Confundir o Lucro com a Riqueza

Dueto de conversa Fernando Pereira/Raquel Varela, publicado na revista Mais Alentejo, Julho de 2014

«Mulher altiva e de raízes alentejanas, com um discurso claro, objectivo e acutilante, sem cedências ao “politicamente correcto”, a professora Raquel Varela é uma personalidade a que ninguém consegue ficar indiferente. Prestigiada investigadora, de reconhecimento internacional, doutorada em História Política e Institucional, pós-graduada em Ciências Sociais e Humanas, especialista em Ciências do Trabalho, em História Social e Contemporânea, é ainda coordenadora de vários estudos e projectos universitários. Dedicando, nos últimos anos, grande parte do seu tempo à investigação do Estado Social em Portugal, à História Global do Trabalho, aos movimentos sociais na Península Ibérica, com particular destaque para os fenomenos laborais e politicos resultantes do 25 de Abril, editou muito recentemente o livro “História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-75”. Entre uma verdadeira tournée de apresentações, conferências, teses, artigos e palestras, surgiu finalmente o momento certo para um relaxante encontro, no simpático restaurante Tamariz, mesmo à beira da praia do Estoril. O fabuloso peixe em sal foi sugestão do “chef” Alarcon e o elegante “Quinta do Carmo” branco, bastante gelado, foi escolha da doutora. Estavam assim lançados os trunfos para um belíssimo dueto de conversa.

Fernando Pereira

CONFUNDIR O LUCRO COM A RIQUEZA

FP: A recente entrevista do Papa Francisco ao jornalista Henrique Cymerman, da SIC, começou por ser o mote da nossa conversa. Declarações surpreendentes, tais como “com o terrorismo podemos negociar, com o protocolo não…” ou ainda a crítica mordaz aquilo a que Francisco chama a “cultura do descarte”, o sistema que lança milhões de jovens para o desemprego, que esquece as crianças, trata mal os idosos e vive centrado apenas no “endeusamento do dinheiro”, em detrimento da Vida, da Paz, da Humanidade, dos seus valores mais nobres… E tudo isto me leva a uma curiosa reflexão. Com a evolução do mundo, da própria sociedade, com os galopantes avanços tecnológicos, com máquinas cada vez mais perfeitas, com o Homem na sua busca incessante da felicidade e da harmonia global, que desafios se nos colocarão futuramente no mundo do trabalho? Será que a tendência é, para que daqui a alguns séculos, não haja necessidade de se trabalhar? A minha amiga, profunda conhecedora destas matérias, não tem grandes dúvidas a respeito…

RV: A ideia de que a introdução da tecnologia faz desaparecer o trabalho, não é verdade, porque ela cria uma série de outros trabalhos e serviços que ninguém vê. Por exemplo, nos estivadores foi introduzido o contentor e eles deixaram de carregar os sacos a as caixas às costas. Mas é preciso fazer os contentores… É preciso adaptar os navios aos contentores, é preciso fazer gruas, é preciso fazer planos informáticos de descarga de contentores… Agora, o que eu acho é que há uma utopia pela qual nós devemos, sem dúvida alguma batalhar, que é a redução do horário de trabalho, em boas condições para toda a gente e sem redução salarial. Aliás, nós temos que aumentar os salários, porque os salários em Portugal não permitem níveis de consumo minimamente civilizados.

FP: E isso interfere decisivamente na tal busca incessante da felicidade e da harmonia global de que estávamos a falar…

RV: Exatamente. A busca da arte, do prazer, da convivência social… Nós não temos que viver para trabalhar. Nós temos que trabalhar para viver. E viver bem, para ser felizes.

FP: A questão é que na nossa sociedade, de um modo geral bastante egoísta e virada essencialmente para o lucro a qualquer preço, existe cada vez menos espaço para as artes, para a cultura, para a boa convivência social, até para a mais elementar solidariedade. As pessoas, o bem-estar das pessoas, são frequentemente prejudicados, para que os “mercados”, sempre tão nervosos, possam obter o seu esperado lucro…

RV: Muitas vezes confunde-se o lucro com a riqueza. Porque o normal é nós produzirmos riqueza. Uma “empresa” tem que produzir e tem que produzir bem, em qualquer sociedade, capitalista ou não capitalista. Agora, não tem que produzir necessariamente lucro. As armas produzem lucro, o tráfico de droga produz lucro, medicamentos que não curam as pessoas também são lucrativos. Portanto, o lucro não tem que ser a medida de eficiência de uma sociedade. A medida de eficiência de uma sociedade deve ser a riqueza.

FP: Esta relação, desenvolvida por Friedrich Engels, entre trabalho, assalariado e capital, salário, preço e lucro, dá realmente muito que pensar. E eu, que já fui em tempos empregado sem quaisquer direitos, um puro comissionista, que passei depois para empregado de escritório, com tudo à séria, férias, 14 meses, um verdadeiro luxo, para finalmente, aos 25 anos, me tornar num empregador. Uma situação em que sou, até hoje, na minha pequena empresa, para além do próprio produto que se “comercializa”, a pessoa que mais horas trabalha, que mais arrisca, que é sempre o primeiro a pagar e último a receber e que, embora desconte para o Estado há 38 anos, se um dia cair, nem um mísero subsídio terá, como qualquer empregado. Não quis perder a oportunidade de conhecer o meu papel no processo. A resposta veio pronta e eficaz.

RV: Trata-se de sub-contratualização. O caso de uma maioria de pequenas e médias empresas prestadoras de serviços que, juridicamente aparecem muitas vezes como independentes, mas estão de facto dependentes das encomendas de grandes clientes… Ou seja, estima-se que 70% das pessoas que trabalham em pequenas e médias empresas, a nível mundial, trabalham de facto para uma multinacional ou grande corporação. É a proletarização dos sectores médios, uma coisa que nós temos visto massivamente em Portugal.

FP: Fico agora muito mais descansado, por saber que afinal fui proletarizado. Já sonho com a oportunidade de poder voltar a ter um horário de trabalho normal, tempo para a família, um mês de férias e 14 de ordenado. Agora sim, isto é que vai ser uma vida!

Ironias e desabafos à parte, foi um enorme prazer partilhar, com esta grande senhora, mais um dueto de conversa. Obrigado querida Raquel

Fernando Pereira

2 thoughts on “Confundir o Lucro com a Riqueza

  1. “Muitas vezes confunde-se o lucro com a riqueza. Porque o normal é nós produzirmos riqueza. Uma “empresa” tem que produzir e tem que produzir bem, em qualquer sociedade, capitalista ou não capitalista. Agora, não tem que produzir necessariamente lucro. As armas produzem lucro, o tráfico de droga produz lucro, medicamentos que não curam as pessoas também são lucrativos. Portanto, o lucro não tem que ser a medida de eficiência de uma sociedade. A medida de eficiência de uma sociedade deve ser a riqueza.”

    – Raquel Varela

    Como é que se pode produzir riqueza sem lucro?! Como é que uma empresa, por exemplo, pode produzir riqueza sem ter lucro? Este é um dos mistérios que a iluminada Raquel Varela não desvenda…

    O que pode acontecer é que o lucro seja ilícito — seja juridicamente, seja ética e moralmente. Por exemplo, o tráfico de drogas, para além de ilegal, é imoral; portanto, quem tem lucro com o tráfico de drogas incorre em uma ilegalidade e pratica um acto imoral.

    Ou seja, a Raquel Varela incorre em um sofisma, quando confunde “lucro”, por um lado, com “ilegalidade” e “imoralidade”, por outro lado. Trata-se de uma “confusão” propositada e ideologicamente orientada.

    Só se produz riqueza com mais-valia que depois é aplicada na economia.

    Posso até concordar com a Raquel Varela no que respeita a uma certa restrição na circulação de capitais — porque se as mais-valias saem do país sem quaisquer restrições, é a própria economia que fica prejudicada. Mas o que me parece absurdo é que se possa “produzir riqueza sem lucro” (sem mais-valia).

    De nada vale à Raquel Varela ter licenciaturas, mestrados, doutoramentos, etc., se as crenças dela não se escoram na realidade. Pode tirar todos os doutoramentos do mundo, que nada lhe adianta.

    Todos nós temos crenças. Até a ciência se baseia em crenças porque se baseia em postulados, por exemplo: o postulado atomista segundo o qual as reacções químicas são o resultado da associação ou dissociação dos átomos; ou o postulado da Selecção Natural — fazem parte daquilo a que Imre Lakatos chamou de “heurística negativa”, que isola um “núcleo duro” de proposições que não estão expostas à falsificação; ou seja, os postulados da ciência são axiomas. Estes axiomas são as crenças da ciência. Thomas Kuhn chegou a afirmar que “a história da ciência é uma sucessão irracional de períodos de racionalidade”.

    O que distingue as crenças da ciência, por um lado, das crenças da Raquel Varela acerca da “riqueza sem lucro”, por outro lado, é que a ciência se baseia em factos (embora a interpretação teórica dos factos possa estar errada em determinado momento), ao passo que as crenças da Raquel Varela se baseiam em uma imaginação utópica que, por isso, não tem qualquer aderência à realidade.

    • Orlando Braga, pense um pouco:
      Para facilitar, imagine um bem criado cooperativamente pelas mesmas pessoas que dele vão usufruir: uma refeição cozinhada e consumida colectivamente, um concerto oferecido pelos músicos a si prórpios e a quem os queira ouvir e dançar, um equipamento construído entre moradores, um campo cultivado pelos vizinhos em regime de entre-ajuda, uma fábrica gerida em cooperativa. Nada disto dá lucro, mas não será riqueza?

      Curiosamente, a “ciência económica” que nos governa, tb az a mesma confusão que o OB: uma floresta, por valiosa que seja para a Vida, não entra no PIB; logo que seja cortada e desmanchada, seja em tábuas ou em pasta, já conta.

      De resto, à parte o sistema de crenças de cada um, critério final para aderir a convicções de um sinal ou de outro, lucro e imoralidade têm uma associação antiga de 2000 anos: mais fácil é um camelo passar num buraco de agulha que um rico entrar no céu.

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