Ontem fui pedir o passe social, aqui no meu bairro privilegiado da Linha. Ando de comboio várias vezes por mês, ao contrário do líder do CDS, que andou uma vez na vida. Há anos que há “supressão de comboios”. Portanto, se vou para reuniões ou aulas com horário marcado vou de carro, não tenho opção. Mesmo assim insisto no passe, eis que chego, e sou informada, às 4 da tarde, que agora a bilheteira fecha às 3 da tarde, “falta de pessoal”. Mas, este não era o país que tinha funcionários públicos a mais?
Nada que se compare, ainda, com o nosso casamento no ano passado, chegámos pelas 4 da tarde à Fontes Pereira de Melo, registos centrais, não foi a Ansiães. Um negro, Securitas, cara de mau, diz-me que não há já senhas, vejo na máquina que casamentos e registos está cortado, com o x vermelho, mas divórcios aberto. Perguntei-lhe se não dava para tirar a dos divórcios e subir e tentarmos a nossa a sorte. Um riso de dentes brancos, riso cheio, dá uma grande gargalhada: “A Sra ao menos não vem aqui gritar comigo, tem bom humor, todos gritam, a Sra não casou e já quer divorciar” – seguem-se mais gargalhadas. Ele era da Guiné, ficámos a conversar sobre Amílcar Cabral, nossa afinidade de afectos.
Começámos ontem a inscrever os nossos filhos no Portal das Matrículas, estamos há 4 dias a tentar, não funciona, vai abaixo, ligamos para a Direcção Geral de Educação e a Sra que nos atende confessa que o “sistema não é bom”. O cartão de cidadão esperámos 3 meses e foi por “especial favor”, disse-nos a funcionária, triste. E o passe social, já me disse o Sr da CP, conheço-o há 20 anos, gente boa, uma vez cuidou até de um aluno meu estrangeiro, que estava perdido, está visivelmente deprimido com o que vê, encolhe os ombros a toda a hora. “Olhe, Dona Raquel, pode ser 10 dias, mas pode ser 30, se quer rápido vá ao Cais do Sodré”. Das finanças não há notícia de restituição do IRS porque, embora já tenha explicado o erro, que não é meu, não há funcionário para validar. Olha, Centeno, põe por favor esta cativação do meu IRS a render juros da divida pública, pode ser aqueles juros onde o Berardo tem títulos via as propriedades que tem no Canadá. Tudo deve dar lucro. Ontem por exemplo coloquei gasolina em vez de gasóleo e logo apareceu um senhor que por especial favor me despejou o depósito por 90 euros. Lembrei-me de ti Centeno, tudo rende neste mundo, e é tudo para nosso bem, estás a salvar-nos. Ontem o Sr até me disse “faço por gosto, nunca deixei ninguém desenrascado”, sacou logo de um cartão, para a próxima se a Sra precisar. Olha Centeno, leva este para a Europa, vai ser de boa ajuda.
Ah, entretanto fui ao Cais do Sodré, eram 3 da tarde e já não havia senhas – só gente indignada, em todas as línguas, a gritar com funcionários em colapso. Morri de pena, dos que gritavam, dos que ouviam gritos, e pena de mim, da inação a que chegámos. Fui-me embora, vou de carro, é o salve-se quem puder.
Hoje 4 maternidades fechadas, até Setembro, não era para emigrarem e pagar ao FMI, fechando as vagas para especialistas, criando um mercado privado? São centenas de médicos à espera e não lhes abrem vagas? Mas temos Centeno na Europa! Não é um orgulho? Mas…, espera, este não ia ser o Governo da “reposição de rendimentos”? Que bons alunos nós, ai que vem lá direita, um perigo. E a maternidade de Portimão, sim, não é Marmelal, é a maternidade da segunda cidade do Algarve, ora, ora, vão parir a 60 km, paciência, há risco sistémico se não pagamos…Desculpem, pagamos o quê, a quem? Sois vós como eu portugueses que pagam impostos, como nunca pagámos, e nos dizem que devemos, mas a quem? Essa dívida, cuja factura por “risco de perturbação da ordem pública” nunca nos foi dada mas pagamos cada cêntimo com o colapso dos serviços, até da vida, foi afinal contraída por quem, quando e para quê? A ordem pública, senhores, está em colapso. E o pior está para vir enquanto não percebermos que é a senha do divórcio, a ruptura com este estado a que o Estado chegou, que vai evitar conflitos gigantescos. Ninguém sabe a dimensão apocalíptica da próxima crise, nem o tsunami social que este ressentimento com a injustiça vai causar. Pensem.
Conseguimos casar no ano passado porque o meu marido é uma delícia, eu disse logo amo-te para a vida mas 10 horas de fila não sou capaz, ele é um cavalheiro à moda antiga, riu-se, e foi para lá às 6 da manhã, altura em que a fila já tinha mais de 100 pessoas, uns para casar, outros para divorciar, a vida não pode parar. Eram 12:30 quando me ligou e disse só “estão 4 à frente” – ufa, corri para lá, fomos atendidos, querem tirar uma fotografia?, não obrigada, queremos mesmo fugir daqui. A vida não são selfies. Vamos celebrar mais tarde com quem amamos, com paz, se ficarmos por aqui, neste caos, vamos precisar da senha do divórcio. Ah! À hora que vos escrevo ainda não tenho o passe social. Vejam pelo lado positivo – pelo menos não vou a caminho de uma cidade a 60 km para parir. E ainda vou ter um dia de folga – dado pelo PS em campanha eleitoral – para levar os miúdos à escola. Escola onde ainda não os consegui inscrever. Já perdemos, nós doutorados, 4 dias no Portal, em vão. Não imagino como estão os pais em Ansiães.
Compreendo que o PS e o PSD queiram fazer um pacto de regime, não compreendo é como o PCP e o BE assistem a isto indignados, mas catatónicos. A ideia de que a vida política está toda no Parlamento é um erro de palmatória. Discursos no Parlamento não têm servido de nada. O grave é que temos um movimento, que os partidos ainda dirigem, político, sindical e social morto. Sem acção alguma. Os custos destes pequenos partidos não reagirem socialmente e perderem votos são altos, é certo. Mas apoiando isto o risco de perderem o país é certo, e mais alto.
Não estou em pré-campanha, nunca apoiei este Governo, nem o vou apoiar. Também não apoiei o outro. Aguardo pacientemente que os portugueses mais decentes, conscientes, ágeis, astutos, que têm princípios, e são responsáveis voltem a assumir socialmente um papel na história. Até lá não posso fazer muito a não ser escrever e retratar o país real. Doa a quem doer.
O Euro como moeda amarrou-nos à impossibilidade de termos serviços públicos funcionais.
Uma cultura de corrupção e de individualismo fez o resto.
Não aguarde, Raquel Varela, avance.
Criando um movimento de participação cidadã, aberto a todos – menos à vaidade, ambição, ganância.
De cidadãos que se orientem por valores e pelo colectivo. Que saibam mais ouvir do que se fazer ouvir.
Ouvindo, aprendem. Simplificando, humanizando, harmonizando, trazem para a cidadania os muitos desempregados ainda existentes, os muito desiludidos, os muito desaproveitados.
Se o fizer conta com o meu apoio incondicional; e com certeza com o de muitos Portugueses que se identificam ainda como decentes.
Já cá faltava o euro…. se ainda fosse o morabitino, mas afinal é o euro.
Caríssimo Joel Santos: já o dizia há uns anitos Gunnar Myrdal…
Penso que é mais culpa dos sertércios romanos! Já não há pachorra.
Então é para votar PCP ou BE. Muito bem. Espero que consigam ter muitos deputados para nos livrarmos do PSD e PS. Ponto final. No seu texto parece me que se pode aproveitar os mini partidos.
Pois é, cara Raquel, depois o discurso do João Miguel Tavares, no 10 de Junho,é que é “mussolinesco” ou “fascistóide”…Cumprimentos!
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É verdade o que diz a Raquel Varela, ou não? Se for verdade, a vida de muitos dos nossos concidadãos é deprimente. Porém, há quem se esteja nas tintas para isso…
Chama-se “custo” à vida quando não se lhe reconhece valor, chama-se “custo” à vida porque há gente que tem tempo que não importa. É indigna a forma como nos olham mas é mais indigna a forma como permitimos ser olhados, a divida “publica” é um peso óbvio e evidente na vida das pessoas mas a sua não discriminação é o derradeiro confronto com a nossa muito pouca representação. Esta divida talvez seja o símbolo do regime, é o garante da desigualdade, da injustiça e da desunião.
Este fim país real, de quem o vive e não tenta furar o sistema.
Este é o país que não quero deixar para o meu filho.
Tenho pena que sejam causas de direita e de esquerda, e não seja uma exigência do cidadão comum.
Felizmente para mim distânciei-me do grande centro de Lisboa. Agora faço o cartão do cidadão em menos de 5minutos.
Falta um “muito” de tudo neste estado “pouco” socialista.
Mas no caso do SNS estamos sempre com carência de recursos humanos e overbooking!!! Sempre a correr atrás do prejuízo sem apostar na prevenção primária!
«Aguardo pacientemente que os portugueses mais decentes, conscientes, ágeis, astutos, que têm princípios, e são responsáveis voltem a assumir socialmente um papel na história.»
O problema é que, mesmo os portugueses que têm princípios, são uma cambada de pusilânimes (palavra, aliás, que devia vir no dicionário como sinónimo de português). E, como tal… nem vou dizer o que penso sobre este aspecto, em particular.
Mas, sobre o colapso das empresas e serviços estatais, posso-lhe dizer que tudo isto está a ser (muito conscientemente) feito de propósito. E, já quem sabe muito bem do que está a falar, denunciou numa importante entrevista feita ao Jornal de Negócios que o objectivo final é falir e implodir o Estado, para que as multinacionais (que actualmente dão ordens aos nossos governantes – e que serão os senhores feudais do futuro) tomem o seu lugar: h*tps://twitter.com/EstulinDaniel/status/1096448713419964416 + h*tps://www.youtube.com/watch?v=EsDLvOhdRXc
Razão pela qual é também emitida dívida que toda a gente sabe ser impagável, para depois se fazer o mesmo que faziam o FMI e o Banco Mundial no chamado 3º Mundo (do qual iremos também nós fazer parte) de requerer a venda de propriedade estatal para saldar tal dívida: h*tps://www.gregpalast.com/world-bank-secret-documents-consumes-argentinaalex-jones-interviews-reporter-greg-palast/
(Os aeroportos são geridos por privados, na Margem Sul os autocarros são agora privados, até a Ponte 25 de Abril, ironia do nome, já é gerida por privados… acha que as linhas de comboio também não irão ser?)
(Quantos aos serviços de saúde, obviamente que o SNS vai tendencialmente desaparecer. E, quem não tiver dinheiro para ir aos privados, irá sofrer as consequências disso.)