,
Pedro Soares, professor universitário, deputado
Manuel Carlos silva, sociólogo, prof universitário
Antonio Ricardo, activista social
Fernando Nunes da Silva, professor catedrático IST
Rui Cortes, professor catedrático UTAD

3 thoughts on “Em defesa do direito à greve como garantia das liberdades democráticas

  1. No texto é mencionado o Art. 538, nº 5 do Código do Trabalho, que determina que “A definição dos serviços mínimos deve respeitar os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade”.

    A greve foi decretada por tempo indeterminado. Seria, segundo os dirigentes do sindicato, uma bomba atómica. E no decurso da greve anteciparam que vinha aí o caos.

    Não avançaram com armas de precisão contra o seus opositores – a ANTRAM- mas sim com armas de destruição maciça, procurando atingir todos os portugueses, apostando no impacto dos danos colaterais.

    Perante este cenário, as medidas tomadas pelo governo até pecaram por escassas, no que respeita aos princípios “da necessidade, da adequação e da proporcionalidade”.

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