Texto apresentado no Porto, na livraria UNICEP, no lançamento de História do Povo na Revolução Portuguesa (1974-1975), de Raquel Varela, da Bertrand Editora.
O livro que hoje tenho o gosto de apresentar chama-se História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-75, e vale a pena determo-nos no seu título.
História do Povo, em primeiro lugar. A sua autora, Raquel Varela, que tem vindo a desenvolver – num vasto conjunto de livros publicado em pouco mais de três anos — um notável trabalho de investigação nas áreas da história do trabalho e dos movimentos sociais, do estudo do Estado social e da análise do processo político português subsequente ao 25 de Abril de 1974, terá querido entrelaçar nesta sua obra mais recente os diferentes campos de estudo que têm mobilizado o seu interesse profissional, e terá também desejado filiá-la nessa já longa tradição de Histórias do Povo que remonta ao trabalho pioneiro de Howard Zinn (A People’s History of the United States) e desde então se multiplicou em trabalhos geografica ou tematicamente muito diferenciados, e resultantes de metodologias diversas, mas que têm em comum o propósito de valorizar, na narrativa historiográfica, a perspectiva, a experiência e o papel histórico das chamadas “pessoas comuns”, ou, noutros léxicos, das massas populares, dos movimentos sociais, das classes dominadas, dos “de baixo”, isto é, de todos os que geralmente não têm voz ou existência própria nas páginas dos livros que privilegiam a vertente politico-institucional da História e os seus protagonistas e acontecimentos mais emblemáticos.
Esta é, em segundo lugar, uma história da revolução portuguesa de 1974-75. Por estranho que possa parecer, a qualificação desse período da nossa vida colectiva como “revolução” é ainda hoje questionada. Recorde-se como, há dez anos, quando se celebrava um outro número redondo nos aniversários do derrube da ditadura portuguesa, se encheram páginas a discutir se o 25 de Abril significava “revolução” ou “evolução”. Creio que se trata de uma querela que não resiste ao simples bom senso.
Vale a pena consultar, para sublinhar essa ideia, a detalhada cronologia, organizada numa base quase diária, com que Raquel Varela enriqueceu este seu livro, com a intenção, aliás, de propor uma periodização alternativa à que é habitualmente adoptada nos estudos historiográficos sobre os acontecimentos ocorridos entre Abril de 74 e Novembro de 75.
Permitam-me que retire dessa cronologia, a título de mero exemplo, algumas das notícias que ficaram a marcar dois dias situados mais ou menos a meio do processo. Escolhi os dias 4 e 12 de Fevereiro de 1975, como poderia ter escolhido quase quaisquer outros nesse período. Passo a ler alguns excertos:
4 de Fevereiro de 75:
“Os trabalhadores da Eurofil (cerca de 1600), a maior fábrica de plásticos do País e a segunda da Europa, empresa do grupo Borges e Irmão dedicada à indústria do petróleo (transformação de matérias plásticas), estão em luta. Numa primeira fase os trabalhadores fecharam a fábrica com a administração lá dentro, em luta contra os despedimentos, pelas readmissões dos colegas, pelo salário mínimo (mas diferente por géneros), por um refeitório para todo o pessoal e pela assistência médica na fábrica 24 horas por dia. Depois, não sendo satisfeitas todas as reivindicações, ocupam as instalações e expulsam a administração (a 4 de fevereiro), exigindo agora a nacionalização.
Os trabalhadores da Celulose do Tejo, em Vila Velha de Ródão, entram em greve depois de administração não ter aceitado o seu caderno reivindicativo, numa reunião realizada ontem. Já em junho último tinham entrado em greve.
A Comissão Operária da SOUSABREU, fábrica têxtil em Guimarães, apresentou o balanço de 4 meses de autogestão: mantiveram os postos de trabalho, os salários em dia e conseguiram aumentar os teares de 7 para 25.”
Ou, oito dias depois:
“Em Valdágua, no Baixo Alentejo, cerca de 40 trabalhadores no desemprego criam a Comissão de Melhoramentos de Vale de Ouro de Cima e ocupam os latifúndios da zona.
Os trabalhadores das Confecções Eicorte, perante a insolvência fraudulenta da sociedade e os salários em atraso, ocupam a fábrica e as lojas, mantendo a laboração.
Os trabalhadores da ESMALTAL, na Ponte da Pedra, entram em greve com ocupação das instalações. Insurgem-se contra a fuga de capitais e a sabotagem económica, pedindo a nacionalização da empresa.
Os trabalhadores da Cergal paralisaram o trabalho durante a visita de militares da NATO à fábrica, numa tomada de posição contra o desemprego e contra o imperialismo.
Trabalhadores da alfaiataria Brutus ocupam as instalações e mantêm a unidade em funcionamento depois do despedimento de um colega, o que rompeu com o acordo estabelecido a 2 de janeiro entre as partes. Os piquetes de trabalhadores impedem a entrada da administração nas instalações.
As 30 trabalhadoras da lavandaria Matirol passam a gerir a empresa.
Em Lisboa, os trabalhadores da Rabor ITT – Semicondutores ocupam as instalações impedindo a entrada de qualquer administrador até o MFA nomear uma comissão administrativa. Continuam a produção, agora sob o seu controlo.”
Se somarmos a estes todos os outros instantâneos diários de conflitos laborais, de ocupações de fábricas e latifúndios, de saneamentos e plenários deliberativos nas empresas, nas escolas ou nos quartéis, de experiências de autogestão ou de controlo operário, de ocupação de casas devolutas e criação de equipamentos colectivos por comissões de moradores, de constantes manifestações nas ruas e de intervenções militares a favor ou contra os movimentos sociais, ao longo do período de mais de um ano e meio que vai de um 25 (de Abril) a outro 25 (de Novembro), teremos o retrato de um país em revolução, com facetas diferentes consoante a evolução do processo político.
Se recuarmos, por exemplo, a Junho de 74, quando estão ainda em fase de formação as comissões de trabalhadores, criadas à margem dos sindicatos e nesse período geralmente hostilizadas pelo Partido Comunista, iremos encontrar episódios como o da greve de dezenas de milhares de trabalhadores dos CTT, que, tal como outras nessa fase, foi fortemente combatida pela Intersindical e pelo PCP, e reprimida pelo Governo de que este partido fazia parte.
Se, por outro lado, avançarmos para o Outono de 75, que a autora deste livro caracteriza como sendo o período de “crise revolucionária” propriamente dita, iremos encontrar, nas notícias de cada dia, sinais crescentes da radicalização política dos movimentos populares, de que um dos momentos culminantes será, a 12 de Novembro, o cerco da Assembleia Constituinte pelos operários da construção civil.
A investigação conduzida por Raquel Varela mostra sem margem para dúvidas que houve nos anos 70 do século passado uma revolução em Portugal, defende que essa revolução foi derrotada e propõe-se explicar porquê. Este livro traz-nos a descrição informada desse processo, focada nos movimentos sociais, numa linha do tempo que a autora quis abrir e fechar, simbolicamente, com as duas versões (a primeira eufórica, a segunda melancólica) da canção “Tanto Mar”, que a festa dos cravos e o seu desfecho inspiraram a Chico Buarque de Hollanda.
Vem, por isso, preencher uma lacuna importante na historiografia portuguesa contemporânea. Se continuam a faltar-nos, a meu ver, uma história global e uma síntese abrangente do chamado “processo revolucionário em curso”, que não dispensem o estudo e a análise das vertentes políticas e institucionais, partidárias e militares, culturais e ideológicas, sociais e económicas desse período histórico a muitos títulos decisivo, e também do seu enquadramento internacional, a verdade é que a partir de agora não poderá ser ignorada, na sua construção, a história dos movimentos sociais, esta “história do povo” na revolução de Abril que ficamos a dever a Raquel Varela.
Este livro é, por outro lado, uma interpretação e uma teorização da revolução portuguesa, à luz de categorias marxistas de análise histórica (e em particular, se não erro, de abordagens influenciadas por um certo tipo de visão conselhista dos processos revolucionários), que vem confrontar-se com visões alternativas no plano historiográfico, que a autora critica com a larga cópia de argumentos que os leitores encontrarão nesta obra.
Correndo o risco de alguma simplificação, diria que Raquel Varela caracteriza o processo revolucionário português como uma situação clássica de “duplo poder”, em que o poder político formal e institucional coexiste de forma mais ou menos conflitual com um poder alternativo que irrompe “de baixo”, que se afirma e actua a partir dos locais de trabalho e de habitação e, na ponta final da crise, procura também instalar-se nas casernas, juntando comités de soldados às comissões de trabalhadores e de moradores, os chamados organismos de “poder popular” que vão procurando articular-se entre si e coordenar-se por sectores e por áreas geográficas, e que a autora vê como sendo, cito, “o centro nevrálgico da revolução”.
Na sua perspectiva, é a “disseminação da dualidade de poderes nas Forças Armadas” a partir de Setembro de 75 que principalmente define a abertura de uma crise revolucionária, e é o atraso organizativo e político em que o campo revolucionário ainda se encontra quando chega o que chama o “seu momento insurreccional” que explica a derrota da revolução – pois, conforme escreve, “nem a esquerda militar tem um projecto político coerente nem os organismos de poder operário e popular estão centralizados a nível nacional naquilo que seria um ´soviete´ capaz de resistir ao golpe” -, que classifica (e continuo a citar) como “o golpe contrarrevolucionário de 25 de Novembro de 1975”, sem deixar de reconhecer que se tratou de um golpe “democrático”, que manteve “um Estado de direito, um Parlamento, eleições livres, direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, ao mesmo tempo que operava “a ruptura com a revolução”.
Se e apresentação de um livro é um acto de recomendação – e do que disse atrás pode concluir-se que recomendo vivamente a leitura desta obra -, ela é também um convite ao debate. Permitam-me por isso que chame à discussão, em traços muitos gerais, uma outra visão dos acontecimentos de 74-75, que divergirá em alguns aspectos relevantes da tese que acabo de descrever. Faço-o sem qualquer autoridade académica ou historiográfica, apenas como um português que viveu esses acontecimentos e reflectiu sobre eles, e a benefício de um debate que considero útil para a compreensão da nossa história recente.
Do meu ponto de vista, aquilo a que de um modo genérico chamamos o “25 de Abril” foi um golpe militar, a que se seguiu de facto uma revolução. Começou por ser um golpe para cuja eclosão contribuiu principalmente a crescente consciência no seio das Forças Armadas da impossibilidade de vencer as guerras coloniais, e nesse sentido subscrevo a ideia de que o derrube da ditadura portuguesa é antes de mais devedor das lutas de libertação nacional dos povos africanos.
E foi um golpe que, independentemente das intenções dos seus promotores, quase imediatamente se transformou numa revolução, graças à ocupação determinada do espaço público por um povo ávido de liberdade e de justiça social. Os movimentos populares que tornaram possível uma sucessão de conquistas políticas e sociais rapidamente impostas a um Estado enfraquecido e fragmentado foram em boa medida espontâneos, mas para o seu avanço e sucessos contribuiu naturalmente o activismo organizado de forças políticas que saíam da longa resistência clandestina sem terem conseguido por si próprias derrubar a ditadura, mas se mostravam capazes de influenciar, em sentidos muitas vezes contraditórios, a radicalização do processo político.
Julgo que esta foi, em primeiro lugar, uma revolução democrática e, nessa qualidade, foi uma revolução vitoriosa, cujo legado ainda hoje define o país que somos. E foi também uma revolução social, certamente inacabada, mas profunda e geradora de todo o conjunto de conquistas e direitos que nos habituámos a designar por Estado social. Foi no calor desses anos e dos que se lhes seguiram que se construiu a sociedade mais justa e progressiva que hoje se torna necessário defender face à cada vez mais evidente captura de instâncias do poder político por um sistema financeiro ganancioso, corrupto e anti-social, apostado nomeadamente em inverter de forma brutal o relevante processo de “transferência” de rendimento do capital para o trabalho a que se assistiu no período revolucionário.
A meu ver, a revolução derrotada, que também existiu, foi outra. Foi a que concebeu um “assalto ao poder” inspirado no modelo revolucionário soviético, tal como esse modelo era (e era-o diferentemente) percebido pelo PCP e pela então chamada extrema-esquerda, cujo peso no processo revolucionário tem sido aliás fortemente subestimado pela historiografia dominante, com prejuízo para uma leitura capaz dos acontecimentos.
Essa outra revolução, acalentada por auto-representadas vanguardas políticas, começou a ser derrotada nas eleições constituintes de 1975, com a legitimidade eleitoral conferida pela maioria do povo às forças partidárias que se opunham aos vários modelos revolucionários de matriz comunista, e, logo depois, também no plano da relação de forças no aparelho militar, com a conquista de posições decisivas por parte do chamado Grupo dos Nove, em detrimento do que então se designava por “esquerda militar”, um conglomerado politicamente pouco coerente e atravessado pela influência concorrente do PCP e da esquerda radical.
Essa revolução, ou essa ideia de revolução, veio de facto a sofrer uma derrota decisiva com os acontecimentos do final de Novembro de 1975. Não creio, porém, que a compreensão desses acontecimentos seja fortalecida pela opção de os descrever como o esmagamento de uma revolução que se encontraria “no seu momento insurreccional”, de “assalto final ao poder do Estado”. Essa é uma ideia que me parece mais devedora de uma mitologia revolucionária clássica, assombrada pelos ecos da tomada de um qualquer Palácio de Inverno, do que de uma análise realista da relação de forças então existente na sociedade portuguesa.
Apesar de subsistirem ainda aspectos pouco clarificados sobre o desfecho do então chamado “processo revolucionário em curso”, julgo que os dados históricos já acumulados indicam que o que aconteceu nesses dias não foi mais do que a derrota de uma desastrada e anacrónica aventura golpista que envolveu sectores da referida “esquerda militar”, politicamente alimentada e apoiada, sobretudo, por facções de uma extrema-esquerda nessa altura já profundamente dividida, as quais terão de facto sonhado com um processo insurreccional, um projecto que a relação de forças existente sempre condenaria ao fracasso, mas que até um Partido Comunista pró-soviético bem mais experiente terá sido por instantes tentado a cavalgar, antes de impor aos seus apoiantes um recuo em toda a linha.
Entre os motivos que aponta para a explicar a derrota dessa iniciativa revolucionária, Raquel Varela salienta o que numa linguagem própria da época se chamaria a falta de “condições subjectivas”, destacando a ausência de um projecto político coerente por parte da “esquerda militar” e o insuficiente amadurecimento dos organismos ditos “de poder operário e popular”, ainda não centralizados a nível nacional.
Mas falta acrescentar, penso eu, a notória falta de apoio popular a esse específico projecto revolucionário, ou, dito de outro modo, falta recordar o poderoso apoio social às forças políticas que tinham vencido as eleições livres de Abril desse ano e ao seu projecto de uma democracia parlamentar e representativa de tipo europeu, que desde o início do Verão Quente se vinha manifestando de forma crescente por todo o país. E essa é também, afinal, a História do Povo na Revolução Portuguesa.
Estas considerações, que provavelmente se inserem numa das linhas de interpretação histórica que este livro se propôs desafiar, em nada diminuem o apreço devido à publicação de uma obra que, conforme referi, vem preencher uma lacuna importante nos estudos sobre a revolução portuguesa. Querem antes significar que, se este é um livro com o qual se aprende a conhecer melhor o período revolucionário, é igualmente uma obra que deve e merece ser largamente discutida.
Para além, é claro, de nos vir recordar um tempo que continua a ensinar-nos o valor da cidadania activa e da participação política alargada como instrumentos essenciais para que uma sociedade possa desenhar o seu próprio caminho de progresso.