Investigadores como Boaventura Sousa Santos, Carlos Cunha, Carlos Gaspar, entre muitos outros, defendem a tese de que houve uma ruptura entre PCP e PCE porque o PCP teria optado pela «via soviética» e o PCE pelo eurocomunismo. Um teria tentado a via putschista de tomada do poder, uma repetição de Praga em 1948, o outro procurado a via democrática burguesa. A prova estaria, em primeiro lugar, no facto de o PCP ter querido tomar o poder em Portugal em 1975 e, secundariamente, na difícil relação entre Cunhal e Carrillo. tese.
É inegável que o caminho do PCE foi o do eurocomunismo. E de que este, apesar de só se ter afirmado publicamente durante a crise revolucionária em Portugal em 1975 – com o encontro de Livorno – e em 1977, com a publicação de Eurocomunismo e Estado, de Santiago Carrillo –, era um caminho que o PCE vinha a trilhar mesmo antes da revolução portuguesa, ao ligar-se aos comunistas franceses e italianos e conseguir autonomia financeira da URSS, criando o seu próprio aparelho nacional.
Aliás, a primeira vez que Santiago Carrillo visita Portugal depois da revolução é em Dezembro de 1974, a convite de Mário Soares – o que era já um sintoma do seu afastamento da União Soviética. Carrillo também se encontra com a comissão política do PCP, mas é com os socialistas que se deixa fotografar.
O caminho do Partido Comunista Português não foi esse – um partido relativamente pequeno, de um pequeno país europeu, que sempre dependeu financeiramente da URSS e nunca quebrou os seus laços com ela.
Pode por isso concluir-se que os comunistas queriam tomar o poder para construir uma «democracia popular» e os espanhóis aceitavam a democracia?
De maneira nenhuma. O PCP, durante o período revolucionário esteve em todos os Governos Provisórios; defendeu a reconstituição do Estado através do MFA, procurando acabar com a crise onde ela tinha começado; no Verão Quente fez tudo para não ficar sozinho no Governo e quando se formou o VI Governo, já de novo com a burguesia, os comunistas participam de novo. No dia 25 de Novembro – quando um golpe de Estado feito por um bloco social que ia desde o PS à direita mais reaccionária e ao patriarcado põe fim à revolução portuguesa, acabando com a democracia nos quartéis e isolando e prendendo os militares «indisciplinados» –, o PCP recusa a distribuição de armas aos seus militantes que, junto das sedes do partido e dos quartéis por este controlados, exigiam defender a revolução. A «guerra de posições» do PCP não chegou aos lugares centrais do aparelho de Estado, o Governo e as Forças Armadas.
A ideia de que o PCP queria tomar o poder é uma construção ideológica que serve o actual regime português – que se construiu na justificação de que a transição para o socialismo – ainda hoje inscrita na Constituição portuguesa – teria falhado porque em 1975 o país teria sido colocado entre a espada e a parede: ou um regime totalitário, satélite da URSS, ou a economia de mercado e a dependência face aos países ocidentais. O PS, segundo a «memória» tecida pela contra-revolução, teria salvo a liberdade, e o preço a pagar foi o capitalismo. O PCP tem em relação a esta tese uma atitude contraditória pois se ela por um lado demoniza o PCP como totalitário, por outro dá-lhe uma combatividade que de facto nunca existiu e que o PCP reclama junto da sua base.
Esta tese não encontra eco em nenhum documento ou facto que historicize o papel do PCP em 1974-75. Como recorda Francisco Louçã, em «A “Vertigem Insurreccional”: Teoria e Política do PCP na Viragem de Agosto de 1975», o PCP nunca colocou em causa o Governo ou a hierarquia militar: «O que abalaria este aparelho militar seria um levantamento generalizado de soldados, inevitavelmente favorecido pela paralisia dos hierarcas; e essa situação estava próxima nesse Verão: a ela se opuseram todas as correntes do MFA, e o PCP tanto como os outros. A luta pelo compromisso, que é a linha de continuidade de actuação do PCP neste período, não chegou a nenhuma solução (…) Triste destino, o da ideologia: o PCP, enquanto a sua política ia noutra direcção, era forçado a manter uma aparência de radicalidade e a proteger um governo que temia – ficou assim com a fama sem ter o proveito (…)»
A História não é matemática, já sabemos. Há inúmeros autores que nos últimos 15 anos se têm dedicado a estudar os conflitos sociais em Espanha durante a transição, num movimento que já tem o nome de historiografia «desde abajo». Mas há também números elucidativos. Se em 1971 tinham havido 6 milhões de horas de greves, em 1976 são 106 milhões.
Na boleia da crise revolucionária portuguesa, o PCE assume o compromisso com o eurocomunismo, distancia-se definitivamente de Moscovo e aproxima-se da social-democracia europeia, dos franceses que ensaiavam o Programa Comum, dos italianos do Compromisso Histórico. Franco estava moribundo com Parkinson – morreria no dia 20 de Novembro de 1975. Carrillo afasta-se de Cunhal, não só porque já se tinha afastado da URSS, mas porque Cunhal aparece como o bode expiatório de toda a política que acabaria nos Pactos de Moncloa. Carrillo acena a Espanha com o fantasma da sovietização, como forma de conter os conflitos laborais.
Vejamos o encadeamento dos acontecimentos. Em Abril de 1974 uma revolução irrompe em Portugal. Três meses depois, no dia 29 de Julho, o PCE funda a Junta Democrática de Espanha. No dia 11 de Março de 1975, um golpe de direita é derrotado em Portugal, abrindo caminho à radicalização da revolução. No dia 12 de Março, um dia depois, o PSOE é legitimado em Espanha. No Verão de 1975, Portugal está no meio de uma crise revolucionária. O PSOE funda nesse Verão, em Junho, a Plataforma de Convergência Democrática, com um programa semelhante ao da Junta. O PCE faz um comício público com Berlinguer a favor da democracia. No dia 20 de Novembro Francisco Franco morre. No dia 25 de Novembro de 1975, um golpe dirigido pelo PS, dá início à contra-revolução (democrática) em Portugal. Três semanas depois, em Espanha, PCE e PSOE encontram-se para unificar a Junta e a Plataforma na Coordenação Democrática, que é negociada em Dezembro de 1975 e formalizada em Março de 1976.
No dia 18 de Novembro as Cortes Gerais em Espanha fazem aquilo que ficou conhecido como «haraquiri [suicídio] das cortes franquistas». Aprovam uma lei que implica a sua dissolução, abrindo portas para a institucionalização daquilo que já era um facto: a ditadura franquista não tinha sobrevivido à revolução portuguesa.
Os Pactos de Moncloa, assinados pelo PCE e pelo PSOE, junto com os partidos de direita, são o acordo central que termina este processo, no fim de 1977. A sua espinha dorsal é o modelo económico, a economia de mercado. O texto do pacto está dividido em dois grandes pontos: acordo sobre o programa de saneamento e reforma da economia e acordo sobre o programa de actuação jurídica e política.
A luta de classes na Europa na década de 70 fez a história dar um passo de gigante: em dias, no caso de Portugal, meses, no de Espanha, há alterações sociais, políticas e culturais que não se deram durante décadas. Os partidos políticos têm que responder a esta mudança e fazem-no de acordo com a situação específica do país e do momento. Mas não se podem daqui concluir estratégias distintas.
Álvaro Cunhal é dirigente do Partido Comunista no meio de uma crise revolucionária. Fala de socialismo nos seus discursos; Carrillo evita a palavra, quase sempre, e, quando fala, acrescenta sempre «socialismo do nosso tempo». Álvaro Cunhal tinha que falar de socialismo porque era dirigente do PCP num país onde todos falavam de socialismo, incluindo, em alguns momentos, a democracia cristã. Aliás, esta característica marcou até hoje as siglas dos partidos políticos portugueses: em Portugal, ainda hoje, o partido social-democrata se chama socialista e um partido liberal-conservador chama-se social-democrata – um elemento único no mapa partidário europeu. O próprio Cunhal – suprema ironia – identifica esta excepcionalidade da retórica dos partidos na revolução portuguesa: «esta definição, ‘rumo ao socialismo’, que o PCP convictamente utilizou, era repetida pelo PS, pelo próprio PPD, cuja actuação contra-revolucionária foi sempre avançando ‘rumo ao capitalismo’» (A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril).
A relação entre Santiago Carrillo e Cunhal parece não ser, sobretudo a partir do Verão Quente – porque até aí Cunhal é louvado nas páginas do Mundo Obrero – a melhor. O sinal que Carrillo tem a dar a Espanha é, como repete sempre, o da aliança com a «direita civilizada» e as críticas públicas a Cunhal são um sinal à direita espanhola e ao PSOE da sua ruptura com Moscovo. Mas ver nestas diferenças um PCE democrático e um PCP revolucionário é ignorar o ritmo da luta de classes naqueles países. Aliás, não se explicaria assim porque é que Carrillo apela sistematicamente nas páginas do Mundo Obrero à greve geral e Cunhal não o faz, tenta, pelo contrário, conter a maioria das greves. Só o compreendemos se tivermos em conta que Cunhal estava no Governo e Carrillo pertencia a um partido ilegal – razões suficientes para um conter as greves e outro apelar a elas.
A pergunta mantém-se: podemos deduzir destas diferenças estratégias distintas? A resposta é não: Cunhal e Carrillo, PCP e PCE são dois partidos que se comprometem com a construção da democracia como valor estratégico: não é táctico, nem uma etapa: é o objectivo programático de dois partidos fiéis à ordem de Ialta e com um longo e inequívoco compromisso político que tem na colaboração de classes o seu eixo.