Artigo de Renato Guedes e Rui Viana Pereira
Vemos com frequência os meios de comunicação, comentadores e Governo tratarem os funcionários públicos como sorvedouro dos recursos públicos. Estas críticas são apresentadas como justificação para diminuir os encargos com esses trabalhadores. Uma parte do corte de encargos tem recaído sobre a Segurança Social, sob a forma de pensões de reforma que, por sua vez, são alvo de novas críticas de despesismo, numa preparação clara para a sua redução. Toda esta discussão sobre os funcionários públicos, juntamente com a saúde – que constitui um setor fundamental tanto do ponto de vista dos gastos como dos benefícios para os trabalhadores –, pode, no entanto, servir para ilustrar uma outra faceta dos gastos estatais, a saber: como transformar gastos públicos – outrora vinculados à própria produção do Estado – em gastos públicos vinculados à produção privada. Tudo isso acrescido dum aumento substancial dos próprios gastos.
Gráfico 4 – Gastos com saúde e com remuneração dos trabalhadores da função pública
Para início da análise, observemos como evoluíram os gastos com a remuneração dos funcionários públicos, dos funcionários públicos ligados à saúde e da própria saúde como um todo, em percentagem do PIB[1]. De acordo com o Gráfico 4, podemos ver que a remuneração dos trabalhadores oscilou de 1995 para 2010, tendo neste ano regressado a valores iguais aos de 1995. Podemos ver também que o aumento em 2009, devido ao aumento de 2,9% nos salários do funcionalismo público, teve um impacto diminuto nas contas públicas, um pouco mais de 0,3% do PIB, e portanto não justifica, na nossa opinião, o peso dado a esse acontecimento nas Contas Gerais do Estado de 2009[2].
Por outro lado, as despesas com a saúde saltaram de 5,4% do PIB em 2005 para 6,6% em 2008 e deram um salto impressionante no ano seguinte para 7,4%, recuando para 7,0% em 2010. Os gastos com remunerações na saúde também sofreram uma oscilação, mas de sentido contrário: recuaram de 2,4% do PIB em 1995 para 1,4% em 2009 e 0,9% em 2010. Na verdade, o que impressiona nesses números não é a sua dimensão, pois, tratando-se de saúde, os gastos não podem à partida ser medidos por critérios de dimensão. Impressionam, no entanto, as mutações que esses gastos sofreram.
Grosso modo, podemos contabilizar em termos monetários o que os utentes receberam da saúde na rubrica «gastos finais»[3]. Estes gastos são calculados pela soma do produto não mercantil (produzido pelo Estado) e dos produtos mercantis (em geral produzidos por empresas privadas). Para percebermos a dimensão do que se passa em termos financeiros na saúde, temos de recorrer a uma aproximação. Acontece que a contabilidade do COFOG a que temos acesso junta os gastos em dinheiro com os gastos em espécie feitos junto dos setores privados. Se, no entanto, desprezarmos nessa soma os gastos em dinheiro, o que estaria em linha com a metodologia, obtemos o Gráfico 5.
Gráfico 5 – Gastos na saúde
Podemos observar que a diferença entre o custo total e o custo final era de 1,0% em 1995 e 1,5% em 2010, o que revela uma perda de produtividade com um custo de 0,5% do PIB. Por outro lado, enquanto a produção estatal caiu de forma drástica juntamente com o rendimento dos trabalhadores, o que é natural uma vez que boa parte dessa produção estatal é precisamente serviço médico prestado, os gastos com a produção privada mercantil subiram de 1,8% do PIB em 1995 para 5,3% em 2009 e 5,2% em 2010. Eis um milagre da iniciativa privada: criar simultaneamente menos produtividade e mais lucro – tudo à custa dos trabalhadores. Podemos ver que esse movimento de privatização encapotada dá um salto em 2003, coincidindo a sua história com a gestão empresarial dos Hospitais Públicos.
Renato Guedes e Rui Viana Pereira, In Quem Paga o Estado Social em Portugal (Bertrand, 2012)
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